Crédito, Cortesía Jack El-Hai
- Author, Juan Francisco Alonso
- Role, BBC News Mundo
Há 80 anos, o mundo fazia essa pergunta enquanto vinha à tona a dimensão da tragédia deixada pelo fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e se revelavam os horrores dos campos de concentração, onde o regime nazista matou e tentou aniquilar judeus, ciganos, homossexuais e opositores políticos.
A humanidade esperava respostas do Tribunal Militar Internacional instalado na cidade alemã de Nuremberg, que a partir de 20 de novembro de 1945 julgou 24 altos comandos do deposto Terceiro Reich.
A tarefa inédita de processar os líderes de uma nação derrotada em uma guerra não foi simples. Os aliados precisaram resolver problemas legais e técnicos, como definir os crimes imputados, quem os julgaria e qual seria o procedimento adotado.
Embora princípios fundamentais do direito penal democrático, como a não retroatividade da lei — segundo a qual ninguém pode ser julgado por crimes não previstos previamente no ordenamento jurídico — não tenham sido plenamente respeitados, os vencedores tentaram corrigir essas falhas e conter críticas garantindo o devido processo legal aos acusados.
Mas antes de levar os dirigentes nazistas ao banco dos réus, era preciso esclarecer uma dúvida crucial: eles estavam mentalmente aptos para enfrentar um julgamento ou não? Essa tarefa ficou a cargo do psiquiatra americano Douglas M. Kelley.

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O preâmbulo
Por que era importante determinar a sanidade mental dos acusados?
“As garantias e direitos judiciais são inerentes a todo ser humano, sem exceção”, afirma o advogado Carlos Ayala Corao, presidente da Comissão Internacional de Juristas (ICJ, na sigla em inglês), em entrevista à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC).
“Se uma pessoa não age por livre-arbítrio, mas por uma doença ou transtorno médico mental, o direito penal democrático a exclui de responsabilidade ou ao menos considera isso um atenuante”, acrescenta Corao, também ex-presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
A conclusão a que chegaria Kelley, psiquiatra formado pela Universidade da Califórnia (EUA) que se alistou no Exército dos Estados Unidos, onde alcançou o posto de tenente-coronel, e que durante o conflito tratou soldados aliados que lutaram na Europa por “fadiga de combate ou choque de guerra (hoje transtorno de estresse pós-traumático)”, determinaria em grande medida o destino do julgamento inédito e, portanto, dos acusados.
“Em geral, os prisioneiros não são diferentes de um grupo de executivos de qualquer outro lugar; ao contrário da opinião popular, não estão loucos nem são super-homens”, concluiu Kelley, segundo revelou em entrevista de rádio concedida no sexto dia do processo.

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Como Kelley chegou a esse diagnóstico? Ele “passou cerca de oito meses com os líderes nazistas, principalmente no hotel de Luxemburgo, onde foram mantidos e onde aplicou uma combinação de técnicas psiquiátricas”, afirma à BBC News Mundo o jornalista americano Jack El-Hai, que estudou o trabalho do médico para o livro O Nazista e o Psiquiatra.
Para a obra, que inspirou o filme Nuremberg, com estreia prevista para fevereiro de 2026 no Brasil, estrelado pelos vencedores do Oscar Russell Crowe e Rami Malek, o jornalista revisou 15 caixas com documentos, relatórios e registros escritos por Kelley, nos quais anotou seus estudos sobre os nazistas. A família do médico preservou o material por décadas.
“Kelley entrevistou os acusados, mas também os submeteu a uma bateria de testes psicológicos, como o teste de manchas de tinta de Rorschach, no qual lhes era pedido que descrevessem o que viam em imagens abstratas”, acrescenta.
“Também aplicou o teste de percepção temática, semelhante ao de Rorschach, mas com fotografias reais ou ilustrações, no qual era pedido que contassem uma história. Além disso, realizou testes de coeficiente intelectual (QI) e descobriu que todos tinham inteligência média ou acima da média”, detalha.

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Durante suas investigações, Kelley demonstrou interesse particular por um dos acusados: Hermann Goering, próximo de Adolf Hitler e ex-comandante da Luftwaffe (força aérea da Alemanha durante o regime nazista).
“Goering era o dirigente de maior hierarquia entre os capturados e Kelley se sentiu intrigado por ele, em parte porque os dois compartilhavam traços de personalidade: eram inteligentes, carismáticos, egocêntricos e um pouco narcisistas”, afirma El-Hai.
“Kelley nunca ignorou a crueldade e as decisões frias de Goering durante a guerra, mas os dois desenvolveram uma relação que implicava certa admiração mútua, embora não fosse uma amizade”, acrescenta.
O psiquiatra deixou registro de sua impressão sobre o antigo “ás da aviação” durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
“Goering era encantador quando decidia ser; tinha uma excelente inteligência, grande imaginação, muita energia e senso de humor”, escreveu Kelley, segundo manuscritos disponíveis no Museu do Holocausto dos EUA.
“Todos os dias, quando eu chegava à sua cela [de Goering], ele se levantava da cadeira, me cumprimentava com um largo sorriso e a mão estendida, me acompanhava até sua cama e dava leves batidas no centro: ‘Bom dia, doutor. Fico muito feliz que tenha vindo me ver… por favor, sente-se’. Depois, se acomodava ao meu lado com seu corpo grande, pronto para responder às minhas perguntas”, relatou em outro documento.

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Mas Kelley não apenas determinou a sanidade mental de Goering, como também se certificou de que ele não morresse na prisão por causa do sobrepeso — superior a 120 quilos — e da dependência de codeína.
Por isso, além de convencer o líder nazista a seguir uma dieta, reduziu gradualmente a dose de drogas que ele consumia para lidar com a dor decorrente de ferimentos sofridos na Primeira Guerra Mundial.
O vínculo que criou com o paciente levou o psiquiatra a “cruzar linhas vermelhas” que prejudicaram sua reputação para sempre, afirma El-Hai.
“Kelley aceitou atuar como mensageiro e levar cartas escritas por Goering à esposa, Emmy. Isso não foi autorizado pelo tribunal nem por qualquer governo aliado, mas ele concordou em fazê-lo”, afirma o jornalista.
No entanto, houve outra prova ainda maior da confiança que o antigo herdeiro de Hitler depositou no psiquiatra.
“Goering pediu a Kelley que, caso ele ou a esposa não sobrevivessem, adotasse sua filha e a criasse nos Estados Unidos. Kelley discutiu a ideia com a própria esposa, que se opôs”, afirma o biógrafo do médico.

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Temor pelo que encontrou
No início de suas investigações, Kelley acreditava que os dirigentes nazistas haviam sido contaminados por “um vírus” ou alguma doença que os levara a planejar e ordenar as atrocidades pelas quais seriam julgados, diz El-Hai.
“Mas, depois de concluir que os dirigentes nazistas não estavam mentalmente doentes e que seu comportamento se encaixava no limite do normal — o que não significa que fosse bom, mas que não podia ser atribuído a uma doença psiquiátrica —, Kelley ficou apavorado”, afirma o biógrafo.
“Essa constatação implicava que havia muitas pessoas como eles (os líderes nazistas) entre nós, em qualquer país e em qualquer época”, acrescenta.
“Basicamente eram pessoas normais, influenciadas pela mentira e pela burocracia. Criaturas moldadas pelo próprio entorno, indivíduos que poderiam estar atrás de grandes mesas em qualquer parte do mundo”, concluiu Kelley, segundo o livro Anatomy of Malice: The Enigma of the Nazi War Criminals (Anatomia da Maldade: O Enigma dos Criminosos de Guerra Nazistas, em tradução livre), do psiquiatra americano Joel E. Dimsdale.

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Assim, ao voltar aos EUA em 1946, o psiquiatra fez uma série de conferências e escreveu artigos nos quais alertava para o risco de o fascismo também chegar ao poder no país, como ocorreu antes na Alemanha, na Itália e em outras nações europeias.
“Naquele momento, muitos Estados eram governados por políticos que defendiam a segregação racial e usavam técnicas semelhantes às dos nazistas para manipular seus eleitores”, afirma El-Hai.
E como se tudo isso não bastasse, Kelley também decidiu iniciar um novo ciclo profissional.
“O tempo que passou com os nazistas mudou o modo como Kelley pensava sobre a natureza das doenças mentais e sobre se a psiquiatria era uma especialidade viável para tratar pessoas como esses criminosos. E concluiu que não era”, diz El-Hai.
“Se essas pessoas eram normais, como a psiquiatria poderia explicar o que elas fizeram? Por isso, nos últimos anos de sua vida, ele se dedicou à criminologia, acreditando que talvez ali pudesse encontrar respostas”, afirma.

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Imitando o paciente
A última evidência de que sua convivência com os nazistas, sobretudo com Goering, marcou Kelley ocorreu em 1º de janeiro de 1958.
Naquele dia, o psiquiatra, que após os julgamentos teve problemas com álcool e sofreu de depressão, discutiu de forma acalorada com a esposa e, em um impulso, tomou uma cápsula de cianeto. Morreu na hora.
Doze anos antes, o antigo sucessor de Hitler havia tirado a própria vida da mesma forma. O líder nazista se suicidou poucas horas antes da execução da sentença de enforcamento, determinada pelo Tribunal Militar Internacional, que o declarou culpado por conspiração contra a paz e por crimes de agressão, de guerra e contra a humanidade.
“O suicídio de Goering foi seu último ato de desafio, e acredito que o de Kelley também foi”, diz El-Hai, que afirma não ter encontrado, nos documentos consultados, qualquer indício de que o psiquiatra pensasse em se matar.
A coincidência reforçou a suspeita de que Kelley teria entregue ao nazista a cápsula de veneno, algo que nunca foi comprovado.