Espaços de consumo e de trabalho são os locais onde o racismo é mais evidente em pelo menos dez capitais do país. A pesquisa “Viver nas Cidades: Relações Raciais”, divulgada nesta quinta-feira pelo Instituto Cidades Sustentáveis, em parceria com a Ipsos-Ipec, aponta que os moradores dessas grandes cidades percebem a discriminação de maneira mais clara em shoppings e outros estabelecimentos comerciais, ambientes seguidos pelo trabalho, por ruas e espaços públicos de convivência.
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O levantamento obteve respostas de 3.500 pessoas, via painel online, em Belém, Belo Horizonte, Fortaleza, Goiânia, Manaus, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo, para verificar a percepção dos moradores sobre a discriminação racial em suas cidades e medidas para combatê-la.
Os pesquisadores perguntaram aos internautas que três lugares, pensando no acesso e no atendimento dos diversos serviços, acreditavam haver mais diferença no tratamento de pessoas negras e pessoas brancas. Do total, 57% citaram os estabelecimentos comerciais entre as três opções, como shoppings, lojas, cinemas, restaurantes, bares, mercados e farmácias.
Para Igor Pantoja, coordenador de relações institucionais do Instituto Cidades Sustentáveis, os dados evidenciam a profusão de casos em espaços privados de acesso público.
— São espaços onde qualquer um pode entrar, mas quem está lá dentro está num espaço privado e, sendo de uma posição de poder mais acentuada, se sente protegido para cometer discriminação. São locais de encontro das diferenças sociais. Os dados mostram que os casos, até de assassinatos cometidos em supermercados e outros estabelecimentos, estão longe de serem isolados. Fica evidente que falta um compromisso maior e uma educação antirracista mais fortalecida com quem lida com atendimento ao público. Obviamente os desafios são maiores que isso, é uma questão da sociedade, mas é passado o momento de termos um compromisso direto das empresas, dos estabelecimentos comerciais e, por que não, do sistema educacional sobre como a gente supera essa cultura que vem de centenas de anos — ressalta Pantoja.
Embora não haja diferenças significativas de uma capital para as demais, Salvador (65%) e Belém (62%) registraram o maior patamar de menção à discriminação racial nesses espaços, e o menor foi em Manaus (50%).
Segundo a pesquisa, 10% da população das dez cidades afirmou não existir diferença no tratamento entre negros e brancos. Outros 12% não souberam responder.
Depois dos estabelecimentos comerciais, os lugares mais citados foram o trabalho (44%), incluindo processos de seleção, dia a dia e promoção profissional; e as ruas e os espaços públicos de convivência (31%), como parques e praças. Na sequência, vêm as escolas, faculdades e universidades (29%), o transporte público (16%) e os hospitais e postos de saúde (15%).
Pantoja ressalta que os dados corroboram os de outros levantamentos do instituto, como o da desigualdade na cidade de São Paulo, e apontam para discriminação mais evidente em locais onde há maior fluxo de pessoas e locais de encontro de diferentes camadas sociais.
Outros 14% entrevistados mencionaram ver, de forma evidente, a discriminação racial no ambiente esportivo, como quadras, estádios e clubes; e 9%, no local onde moram. A pesquisa aponta que o preconceito se evidencia em igrejas e locais de culto religiosos, para 6% dos entrevistados, e no ambiente familiar, para 5%.
Embora os entrevistados tenham citado os estabelecimentos comerciais como principal local de evidência do racismo, apenas 15% citaram o posicionamento de marcas e empresas entre as três medidas que mais contribuem para o combate ao preconceito racial em sua cidade. É apenas a sexta entre as opções mencionadas, o que, para Pantoja, evidencia a importância de cobrar mais engajamento do setor empresarial na pauta.
Além disso, um quarto (25%) dos entrevistados defendeu ações das empresas para combater o racismo entre funcionários e clientes. Se os ambientes de trabalho são o segundo lugar de discriminação mais evidente, 22% apontam a maior conscientização em contratações e na promoção de pessoas negras nos diversos setores como uma das três principais medidas de combate.
Segundo o levantamento, a punição e a educação são as principais alternativas defendidas, em geral, contra a discriminação. Nas dez capitais, 42% apoiaram o aumento da punição a atos de injúria racial e racismo, e 34% concordaram com o debate do tema em escolas e a inclusão dele no currículo escolar. Outros 33% destacaram a necessidade de punições mais severas para policiais que cometerem abusos contra pessoas negras.
— A punição é a opção que geralmente aparece em primeiro lugar para qualquer coisa contra a lei. As pessoas pensam que aumentar a punição é mais rápido, mais fácil. Não é exatamente automático assim, a redução do crime. Existe um desejo de querer justiça, reparação nesse caso, mas não necessariamente é o caminho mais estruturante. A educação aparece em segundo lugar, a necessidade de educação antirracista, mas a gente sabe que isso avançou, tem legislações, mas ainda esbarram em questões diversas, no desafio de falar de identidade cultural negra, de religiosidade. A educação é um tema que aparece como valor, proposta, mas que ainda precisa de reforço, de um apoio social em relação a essa concretização — destaca Pantoja.
O especialista exemplifica a necessidade de debater políticas efetivas de educação antirracista com um caso recente em São Paulo, onde quatro policiais militares foram acusados de intimidar pais e professores de uma escola infantil na Zona Oeste. Eles teriam entrado na instituição armados, com um dos agentes portando uma metralhadora, após o pai de uma criança, um PM da ativa, se incomodar com o desenho de uma orixá feito pela filha em aula de educação antirracista. A corporação abriu um procedimento para investigar a conduta da equipe.
Para o Instituto Cidades Sustentáveis, os dados apontam para um consenso sobre a existência do racismo, mas mostram a população negra, alvo da discriminação, com “uma visão mais crítica sobre as raízes estruturais do problema, defendendo com mais veemência as políticas afirmativas e o reconhecimento de privilégios como parte da solução”.
O percentual entre brancos e negros que defende o aumento da punição para atos de injúria e racismo é o mesmo: 42%. A abordagem educacional foi citada por 36% dos brancos e por 33% dos negros e a punição mais severa para policiais, por 32% e 34%.
A maior divergência apareceu nas opiniões sobre políticas afirmativas.
Do total, 14% defenderam como medida de combate ao racismo a eliminação das cotas raciais nas universidades e em outras instituições. Entre os brancos, o apoio a essa medida foi de 18%, seis pontos percentuais acima do identificado entre pretos e pardos.
Por outro lado, 11% dos entrevistados defenderam a ampliação das cotas raciais em cargos de poder, como diretores, juízes, políticos, médicos e 8%, nas universidades públicas. Entre os pretos e pardos, o apoio a essas medidas foi de 13% e 9%; entre os brancos, 8% e 6%.
Quatro em cada dez entrevistados (41%) defenderam que “aumentar a representatividade das pessoas negras na política e nos cargos de poder contribui para diminuir as desigualdades estruturais”; 20% discordam totalmente ou em parte desta afirmação.
Mais da metade dos entrevistados (52%) afirmou concordar totalmente que “a maior presença de pessoas negras e indígenas nas universidades é positiva para toda a sociedade”, o que não procede, total ou parcialmente, para 15%.
Percepção geral e papel dos brancos
Ainda de acordo com a pesquisa, 44% da população das dez capitais concorda totalmente que “o racismo é um problema central da cidade e deve ser enfrentado com políticas públicas específicas”. Mas 18% apontaram discordar, total ou parcialmente, dessa afirmação. Além disso, enquanto 48% disseram concordar que “a violência policial afeta principalmente as pessoas negras”, 18% rejeitaram a afirmativa em algum grau.
O levantamento também aferiu a percepção dos entrevistados sobre o papel da população branca no combate ao racismo. Para 49%, o papel dos brancos é se informar mais e se educar sobre o assunto. E 32% responderam ser importante “se reconhecer como parte do problema, identificando ações racistas nas pequenas atitudes, como gírias e piadas”.
A pesquisa ainda aponta dados sobre o racismo ambiental: para metade dos internautas das cidades pesquisadas, a população negra tem “mais dificuldade de acesso à água potável, coleta e tratamento de esgoto”. Já 48% destacam que os negros são mais afetados por deslizamentos de encostas, desabamento de casas, além de inundações e alagamentos.
A pesquisa envolveu internautas de 16 anos ou mais, das classes ABCDE, que moram nas dez capitais há pelo menos 2 anos. As respostas foram coletadas entre os dias 1 e 20 de julho de 2025.
Para o Instituto Cidades Sustentáveis, os dados do levantamento jogam luz sobre a desigualdade estrutural nas capitais. Isso porque, entre as pessoas brancas, 52% têm Ensino Superior, enquanto pretos e pardos se concentram no Ensino Médio (58%). Além disso, os brancos estão mais presentes nas classes A e B (40%), enquanto pretos e pardos são a maior parte das classes D e E (21%) e mais da metade da faixa de renda até dois salários mínimos (52%).
Igor Pantoja analisa que os dados estão ligados à maior vinculação da população negra a trabalhos de menor qualificação e à informalidade, além do acesso mais precarizado à cidade. Um dos desafios, segundo ele, é pensar políticas públicas para reduzir a desigualdade pelo menos do ponto de vista geracional.
— Tirar essa pessoa adulta desse ciclo é dificílimo, mas como fazer os filhos deles avançarem? Há dados de melhora dos filhos com relação à educação, casa em que mora, renda dos pais. Isso é bom, mas é preciso ter um olhar específico para a população negra. Talvez seja caminho para políticas públicas se debruçarem mais para garantir direitos, evolução e trabalho de qualidade — afirma o especialista. — E não é só acesso a oportunidades, mas políticas que apoiem essas pessoas. Cotas de acesso sem políticas de apoio, de reforço, podem perder efeito. A evasão é grande. Mesma coisa no mercado de trabalho. Se não tiver formas de dar suporte, de alavancar essa carreira, talvez esse esforço se perca — ressalta.
Segundo o Instituto Cidades Sustentáveis, o nível de confiança é de 95%, e a margem de erro para o total da amostra é de 2 pontos percentuais, para mais ou para menos. Já nos resultados desagregados por capital, a margem de erro pode variar de 4 a 6 pontos percentuais, de acordo com a amostra da cidade.