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quarta-feira, novembro 19, 2025

‘Apagado’ da população brasileira, DNA indígena só sobrevive entre mulheres

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Quando se apagarem os holofotes voltados para a COP30 em Belém, a conferência do clima realizada na Amazônia, e a pressão dos protestos dos povos originários for assimilada, o Brasil ainda terá um longo caminho para enfrentar o “apagamento’’ da herança genética indígena. A homologação de mais terras indígenas, anunciada nesta terça-feira (18) pelo governo com objetivo de proteção dos povos e preservação ambiental, parece pouco diante do desafio.

A maior e mais completa pesquisa sobre o DNA do brasileiro, liderada pela Universidade de São Paulo (USP), baseou-se no sequenciamento genético de 2.723 pessoas de todas as regiões do país, mostrando uma população de grande diversidade e miscigenação, como esperado. Uma combinação de 58,9% de ancestralidade europeia, 27,13% africana, 13,6% indígena e 0,54% asiática.

O Brasil branco também deveria pedir desculpas. Essa não é só uma questão moral. É o desafio para o nosso futuro”

— Laurentino Gomes

A surpresa, até para os pesquisadores, um grupo formado por 24 cientistas, sendo 22 brasileiros, 11 vinculados à USP, foi o tamanho da assimetria: a ancestralidade paterna, detectada pela transmissão do cromossoma Y, é 71% branca, diante de apenas 2,4% de ascendência indígena paterna. Se fosse excluída a região Norte, este último percentual tenderia a zero. A sobrevivência do genoma indígena no Brasil se dá pela mulher, que responde por 34,85% do DNA mitocondrial (de transmissão materna), frente a 42,49% de ancestralidade africana, 21,88% europeia, e 0,77% asiática.

“Este achado é a evidência biológica de uma história de muito extermínio, que a gente conhece pelos livros. Quando você enxerga isso na composição do físico, da estrutura da nossa população, é impressionante. Foi a primeira vez que se mostrou isso de uma forma tão contundente”, afirma a geneticista Lygia Pereira, professora da USP e coordenadora da pesquisa, publicada pela revista Science em maio passado.

“O que a gente enxerga é que os homens indígenas tiveram muito menos chances de se reproduzir, de passar seu Y para a frente do que os brancos, e até do que os africanos, mas a assimetria maior é com os brancos. Isso é o que a pesquisa mostra, não há ideologia embutida, é só interpretação do resultado”, diz Lygia Pereira. Ela analisa que, sem uma relação de poder, essa assimetria não seria esperada, dado que se estima que houvesse até 5 milhões de indígenas no Brasil originário, número comparável ao de europeus que desembarcariam nos séculos seguintes e aos 6 milhões de africanos escravizados e trazidos à força ao país.

A geneticista de populações Tábita Hünemeier, vinculada à USP e uma das coordenadoras da pesquisa, diz que, para efeito de comparação, países como Peru e México mantêm cerca de 60% de população com origem indígena.

“O Brasil é um outlier na América Latina; a capilaridade indígena é muito maior nesses outros países, até por eles não terem tido acesso à mão de obra africana escravizada, pelas características de povos que já tinham desenvolvido agricultura e porque o modelo hispânico era diferente da colonização portuguesa, que era muito mais de exploração”, afirma a pesquisadora.

Segundo ela, estudos anteriores de genoma mostram que o extermínio das populações indígenas chegou a 98% no litoral do Brasil e que a fuga para o interior não evitou o genocídio. “No interior, foi de 83%, e esse genocídio é resultado de desestabilização social, guerras da conquista, doenças.”

“A disparidade entre DNA mitocondrial e Y, entre transmissão materna e paterna, existe na América inteira, mesmo em países que têm uma ancestralidade indígena mais alta”, diz a pesquisadora, ressaltando que no Brasil o contraste é mais gritante, e há uma variedade genética muito mais rica no DNA mitocondrial do que na herança paterna indígena, reduzida a poucas linhagens sobreviventes. “É como se tirássemos uma fotografia daqueles primeiros dois séculos de contato dos indivíduos fundadores”, afirma Tábita Hünemeier.

A deputada federal Célia Xakriabá (Psol-MG) viu a pesquisa como reafirmação da vivência e do aprendizado pelo qual passou na escola indígena. “O que a genética está mostrando agora a gente já denunciava há mais de 500 anos: o Brasil é fruto de estupro de mulheres indígenas e negras. O estupro não foi acidente, foi ferramenta de colonização”, disse a deputada ao Valor. Na percepção dela, “se o DNA indígena aparece apagado na linhagem paterna, é porque esse pai nunca existiu como pai; existiu como estuprador, como agressor”.

Para o jornalista e historiador Laurentino Gomes, autor de “Escravidão” (GloboLivros), a pesquisa mostra “o modelo de poder, de dominação, espelhado no DNA”. A obra de Laurentino disseca, em três volumes, o processo de colonização do Brasil, escravização de povos indígenas e a vinda de africanos escravizados.

“Desde que os primeiros portugueses chegaram ao Brasil, desde que Diogo Álvares Corrêa, mais tarde conhecido como o Caramuru, se casou com a [Catarina] Paraguassu, sempre houve um completo desbalanceamento de gênero”, diz Laurentino, destacando a existência de muitos registros de relacionamentos forçados por violência sexual.

Os portugueses implantaram um modelo econômico que se baseava na grande lavoura, nas extensas plantações de cana-de-açúcar, tabaco, algodão, commodities muito valorizadas na época. Escravização em massa, guerras territoriais e doenças trazidas pelos europeus dizimaram a população nativa. Os indígenas, estimados em até 5 milhões no Brasil em 1500, estavam reduzidos a menos de 1 milhão em 200 anos.

A população indígena chegou a decair a 70 mil pessoas, segundo estimativa da Funai, em 1957, e voltou a crescer a partir daí, tendo atingido 294.131 no Censo do IBGE de 1991 e chegado a 1.694.836, no último Censo, de 2022. O difícil é saber quantas linhagens foram interrompidas.

“A transmissão do cromossoma Y se dá de forma vertical, de pai para filho, só entre os homens de uma família. Todos os homens de uma mesma linhagem vão ter esse cromossoma até que ela seja interrompida, quando um homem deixe de ter filhos ou só tenha filhas mulheres”, explica o geneticista Mariano Zalis, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Zalis, que já desenvolveu pesquisas na Amazônia mas não participou deste estudo, constatou o impacto da chegada de homens dos mais diversos locais do planeta ao longo dos ciclos de exploração, como judeus marroquinos que vieram atraídos pelo ciclo da borracha no Pará e no Amazonas, ou garimpeiros que agora mesmo estão dentro de reservas indígenas. “A história é sempre a mesma, na colonização, na construção da Transamazônica, no garimpo de hoje: meninas indígenas são levadas para prostíbulos, as tribos diminuem, as doenças matam”, diz.

Para Célia Xakirabá, que foi uma das duas únicas indígenas eleitas para a Câmara dos Deputados em 2022 (a outra foi Sonia Guajajara, atual ministra dos Povos Indígenas), é vital enfrentar essa violência que se prolonga até os dias de hoje.

“Os que estupram as indígenas são os mesmos que nos matam e que querem matar nossos territórios”, diz a deputada, que lutou pela aprovação de um projeto de lei que cria mecanismos concretos para proteger mulheres indígenas. “Mas não basta criar instrumentos. É preciso enfrentar o que os dados mostram: entre 2014 e 2023, a violência contra mulheres indígenas aumentou 258% e a violência sexual aumentou 297%. O Brasil continua repetindo a mesma violência que nos fundou”, diz a deputada.

A responsabilidade compartilhada por processos históricos de extermínio de povos da América Latina é tema ainda em discussão entre governos dos países americanos e da Península Ibérica. Em 31 de outubro passado, o ministro das Relações Exteriores da Espanha, José Manuel Albares, cedeu à pressão da presidente do México, Claudia Sheinbaum, e reconheceu formalmente, em discurso na sede do Instituto Cervantes, em Madri, “a dor e a injustiça contra os povos originários”. Para a líder mexicana, “a conquista foi um processo brutal, de violência, no qual se tentou destruir não culturas inteiras, saberes milenares, modos de vida”, e no qual “as mulheres sofreram especialmente: foram silenciadas, desalojadas, violentadas”. O governo espanhol ficou um passo aquém do pedido formal de desculpas que havia sido exigido, em 2019, pelo então presidente Andrés Manuel López Obrador.

Do lado de Portugal, houve gestos do presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Em discurso e em entrevista a correspondentes estrangeiros, Rebelo de Sousa defendeu abertamente que Portugal assuma a responsabilidade por erros e crimes do passado, como a escravização de africanos e indígenas, e chegou a sugerir, em abril de 2024, uma política de reparação. A proposta não avançou no Conselho de Ministros nem no Parlamento de Portugal.

“O Brasil branco também deveria pedir desculpas. Essa não é só uma questão moral. É o desafio para o nosso futuro. Olhar para uma população massacrada e desprezada. São brasileiros que não têm possibilidade de expressar seus talentos”, diz Laurentino, que vive em Viana do Castelo, na região norte de Portugal, pesquisando para um novo livro. “Não é só pedir desculpas, são políticas concretas, gestos de reconciliação e de aposta no futuro. Enquanto o Brasil não resolver isso, não vamos ser um país justo nem democrata”, conclui.

Com sua abrangência geográfica e diversidade populacional, que alcançou até povos ribeirinhos do Amazonas, a pesquisa sobre o DNA do Brasil traz novas possibilidades de conhecimento, ao abrir vertentes para estudos sobre sistema imunológico, fertilidade e metabolismo, além da investigação de doenças com a chamada medicina de precisão. A USP recebeu um aporte de R$ 6 milhões do grupo de laboratórios DASA, em parceria estabelecida em 2021, três anos após a criação da empresa, que engloba as marcas Alta, Sérgio Franco, Bronstein e Lâmina, entre outros. Todo o sequenciamento genético foi feito em São Paulo.

“O conhecimento genético é o primeiro passo para uma medicina mais personalizada e preditiva. Essa parceria nos deu a oportunidade de alavancar a genômica, de ganhar know-how com um máximo de pluralidade e qualidade de dados, e de poder ajudar a ciência”, diz Cristovam Scapulatempo Neto, diretor médico, de patologia e genômica do DASA.

O trabalho sobre o DNA do Brasil, iniciado em dezembro de 2019, sofreu os percalços da pandemia de covid e levou mais de quatro anos. Ele faz parte do programa Genomas Brasil, do Ministério da Saúde, que vem desenvolvendo medicina de precisão.

“A iniciativa do Ministério da Saúde, de investir em saúde de precisão, de fomentar pesquisas sobre os genomas brasileiros, criou um ambiente para promover a criação de todo um parque tecnológico, é uma coisa bem bacana”, afirma Lygia Pereira, antes de retornar ao trabalho em novas linhas de investigação, inclusive com outras instituições, que procuraram a USP após a divulgação da pesquisa. “Ninguém faz nada sozinho.”

[Fonte Original]

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