Em meio à COP30, em Belém – apelidada de “COP da implementação” -, a economista Mariana Mazzucato faz um alerta: nenhum acordo climático terá sucesso se não incorporar justiça em seu centro, especialmente diante das desigualdades entre Norte e Sul Global. Para ela, a conferência climática da ONU na Amazônia é uma oportunidade para recolocar o desenvolvimento inclusivo e a transformação produtiva dos países em desenvolvimento no coração da agenda climática.
“Como alguém que dedicou os últimos 20 anos a ajudar governos a se reestruturarem para serem orientados a soluções, orientados por missões, o fato de esta ser chamada de COP da implementação soou como música para meus ouvidos”, afirma Mazzucato.
Autodefinida como “uma das poucas pessoas que ainda acreditam em governos”, a professora de economia da inovação e valor público na University College London avalia que a COP30 ocorre em um contexto global marcado pelo enfraquecimento da capacidade estatal – um processo que ela resume com a sigla DOGE, referência ao “Departamento de Eficiência Governamental” criado na gestão Donald Trump e símbolo, para ela, do desmonte do setor público que está acontecendo globalmente.
Para ela, mecanismo unilaterais em um contexto global de recessão, tensões comerciais e recuo dos EUA em compromissos climáticos reforça a necessidade de uma “coalizão dos dispostos”, incluindo países como Brasil, África do Sul, Índia e China, para impulsionar mecanismos justos de financiamento e cooperação.
Nesse sentido, ela critica o Mecanismo de Ajuste de Carbono na Fronteira (CBAM), da União Europeia (UE), para taxar emissões de carbono de produtos que importados. Segundo a economistas Ítalo-americana, políticas desse tipo aprofundam desigualdades e criam tensões em vez de impulsionar transições sustentáveis.
Quem mais contribuiu para o problema deve contribuir mais para a solução climática”
Em Belém, onde participa de uma série de debates paralelos às negociações oficiais da COP30, Mazzucato também comentou a necessidade de desconsultificação dos governos, suas críticas ao Fundo Florestas Tropicais para Sempre (TFFF, na sigla em inglês) e o papel do Fundo Amazônia como alternativa mais alinhada à lógica de “soluções públicas”.
A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:
Valor: Como você avalia os avanços da COP até o momento?
Mariana Mazzucato: A razão pela qual acho que esta COP foi muito importante é que ela foi chamada de COP da implementação ou a COP das soluções. Como alguém que dedicou os últimos 20 anos a ajudar governos a se reestruturarem para serem orientados por soluções, orientados por missões, isso soava como música para os meus ouvidos. Agora, isso está realmente acontecendo? Veremos. Isso não vai acontecer se, por exemplo, continuarmos tendo empréstimos do Banco Mundial e do FMI que restringem o espaço fiscal ou se tivermos governos que não “acordam” e não investem no próprio serviço público. O DOGE, nos EUA, é só a cereja do bolo, mas está acontecendo em escala global. Temos cortes no funcionalismo. Talvez não no Brasil, onde há contratações. Mas, em relação a outros governos, se você não cria uma burocracia mais estratégica, orientada a resultados, flexível, ágil – o que eu chamo de burocracia criativa – então você não consegue ter uma COP de soluções.
Valor: Quais são as consequências dessa limitação dos governos?
Mazzucato: Começamos a depender excessivamente dos chamados doadores, das filantropias, das ONGs que entram para preencher o vazio. Basta olhar para a quantidade de ONGs na COP. Isso é um sinal de que não temos ação governamental suficiente e de qualidade.
Valor: Como você avalia o contexto internacional em que esta COP está acontecendo, considerando o atual cenário macroeconômico global – marcado por tarifas, guerras e desafios ao multilateralismo?
Mazzucato: A primeira coisa é que acho muito importante o fato de esta COP ser chamada de “COP das soluções”, porque isso deveria representar uma retomada da capacidade dos governos em um contexto mundial de DOGE. Na COP, por exemplo, a maioria dessas grandes conferências é na verdade gerida por consultorias e empresas como BCG, Bain e EY. Então, acho que precisamos “desconsultificar” os governos, se quisermos que eles saibam criar soluções. Mas também precisamos garantir que as parcerias entre governo e setor privado sejam justas – e é por isso que os sindicatos deveriam estar à mesa aqui. Deve ser uma transição justa. E em muitos países tivemos, novamente, a dizimação do poder sindical. E não se trata apenas de sindicatos, porque às vezes os sindicatos também fazem parte do problema. Todos os atores deveriam repensar sua própria governança. Mas eu realmente acho que as tarifas, assim como acordos de carbono mal estruturados, a menos que estejam ajudando os países do Sul Global a inovar, a se transformar de maneira mais inclusiva e sustentável, então esses instrumentos, obviamente, estão no cerne do problema. E isso gera tensões geopolíticas, gera acordos bilaterais em vez de multilaterais.
Valor: Qual seria a solução?
Mazzucato: A única solução agora, dado o negacionismo climático dos EUA, é ter o que chamamos de “coalizão dos dispostos”, com países como o Brasil, Índia, China, África do Sul. Nesse contexto, o fato de que o G20 está pela primeira vez em solo africano é importante e esta COP acontecer na Amazônia é importante. O fato de haver uma coalizão interessante entre Brasil e África do Sul. Acho que existe uma visão mais alinhada entre seus líderes progressistas, Lula e Cyril Ramaphosa, que são ambos sindicalistas. Devemos apelar para esse lado mais orientado pela justiça, porque a menos que a justiça esteja embutida nos acordos climáticos, nada vai acontecer.
É preciso abandonar essa ideia de que o fundo existe apenas para reduzir risco do setor privado”
Valor: Nesse contexto, qual é a sua opinião sobre o CBAM, da União Europeia?
Mazzucato: Fui copresidente no G20 no Brasil do grupo de especialistas do TF-Clima e fizemos uma recomendação em um relatório de que precisamos garantir que a justiça esteja no centro desses mecanismos de governança global. Não adianta ter uma estratégia verde – seja o lei de redução da inflação (IRA) nos EUA, seja o CBAM na Europa – se isso, por exemplo, suga capital da África, como aconteceu com o IRA por causa dos subsídios, ou, no caso do CBAM, impede exportações do Sul Global para o Norte Global porque eles têm esses critérios climáticos. A menos que haja disposições para compartilhamento de tecnologia, compartilhamento de conhecimento, transferência tecnológica, isso prejudica o desenvolvimento. Além disso, a mudança climática é um problema global, certo? Então não pode ser uma estratégia climática nacionalista europeia.
Valor: Qual seria um caminho para melhorar esse mecanismo?
Mazzucato: O problema do CBAM, na minha visão, é que ele não incluiu provisões suficientes para transferência tecnológica. Caso contrário, não deveríamos reclamar. E enquanto a Europa assume essa liderança – especialmente num momento em que os EUA estão retrocedendo em todos os seus compromissos climáticos – é bom que a Europa faça isso. É ruim quando o mecanismo é desenhado de uma forma que não contribui para o desenvolvimento. Acho que precisamos abandonar essa lógica de Sul Global versus Norte Global e começar a aprender o que funciona – e o que não funciona – em cada país específico. Caso contrário, vira uma visão colonialista. Especialmente aqueles líderes na Europa que fingem se importar com desenvolvimento deveriam lutar para garantir que esse mecanismo não esteja agravando os problemas dos países do Sul Global.
Valor: Como você acha que os governos podem trabalhar com o setor privado para desenvolver uma economia mais sustentável?
Mazzucato:Na minha visão, é preciso liderança governamental. Sem liderança governamental, não haverá transparência – porque, então, de quem é a liderança? Do Bill Gates? Do Jeff Bezos? Então, é necessário garantir direção por parte do governo e, ao mesmo tempo, incentivar e catalisar inovação no setor privado para que ele entregue resultados. Não se trata de Estado ou setor privado, mas de liderança estatal, usando todos os instrumentos disponíveis. Uma política pública mal desenhada aumenta os lucros, mas não os investimentos. O que você quer é que os lucros sejam reinvestidos em inovação e capacitação.
Valor: Na COP, há uma tensão entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, especialmente na discussão sobre financiamento climático. Como você avalia isso?
Mazzucato: O mundo em desenvolvimento está gastando muito mais com pagamento de dívidas do que com saúde ou educação – para não falar em adaptação e mitigação climática. Então, essa natureza de superendividamento, que está embutida na forma como estruturamos a arquitetura financeira internacional, não reconhece que estamos diante de uma crise de investimento. A crise da dívida é uma crise de investimento. Então, se os países do Sul Global não conseguem investir por causa da hipocrisia das diferenças no custo de capital – em que até países que sempre pagaram seus empréstimos são penalizados com taxas de juros muito mais altas do que países do Norte Global, como Grécia e Itália, que na verdade têm um histórico pior de pagamento do que alguns países africanos, por exemplo – a diferença no custo de capital é extraordinária. Há muitas penalidades, e isso é especialmente grave porque as consequências das mudanças climáticas são sentidas de forma mais intensa no Sul Global, nos pequenos Estados insulares. Algo como 80% das emissões vêm dos países do G20 – e muitos desses países mais vulneráveis nem sequer estão na mesa. E mesmo dentro desse grupo, alguns têm uma responsabilidade histórica muito maior. Então, para que todos possam alcançar as metas, não é que não devamos ter objetivos de sustentabilidade, mas não podemos fingir que todos devem ser tratados da mesma forma. Aqueles que foram mais responsáveis pelo problema devem ser mais responsáveis pela solução.
Valor: Qual é a sua avaliação sobre o TFFF?
Mazzucato: Acho que um dos problemas é que muitos desses mecanismos acabam voltando à minha crítica sobre blended finance. Há esse tipo de garantia ao setor privado – esse papel de simplesmente reduzir riscos -, em vez de realmente estruturar o instrumento de forma orientada a resultados, garantindo adicionalidade. Então, primeiro você garante os retornos ao setor privado e só o que for excedente vai para a Amazônia – isso parece um pouco absurdo em termos de como o mecanismo deveria ser estruturado. Considero o Fundo Amazônia mais interessante, ainda que muito pequeno. Ele é voltado para soluções específicas de problemas reais e para a socialização de riscos e recompensas. Um dos problemas do TFFF, embora seja um instrumento relevante e aliás considero terrível que o Reino Unido não tenha contribuído, é que o objetivo em si parece ser desrisking. E os projetos florestais deveriam ser analisados sob outra lógica.
Valor: Que lógica seria essa?
Mazzucato:Na minha visão, o papel do setor público em fundos desse tipo – que vêm dessa mentalidade de doador que os sustenta – deveria novamente ser muito focado em soluções, daí a importância da palavra “soluções”. Mas é preciso abandonar essa ideia de que o fundo existe apenas para reduzir risco do setor privado. Ele precisa levar o setor privado a fazer o que de outra forma não faria. Economicamente, chamamos isso de adicionalidade. E existe o risco de que, às vezes, esses fundos garantam que o banco esteja sendo garantido, em vez de levar o banco a assumir um pouco mais de risco e compartilhar tanto os riscos quanto as recompensas.