Crédito, Vitor Serrano/BBC
Às 17h, quando recebeu a BBC News Brasil em seu camarim do teatro do Sesc Consolação, em São Paulo, muita coisa já tinha acontecido no dia de Tony Tornado.
Ele já estava de pé, na sua casa na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, desde as 5h para seguir ao aeroporto Santos Dumont, no Centro da cidade.
Um voo cancelado, uma mudança de aeroporto e uma viagem a São Paulo depois, ele estava pronto, às 15h, para subir ao palco no primeiro dos dois shows que faria naquele dia, uma quinta-feira de outubro.
De blazer lilás brilhoso, calça e camisa pretas, colar de ouro e um pequeno black power grisalho, Tony entrou no palco por último, com um passo firme. Cantou, dançou, regeu a banda e marejou os olhos de uma plateia majoritariamente negra e idosa como ele, durante pouco menos de uma hora.
De volta ao hotel naquela noite, ele já tinha que se preparar para pegar a estrada rumo a Bauru, no interior paulista, onde faria mais um show no dia seguinte.
Se, em um dia, Tony Tornado já tinha vivido tanto, imagina ao longo dos seus 95 anos…
Antonio Viana Gomes nasceu em Mirante do Paranapanema (SP), uma vila então com “uma rua e onze carros”, como brinca Tony, em 1930, no mesmo ano em que Getúlio Vargas chegou ao poder pela primeira vez e nove anos antes do início da Segunda Guerra Mundial.
Paraquedista no Exército, onde conheceu Senor Abravanel, o Silvio Santos, “um cara espetacular que vendia (cera de) carnaúba para limpar botas”, Tony participou da primeira Força de Emergência das Nações Unidas (ONU), em missão no Canal do Suez, no Egito, no fim dos anos 1950.
“Sobrevivi no meio de tudo aquilo, com dignidade”, diz.
De volta ao Brasil, ganhou festival de música, estampou capas de revistas por um “polêmico” romance inter-racial com a atriz Arlete Salles e ostentou o cabelo black power, influenciando o movimento negro no país.
“Aquele cabelo que eu trouxe nos Estados Unidos, que pouca gente lembra, não era só estética, era a identificação de uma raça, de uma maneira de ser, de encarar o seu irmão branco, seu irmão amarelo, e dizer: ‘Olha o negão aí, eu tô na área. Se derrubar é pênalti, entende?'”

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Famoso no país inteiro, Tony chegou a ser detido por agentes da ditadura militar por levantar em cima do palco o punho cerrado, estimulando debates sobre racismo. Ameaçado, foi ao exílio.
Mais uma vez de volta ao Brasil, nos anos 1970, passou a formar elencos de sucesso da TV, da novela Sinhá Moça ao programa dos Trapalhões.
Este repórter pergunta: seria o senhor um Forrest Gump brasileiro? Tony ri.
“É verdade, eu tenho muita história”, comenta ao ser comparado ao personagem interpretado por Tom Hanks que testemunha alguns dos eventos mais notórios da história dos Estados Unidos.
“Um homem sem história é muito ruim, cara. Seja ela qual for, tem que ter uma história”, diz.
“Mas o mocinho é um chato.”
Hoje no ar na TV Globo como Lúcio na novela Êta Mundo Melhor e com agenda de shows intensa, Tony tem um aperto de mão de um homem forte, como sua figura de 1,94 metros, pouco curvada, transparece.
Tirando uma dor nos quadris que o faz ter dificuldade de sentar e levantar de assentos baixos, são mesmo as memórias as únicas capazes de revelar a sua idade.
Quando o seu filho, Lincoln, que o acompanha no palco, enaltece a idade do pai, os gritos da plateia se intensificam.
“Você tem que querer viver. A fórmula é essa: a vontade de viver”, explica Tony.
“E eu sempre tive essa gana de viver, porque eu ainda não consegui alcançar o que eu tenho aqui na cabeça. Eu sei que ele existe. Não dá nem para citar agora o que é. Mas eu sei, ele está aqui. Está pairando aqui.”
Tony não entra em detalhes sobre o que está pairando sobre sua cabeça, mas dá sinais que se trata de um estado de elevação que vai alcançar “com mais conhecimento”.
Mas além da vontade de viver, o que mais faz Tony levantar todo dia como se fosse um homem mais jovem?
“Feijoada e torresmo. Tudo aquilo que faz mal”, brinca. Mas menos cerveja e cigarro, uma dupla que nunca apreciou.
Assista
Ufanismo do negro
Tony Tornado faz uma pergunta em voz mansa quando passa a falar de racismo e avanços para a população negra no Brasil: “Dá para notar que eu sou uma pessoa dócil, apesar do tamanho, né?”.
“Sou meio brutamonte no tamanho e tal, mas eu tenho uma doçura, eu sei disso.”
É uma imagem que provavelmente ele teve de afirmar por muitos anos no Brasil desde 1930.

Crédito, Vitor Serrano/BBC
Termos animalescos e de bruteza fizeram parte do repertório da imprensa brasileira para retratar esse homem alto que havia voltado dos EUA, no fim dos anos 1960, para fazer música no Brasil, como mostra a pesquisa da historiadora Amanda Palomo Alves, autora de duas pesquisas de mestrado sobre o artista.
Um dos artigos mapeado por Alves, da revista Veja, em 1971, tem o título “Macacos nos Seus Galhos”, e chama Tony de “mastodôntico”.
Uma carta de leitor publicada no extinto Jornal da Tarde se refere a ele como um “tipo asqueroso”, após um episódio em que caiu do palco em cima de uma fã no Espírito Santo, naquele mesmo ano.
Mas não foi só da imprensa que Tony chamou a atenção. O regime militar brasileiro esteve de olho nele no momento em que pousou com roupas coloridas e cabelo black power no aeroporto do Galeão, no Rio, deportado dos EUA, conta Alves à BBC News Brasil. Ali, foi interrogado.
Ainda pouco conhecido no Brasil, Tony havia vivido de forma irregular em Nova York logo após ter participado de uma turnê internacional com o grupo de dança Brasiliana, que levava arte negra brasileira ao exterior.
Na cidade, conviveu com nomes como Stockler Carmichael, importante ativista no movimento pelos direitos civis nos EUA e diz ter se sustentado no submundo de tráfico e prostituição.
“Eu dei sorte. Podia ter enveredado por outro caminho”, avalia.
Quando voltou ao Brasil, passou fazer shows pequenos em boates no Rio de Janeiro, até ser convidado pelos compositores Antônio Adolfo e Tibério Gaspar para gravar a música BR-3, oferecida anteriormente a Tim Maia e Wilson Simonal.
A música na voz de Tony foi a vencedora do popular Festival Internacional da Canção em 1970. Ali, subiu no palco e dedicou o prêmio a sua então namorada, a atriz Arlete Salles.
O romance entre um negro e uma mulher de cabelos loiros ganhou ares de “polêmica” no Brasil e gerou uma intensa cobertura que desqualificava a imagem do cantor. Cartas em jornais criticavam abertamente Arlete pelo relacionamento.
“Ela correu todos os riscos comigo”, diz Tony.
Em entrevista a Pedro Bial em 2021, a atriz comentou que ficou “no meio de um furacão”, “afundada num pântano de violência racial” quando iniciou o relacionamento.
“Mexer com preconceito é uma coisa muito difícil. O preconceito tem uma violência insuspeitada para quem nunca viveu”, disse.
Na época, o casal tentou dar respostas na própria imprensa. Uma capa da revista Amiga Tv Tudo, em 1971, trazia a foto do dois abraçados, com a aspa: “Estamos apaixonados, e daí?”.
“Carreguei essa pecha por todo esse tempo, pelo fato de gostar uma pessoa de outra cor. Mas aí era coisa do coração e eu queria explicar isso para as pessoas, que não tinha nada a ver uma coisa com outra”, relembra Tony.
Com a vitória no festival da canção, o soul de Tony impulsionou a ascensão de uma música negra brasileira, com a formação de bailes black no Rio. Mais tarde, o movimento se consolidaria com o nome de Black Rio.
“Ele ficou muito famoso na época. As crianças na rua dançavam como ele”, conta a historiadora Amanda Alves, professora na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Crédito, Reprodução/Biblioteca Nacional
Tony conta que ele trouxe ao Brasil muitas das ideias de igualdade e orgulho do movimento negro americano, “assustando muita gente aqui”.
O “susto” para agentes da ditadura se deu definitivamente em 1971, quando Tony Tornado participou novamente do Festival da Canção. Dessa vez, Elis Regina, jurada, tinha começado a cantar Black is Beautiful (Preto é Bonito).
Performático, ele subiu ao palco e esticou o braço com punho cerrado para cima, fazendo alusão ao gesto característico dos Panteras Negras.
“Quando ela começou a cantar, eu falei: ‘É comigo’. Ela tá falando de um negro lindo, do negro decente, bonito. Sou eu”, lembra Tony,
“E eu tinha e tenho ufanismo de ser negro, sabe?”
A atitude de Tony Tornado teve consequências imediatas.
Ele foi levado pelos militares e saiu do ginásio do Maracanãzinho algemado.
Na delegacia por 12 horas, onde foi obrigado a dançar repetidas vezes aos policiais, queriam saber de Tony estava tentando “fazer algum movimento de protesto no Brasil” e se queriam “jogar os negros contra os brancos”.
“Não era bem isso. O que eu queria era a conscientização do negro, de raça mesmo. Não que os negros viessem a se revoltar contra, mas que tivessem a consciência, que é a coisa mais importante”, diz Tony à BBC.
Apesar da perseguição de agentes do governo, Tony não era exatamente um ativista político ou um opositor contumaz da ditadura, conta Alves. Mas sua existência em si já era uma ameaça.
“Ele não era um cara engajado em política. O aspecto político de sua obra está no seu corpo. Ele contava que os bailes eram apenas para se divertir, para os negros se encontrarem. Mas o que é mais político do que isso?”, avalia a pesquisadora.
Ainda assim, ameaçado e criticado, Tony foi para um exílio autoimposto.
Passou por Cuba, União Soviética, Tchecoslováquia e Angola, o país preferido dele. “Será que é por que lá está cheio de loiros?”, brinca.
Hoje, ao mesmo tempo em que celebra espaço conquistado pelos negros no Brasil, Tony critica “radicais”, a quem chama de “chatos que estragam movimento” por quererem “colocar negros contra brancos”.
“Tem outros caminhos que a gente pode chegar lá sem precisar agredir, sem precisar xingar.”
‘Zelar pelo meu povo’

Crédito, Arquivo Nacional
O repertório atual do show de Tony Tornado e a recepção do público ilustram o momento em que ele diz que está: o de “colher frutos” por dar sua cara à tapa em um Brasil que não dava espaço aos negros.
Ele começa com Sou Negro, em que diz que é “negro, sim, mas ninguém vai rir de mim”. E segue com Manifesto, que escreveu para Angola: “A liberdade eu conheço/ E não tem preço, não/ Eu sei que mereço”.
De volta ao Brasil após o exílio, em meados dos anos 1970, Tony abandonou a carreira de cantor e passou a participar de forma discreta em filmes, séries e telenovelas.
O primeiro contrato com a Globo foi em 1976, para trabalhar com o humorista Chico Anysio.
Antes, na TV Tupi, conheceu os Trapalhões e foi parceiro de Didi, Dedé, Mussum e Zacarias por dois anos. A parceria com Renato Aragão voltaria em A Turma do Didi, em 2006.
Em 1982, ficou famoso pelo mordomo Charles, no humorístico Balança Mas Não Cai, em que só falava duas palavras: “Yes, sir”
“Era aquele texto ‘enorme’, mas fiz com maior dignidade. É melhor fazer um mordomo bem-feito do que um conde malfeito”.
Na novela Roque Santeiro, de 1985, quando vivia um empregado apaixonado pela viúva Porcina de Regina Duarte, era o único negro entre as 136 pessoas no elenco, segundo contabiliza o próprio Tony.
É uma situação bem diferente da que Tony vê agora quando chega aos estúdios da Globo, no Rio, para gravar a novela das seis, Êta Mundo Melhor.
“Cada vez que você liga a Globo, você vê Maju (Coutinho) no jornalismo e você vê Jeniffer Nascimento na minha novela e vê outras em Dona de Mim, todas negras, estrelando. Cara, é um sonho realizado”, celebra.
“Eu tenho uma missão e eu não posso abandonar essa missão, que é zelar pelo meu povo.”
Assista
Tony se emociona quando segue falando de raça: “Apesar da cara chorosa que estou apresentando agora, eu estou cheio de alegria. Estou cheio de orgulho de ser negro. Isso me fortalece.”
No ar aos 95 anos como Lúcio, dono da Rádio Paraíso e personagem importante na novela, Tony ainda segue na espera de novos papéis.
“Enquanto eu estiver trabalhando, é uma procura constante, por isso é que eu não paro.”
Procurando o quê?, pergunto.
“É uma coisa que está no ar. E eu sei que eu vou conseguir um dia alcançar isso.”
Para Tony Tornado, seu melhor personagem e sua melhor história ainda estão por vir.

Crédito, Vitor Serrano/BBC

