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segunda-feira, novembro 24, 2025

‘O melhor que tenho para dar é agora’, diz Pedro Bial

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A escolha do autor não se deu à toa. Ele foi amigo e testemunha ocular da potência daquela existência. O que Bial não imaginava é que contar a história de Isabel seria contar também sua própria história.

É nessas duas trajetórias que o jornalista de 67 anos mergulha em entrevista ao “Conversa vai, conversa vem”, videocast do GLOBO — que vai ao ar nesta terça-feira (24), 18h, no Youtube e no Spotify —, e avisa: “Estou pra jogo”. Leia trecho da conversa:

Pedro Bial na redação de OGLOBO com Maria Fortuna — Foto: Leo Martins

Isabel é um patrimônio familiar e também do Brasil, né?

Total, em todas as esferas: familiar, da rua, da cidade, do país. É importante que a história dela seja contada, lembrada, reconhecida. Porque representou e existe a continuidade dela. Nos filhos, mas também em tantas mulheres e homens. Principalmente, em mulheres, que são tributárias dessa mulher caudalosa que ela foi. Estou olhando para você, Maria, você é dessa laia, dessa linhagem. Mulheres que não se conformaram a papéis convencionais, subalternos ou não. Isabel, que é uma expressão daquela Ipanema utópica das décadas de 1960, 1970, que também era tributária da avó melindrosa, poeta, mulher à frente de seu tempo, década de 1920, voz ativa que escrevia em jornais, amiga de poetas como Manuel Bandeira. E da mãe professora, de família matriarcal em que o pobre do pai, Francisco, era minoria absoluta.

Mas era ele que cuidava das crianças…

Sim, e era feliz. O fato é que a insubordinação dela não foi contra uma estrutura de família careta, convencional, repressora. Ao contrário. Era uma família intelectual para a qual atleta, esportista era sinônimo de gente burra. Quando Isabel disse “vou jogar vôlei”, a mãe não sabia nem o que era uma bola.

Capa da biografia de Isabel Salgado, a Isabel do vôlei, escrita por Pedro Bial — Foto: Reprodução
Capa da biografia de Isabel Salgado, a Isabel do vôlei, escrita por Pedro Bial — Foto: Reprodução

Era insubmissa por natureza. Mas não era uma desobediência pura e simples, e sim, fruto de uma educação democrática, em que todo mundo podia falar.

Ainda nos treinos de divisões inferiores, antes da seleção, ela ficava surpresa de ficar de castigo por fazer pergunta. Quando ingressa no esporte, percebe que a família dela diferente do jeito que a sociedade se organizava. As entidades do esporte eram dirigidas por militares ou civis com cabeça militar. Isabel não se conformava com aquele tipo de rotina. Em nome de suas ambições e desejos, ela lidou. Tinha uma coisa hábil politicamente. Comprou brigas. Preferia o contorno ao confronto, tinha poder de argumentação, além da sedução, sua segunda pele.

Ela não conseguia estar no mundo sem se posicionar ne? Ouvia pessoas invisibilizadas, ajudou tanta gente… Num mundo cheio de injustiça e onde os vínculos parecem escorrer pelas mãos, o que a Isabel pode nos ensinar?

Ela atravessava a rua para comprar uma briga por alguém menos favorecido. Nos ensina que a gente faz diferença. Que a cada encontro que pode parecer banal com o motorista de táxi, o balconista que te atende, alguém que você cruza na rua, vai fazer diferença.

No início do livro, você conta que foi amigo de Isabel e diz que não buscou distanciamento ou neutralidade. Escolhe o formato de carta aberta como linguagem, é como se estivesse conversando com a Isabel. Não podia ser uma biografia convencional para uma mulher não convencional…

Até tentei, mas soou falso. É rápido como as coisas são esquecidas. Me surpreendi em falar com gente não tão mais jovem que não sabia quem era Isabel. Aí, me caiu a ficha. Então, a ideia era uma apresentação verbete de enciclopédia no início, depois fazer uma carta aberta para abrir, e ir para a biografia convencional. Mas aí ficou a carta… E acho que o leitor meio que se sente atrás do ombro do autor, participando de uma conversa muito íntima, ele está sendo convidado a visitar esse universo que foi e é Isabel.

Um passarinho me contou que vocês namoraram…

Quem te contou? Esses passarinhos são fofoqueiros (risos)… Foi, sim, fui um dos primeiros namorados. Foi tão legal que a gente continuou amigo. Quando acabou o namoro, não houve ressentimento, dor de cotovelo.

É um livro afetivo, para o qual foi convidado pelos filhos a escrever. E conta casos que não se tornaram públicos, como o fato de ela ter varado a madrugada numa festa na véspera da convocação da qual foi cortada porque chegou atrasada. Revela ainda que Isabel, que costumava dizer aos mais íntimos que os filhos não foram planejados, mas muito desejados, considerou fazer um aborto. Como foi manejar o tom? Consultou a filhos em momentos delicados?

Ela foi pressionada pelo pai da Maria Clara a não ir adiante na gravidez. No caso do não aborto, fui falar com a Maria Clara. Porque foi ela quem nasceu daquela decisão em favor de seguir adiante com a gravidez. Preferi não cutucar, não ir adiante nos casamentos que não acabaram bem, os dois primeiros. No caso do pai da Maria Clara, o negócio deu tão errado que hoje ela tem o sobrenome do Rui (Solberg, cineasta e casamento mais longo de Isabel). Ficar contando histórias de casamentos infelizes e de brigas… Os homens envolvidos iam ficar constrangidos, e eu não estava ali para constranger ninguém. Nem cito os nomes, só o primeiro nome.

Maria Clara me falou de como foi duro para ela ler o livro e, ao mesmo tempo, da sensação de conforto de ter aquele registro. E falou ainda sobre ter tido contato com a Ipanema mítica, onde você e Isabel crescerem. Importante deixar esse registro para as próximas gerações, não é? Como era viver em meio àquele celeiro de intelectuais, artistas?

Vimos Leila Diniz de barriga de fora na praia. Eu devia ter 12 anos; Isabel, 10. A gente nem imaginava o escândalo que representava. Para a maioria das pessoas, a utopia é alguma coisa no futuro. Para mim, é o passado, a minha infância em Ipanema. A gente entrava no (bar)Veloso para pedir sorvete e dava de cara com Vinícius (de Moraes), Tom (Jobim), Chico (Buarque) tomando chope. Na praia, todo mundo nu, não tinha classe, categoria, nem o preconceito de intelectuais contra atletas. Havia uma troca aberta, genuína.

A promessa de um país…

Exatamente. A expressão de um projeto nacional que se expressa também em Ipanema, no início da década de 1960, pela Bossa Nova, principalmente. Mas também pelo cinema, teatro, artes plásticas. Havia um projeto de Brasil que acaba quando acontece 1964. Morreu aquele projeto de Brasil, mas os valores e ideias que inspiravam e formavam aquele projeto viveram na Isabel. Vivem, de certa maneira, em mim. Aquilo fez a nossa cabeça. Aquele Brasil não chegou a existir. Mas alguns princípios e ideias ficaram, estão presentes. Há uma coincidência entre a emergência da Isabel como pessoa pública e a democratização. Em 1982, ela explode, e a ditadura já estava caindo aos pedaços.

Ir em busca da história de Isabel foi ir de encontro à sua também…

Não percebi isso no início, mas logo vi que estava contando muito da minha história. Quando descrevo aquela Ipanema, as influências que ela sofre…, é a minha vida. Isso foi me permitindo… O raciocínio, muitas vezes, nos trai, é infiel aos sentimentos. Você dá nomes, conceitua e não diz o que está sentindo. Como repórter, eu escrevia com o corpo todo. Não só com a cabeça, mas com o coração e emoções. Mas a gente tenta se conformar à linguagem estabelecida, mesmo que, de vez em quando, subverta. No caso desse livro, não tinha que me conformar a nada. Então, me entreguei total para um discurso emotivo, sem medo de sentimentos.

A morte da Isabel será para sempre recente, porque foi precoce. Mas eu vivia o processo de morte de minha mãe ao mesmo tempo. Ela morreu em julho, com 101 anos. Fez 101 anos no dia 3 e morreu no dia 4. Mas já vinha pedindo para ir. Estava conversando sobre isso com ela, buscamos maneiras de abreviar. O Brasil tem essa lei defasada com relação à modernidade… Agora, o Uruguai já deu um passo, como sempre à frente do resto da América Latina.

Sua mãe te pediu ajuda para morrer? De que forma?

Pediu. Ela não tinha mais prazer nenhum. Adorava ler e não conseguia mais. A vida dela eram as indignidades da decrepitude. Ficar sendo mantida viva… A gente pensou em fazer um suicídio assistido na Suíça. Por um motivo ou outro isso não se deu. Fomos cuidar dos paliativos, que é o jeito de deixar uma pessoa morrer dignamente. Ela era uma fortaleza. Nos paliativos, teve uma pneumonia. Pensamos: “Não vamos dar antibiótico, nada. Se for a pneumonia, vai levar”. Ficou boa. Falei para ela: “Você só batendo a tiros”. Isso é um outro livro…

Mas tudo isso me levou a ter a clareza de que todos nós, com os recursos que a medicina contemporânea nos dá, a vida estendida que se promete, vamos nos defrontar com essa questão. Como a gente quer morrer? Não é mais algo abstrato. Quero viver muito tempo, mas como? Chega uma hora que é muito indigno ser mantido vivo e já não ter prazer nenhum. E claro que mesmo com um desejo de ir embora, dá um medo danado. Mesmo que não seja o medo da morte, como diz o (Gilberto) Gil, mas o medo de morrer. Porque morrer ainda é aqui.

Morrer ainda é estar vivo.

É, ainda dá vontade de mijar (risos).

Filhos, amor como salvação e aprendizados do homem hétero

Pedro Bial — Foto: Leo Martins
Pedro Bial — Foto: Leo Martins

Isabel tinha um projeto de podcast sobre etarismo, muito mais cruel com as mulheres. Mas queria saber se você já sentiu esse gostinho amargo…

Sim. É uma certa ‘sem cerimônia’, principalmente, nas redes sociais. As pessoas se permitem dizer coisas que jamais diriam pessoalmente. Ser chamado de velho para baixo. Não tenho nenhum problema com a palavra velho. Mas tem uma coisa de querer tratar como tio, velhusco. Não posso me queixar. Minha geração está vivendo essa nova velhice. Vamos continuar produtivos, criativos. Acho que o melhor que tenho para dar é agora. Passei uma vida inteira para poder contribuir de uma maneira mais importante, mais aberta, franca. Estou impressionado que, aos 67 anos, estou com um gás e uma vontade de fazer que nem menino eu tinha.

Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil estão aí, 80+, dando aula.

Paulinho da Viola… Estou me tratando. Também tive o vício da Isabel em tabagismo. Tem 20 anos que não fumo, mas fumei muito, lascou bastante meu pulmão.

Hoje, bebo muito pouco, meu vinhozinho, uma taça. Eu bebia muito, a gente bebia muito. Essa geração pegou pesado.

O que te salva? Porque é muita informação, a cabeça pesa, a ansiedade bate. Toma remédio para dormir?

Hoje não uso mais remédio nenhum. Já usei. Quer dizer… uso antidepressivo desde sempre. Parece que, depois de uma certa idade, tem que dar uma reequilibrada química. A gente perde, naturalmente, alguns elementos que precisa para funcionar. Estou convicto que o Tai Chi vai me salvar (risos). Mas o que me salva é o amor da minha mulher, os meus filhos. Eles são, realmente, o sentido da vida. E tenho encrencas de todas as idades. Minha mais velha tem 38; a minha mais nova vai fazer 6.

Falou de antidepressivo… Enfrentou a depressão?

Na virada do século, de 2000 para 2001, tive uma depressão. Foi o único evento na minha vida, mas tenho um pezinho ali. Quando percebo a melancolia… A melancolia é bem-vinda, às vezes. Permite que certos sentimentos aflorem, que visite partes de você que não visitaria se não estivesse triste. Mas, quando percebo a depressão chegando, já me antecipo. Com terapia.

Como é ter cinco filhos e continuar ascendendo profissionalmente? Só sendo homem?

Fico pasmo com a capacidade das mulheres de acumularem maternidade com identidade profissional. Quando vai ser mãe, é obrigatório dar uma interrompida no trabalho. Voltar é difícil. Para o homem, é mais fácil. Não se espera que a licença-paternidade vá afastá-lo. Sou um homem velho, ainda sou imbuído da coisa de ser provedor. Errei muito achando que bastava ser o provedor clássico. Continuo aprendendo.

Abdicou muito do tempo com seus filhos? Se arrepende?

Me arrepender, não. Estou vivendo isso, é uma questão presente. Só, agora, nessa altura do campeonato, estou me dando conta de problemas presentes… Não estou falando do passado… Com relação à prioridade máxima e absoluta que sempre foi o trabalho na minha vida… O trabalho me salva, me salvou. Mas, pela primeira vez, estou percebendo que é uma burrice só trabalhar. Mesmo porque, quando você não trabalha, está plantando as sementes, cultivando a terra para que seu trabalho floresça bem. Se não trabalhar, o trabalho não vai ficar bom. Se você só trabalhar, vai acabar fazendo taxidermia (risos).

O que o homem hétero aprendeu nos últimos anos?

Resisto a dividir os homens, os seres humanos, nessas categorias. A ascensão e emancipação feminina fez muito bem aos homens. Aprenderam que podem afinar a casca, que a vulnerabilidade tem uma força tremenda, que não precisam cumprir com certos papéis sociais e culturais que massacraram gerações. Fico vendo a geração do meu pai e outras gerações…

Aprisionados no machismo…

Uma vida de merda, mantendo uma pose, tudo hipócrita, falso. A gente está com a possibilidade de se libertar de certos papéis. Mas… como digo isso sem ser ofensivo? Homem tem que aprender a ser homem. Quando fica num discurso muito feminista, não cabe. Tem que reconhecer a potência da mulher, tirar o chapéu, entender que é o momento de ela tomar a frente. Mas aprender que existem virtudes masculinas. É preciso ter firmeza, saber cuidar, proteger. Não precisa ficar restrito à caricatura de sempre, mas é importante aprender o que quer dizer isso e não ficar fazendo média com o feminismo. Não! Seja homem.

É caricato dizer as qualidades femininas e qualidades masculinas, mas há diferença grande. Tenho dois filhos homens que cresceram com ascensão da mulher. Digo: “Vejam o que podem dar que só vocês podem. Não tentem não ser homens para aliviar, não sejam homens de quatro patas. Sejam homens direitos, decentes, dignos”. Um homem assim percebe a grandeza da mulher e propicia que isso seja manifestado.

Você teve cinco filhos de quatro relações diferentes. Do alto de sua vasta experiência com as mulheres, o que aprendeu sobre elas?

Invejo e admiro a versatilidade. É uma característica, digamos, feminina, que eu tenho. Fui versátil através da minha carreira. E continuo.

Fico me sentindo quase falso falando isso. Porque é um ideal meu, não me orgulho da minha prática, mas estou mudando. É a seguinte: o amor é atenção. Já ouviu o disco da (cantora espanhola) Rosália? Tem uma faixa com a (cantora portuguesa) Carminho que é alguém falando para outro alguém: “Você lembra de mim? Não está esquecido de mim?”. É essa história de prestar atenção no outro. Atenção é uma forma extraordinária de amor, uma forma de amar que não se resume a uma relação conjugal, mas em relação ao outro, ao mundo. Quer dizer, quando alguém sente que tem alguém prestando atenção em si, se sente muito amado. É muito raro.

São 45 anos de jornalismo, três guerras, quatro copas do mundo, reportagens em mais de 40 países. É uma trajetória que se confunde com a História do mundo. Olha para trás e se sente realizado?

Tem muita coisa ainda para fazer. Estou feliz de ter chegado até aqui, tenho orgulho do que fiz, mas passou. Agora estou encantado com as possibilidades que se abrem na minha carreira na área de documentário.

Foi legal fazer o dos 100 anos do Jornal OGLOBO?

Foi muito legal. A história do século, uma história que não é só do jornal, mas do Brasil. E agora quero investir mais nessa área de produzir, dirigir, escrever audiovisual. E sempre acalentando também projetos literários, escrevendo umas coisinhas. Possivelmente, vou reunir uns poemas aí no ano que vem, lançar um livro de poemas reunidos. Ah, Maria, eu tô pra jogo!

É mais feliz hoje com o ‘Conversa com Bial’, um programa de entrevista de madrugada que virou cult, ou apresentando um reality show para o Brasil inteiro?

Prefiro o cafofinho de hoje em dia. Mas não teria o cafofinho se não tivesse passado a experiência do ‘BBB’. Não teria me formado um profissional mais à vontade com a linguagem do entretenimento. Aconteceu tudo na hora certa. O ‘BBB’ foi um acidente absolutamente inesperado numa hora que eu estava precisando daquilo em termos pessoais. Precisava de menos vida de repórter, para lá e para cá, e priorizar certas questões de filho, de família.

Deve ter ouvido bastante a crítica: um jornalista que cobriu a queda do Muro de Berlim foi apresentar um reality show. Que desafio profissional se encontra num programa desses?

Por ter sido logo no início, dei a sorte de ter que domar, dominar, entender o que era aquilo. Ninguém sabia como era o ‘BBB’. Não tinha discurso de eliminação, a gente não sabia como fazer aquilo. Descobrir, inventar junto com Eugênia Moreira, Boninho, Rodrigo Dourado já foi espetacular. É uma façanha técnica e artística botar um programa no ar em janeiro que vai até maio, 24 horas por dia. Além disso, nós, jornalistas, somos muito de dever de casa. Para apresentar um reality show, não tem dever. Dever é assistir àquilo que, aparentemente, é absolutamente vazio de conteúdo, uma dramaturgia sem evento. Não acontece nada de trágico ou espetacular. No entanto, existe um documentário sobre a vida ordinária, o poder da imagem. Fritar um ovo vira um acontecimento. Sexo… Gente! Anos depois, fui perceber que deu certo quando desisti de me preparar.

Mas ali você mudou de jornalismo para entretenimento. Foi por dinheiro?

Não, não foi por dinheiro. Demorei a ganhar dinheiro. Comecei a ganhar melhor em 2011.

Comparado ao que eu era, riquíssimo. Comparado aos ricos, não.

Ninguém assume que é rico no Brasil, como diz aquele livro…

O livro do (Michel) Alcoforado (antropólogo e autor de ‘Coisa de rico’), né? Rico, rico mesmo é aquele cara que não precisa trabalhar. Eu, se parar de trabalhar, acabou…. Não tem jeito. Mas sou da camada dos mais privilegiados. Na verdade, nem considero privilégio, acho que é fruto de muito trabalho. Porque não tive herança. Ao contrário… Não ficar aqui contando minhas mazelas. As pitangas dos outros são mais azedas ou mais doces. Mas acho que, sim, enriqueci de grana e enriqueci como pessoa.

Se eu fosse uma boa jornalista, o que deveria te perguntar?

Você é uma ótima jornalista, uma excelente entrevistadora e revela isso. Porque o que é uma entrevista? Em princípio, é dar voz ao outro. No entanto, em todas as suas entrevistas, matérias, a sua voz está presente. Você tem uma marca. Às vezes, começo a ler a reportagem e não vi ali quem assinou. Eu sei que é sua. Vou lá em cima só confirmar. E a sua voz é o seu ouvido, né? O bom entrevistador tem uma coisa de psicanalista, de ouvir. E, de certa maneira, contraria a máxima do jornalismo. O jornalista é aquele que sabe separar o joio do trigo e publica o joio. E você, não. Você deixa o trigo das pessoas florescer.

Poxa, muito obrigada. Mas, então… o que eu deveria te perguntar?

Ai, meu Deus do céu! Eu não vou te contar de jeito nenhum (risos). Vou te dizer o seguinte: quando tenho alguma pergunta para fazer, tem a máxima do jornalismo inglês, aquela hipocrisia, no bom sentido, da cultura britânica: “Não existem perguntas indiscretas, apenas respostas indiscretas”. E aí você aplica isso no “não existe pergunta idiota, só resposta idiota”… Por aí vai… É que existe um mecanismo no jogo da entrevista: a pessoa que se propõe a ser entrevistada se sente obrigada a responder. Já ouviu alguém dizer para você “não sei responder”?

Só o meu pai, quando o entrevistei…

É, mas aí era porque é o seu pai. Sabe quem também não sabe dizer “eu não sei”?

A inteligência artificial. É uma loucura. Aí você fala: “Está errado”. E ela: “Oh, desculpe meu equívoco”. O grande patrimônio do ser humano é a ignorância e reconhecer essa ignorância. Assim foi a revolução científica: “Não sei, vou tentar saber. Vou procurar saber”.

Quando sabe que fez uma boa entrevista? O que está naquele contexto que você fala: “Caraca, fiz um golaço”?

Quando percebe que o entrevistado baixou as defesas. Costumo fazer essa distinção entre entrevista e conversa. Na entrevista, muitas vezes, como repórter, eu ia com certos interesses. “Quero saber isso, pegar esse cara por aqui. Ele está me enganando e tal”. Uma conversa é mais um frescobol. Então, eu sinto. Difícil dizer o que me garante. Mas saio com tranquilidade e confiança quando reconheço qualidade.

Você sabe quando uma coisa é boa. Mas é difícil dizer porque. É mais fácil dizer porque é ruim. Quando vê uma coisa ruim, sabe criticar, dizer “é ruim por causa disso, daquilo”. Quando é boa, é mais difícil dizer. Tanto que a gente aprende mais sobre escrever literatura lendo um livro ruim, aprende mais sobre cinema vendo um filme ruim. Porque os defeitos ficam evidentes. É quase um clichê isso, mas é muito mais fácil saber o que você não quer do que o que você quer.

Sim, mas quando percebe que tirou o melhor que aquela pessoa tem para dar? Como faz para chegar nisso?

É intuitivo. Sei exatamente o que está dizendo. Esse é um dos sinais que a entrevista deu certo: quando você tira o melhor da pessoa. E a pessoa percebe isso. Mas é intuitivo. Às vezes, é quando você, inadvertidamente, sem querer, reconhece na pessoa alguma coisa que ela mesma não tinha reconhecido. E aí, primeiro, a pessoa fica apaixonada por você, né? (risos) Porque reconheceu um talento… Aí você está lascado. Porque és eternamente responsável… (risos)

Isso conversa com o que você falou sobre a importância da gente fazer o dever de casa, da pesquisa. Mas também de estar totalmente presente. Largar o roteiro e ouvir o que a pessoa está te falando, pode ser muito melhor do que a pergunta que tem para fazer…

Você faz o dever de casa, mas chega na hora tem que jogar fora. Roteiro é algo a que você volta se deu ruim, se deu branco, se interrompeu. Aí você procura ali uma inspiração.

Qual a importância da escuta num momento que ninguém ouve ninguém?

Mais do que nunca, é dramaticamente importante. Porque estão confundindo liberdade de expressão com essa possibilidade de dizer qualquer coisa. Mas a liberdade de expressão é sempre a do outro. A gente não deveria perder isso de vista: da minha liberdade cuido eu, sou responsável por ela. Mas o desafio mesmo é bancar a liberdade do outro, que pode pensar o oposto. Você pode detestar as ideias do outro, mas tem que brigar para que elas possam ser expressas. Esse negócio de ficar usando a tática do avestruz, enfiar a própria cabeça na terra, ou querendo enfiar a cabeça dos outros na terra, já não deu bom. A gente está vendo que não…

Como faz para entrevistar gente com quem tem intimidade, tipo Fernanda Torres, com quem foi casado?

Ela me dá um baile, dá em qualquer entrevistador… Mas ela é um QI à parte (risos). É difícil. Sempre tento lembrar que não estou fazendo aquela pergunta só pela minha curiosidade, mas pela de quem está assistindo. Algumas coisas que estou careca de saber vou ter que perguntar. Ficar uma coisa muito íntima pode excluir um terceiro. Quando acerta, pode ser divertido, fica um sacaneando o outro, e o terceiro pode pegar carona e rir. Isso já aconteceu: ela me dava uma sacaneada; eu dava outra. A Fernandona (Fernanda Montenegro) me viu pequenininho, era amiga do meu pai. Então, tem essas relações assim. É um desafio…

Falando em desafio… Quais os desafios do jornalismo atual? O que vai acontecer a nossa profissão?

Escrevi um texto para um livro que foi lançado há uns dois anos, chamado “Tempestade perfeita”, com vários jornalistas pensando sobre a crise do jornalismo. Estamos vivendo uma crise de modelo de negócios, de credibilidade, de identidade. Existem distorções nas redações, distanciamento crescente entre as massas e a elite midiática. O que deu em Trump, em representações tortas da democracia. No Brasil, em caso mais extremo… Ficou um texto difícil de ler, estou pensando em transformar em algo mais simples, talvez, uma peça de teatro. É um diálogo entre um velho jornalista e um jornalista menos velho e, no fim, entra uma jovem. Li um editorial do ‘Estadão’, que termina com a mesma palavra com que termino a peça.

Nós somos imprescindíveis e, diante dessa crise existencial do jornalismo, como vamos nos manter relevantes nesse mundo, com essa bendita e maldita liberdade de expressão que as redes sociais dão ambivalência?

O editorial fala de como é nocivo o espírito de militância nas redações. De jornalistas se arrogarem estar falando em nome do bem, do certo, do correto, quando a gente tem que reproduzir o que está acontecendo de maneira clara e, honest independentemente do que a gente ache que é o certo e bom…

Humildade. Somos humildes por natureza. Se a gente sai com uma ideia para a rua, os fatos, a realidade, faz questão de nos humilhar, desmentir nossas convicções, leituras. Já tem o treino: nosso ego de jornalista é humilhado diariamente. O jornal embrulha o peixe do dia seguinte. E, aí, a gente recomeça com mais garra ainda. Então, é isso: humildade diante da realidade. Essa humildade pode muito mais que qualquer arrogância e certeza. Nós vivemos de dúvidas.

Como vê a questão da inteligência artificial? Vai revolucionar a TV? Vamos ouvir a voz do Bial em um robô?

Estou pensando nisso: como se patenteia uma voz? Queria patentear a minha porque, se fizerem isso, pelo menos, ganho um dim dim (risos). Mas acho assustador, apavorante. Também estou produzindo cinema, e é uma loucura. Pega um orçamento, levanta uma cidade e… vem um prompt? Como vai ser isso? Vai ter cinema orgânico e artificial? O que vai ser eu não sei. Só sei que a inteligência artificial não sabe quem não sabe. E tudo que ela faz é com os olhos para o passado, tudo que já foi dito, produzido, realizado. É disso que se alimenta.

No poema ‘Filtro solar’, você diz: “Faça o que fizer, não se auto congratule demais. Nem seja severo demais com você. As suas escolhas têm sempre metade das chances de darem certo”. Olhando para a sua trajetória, seguiu esse conselho?

Eu não escolhi, peguei os bondes. Passou o cavalo e fui atrás. Talvez, tenha escolhido qual cavalo, qual bonde. Mas não fiquei “agora vou fazer isso; agora, aquilo”. As coisas foram aparecendo. Costumo dizer que sou um exemplo de submissão à lei do mercado. Me formei como correspondente e, quando morava em Londres, achava que nunca mais ia voltar para o Brasil. Estava um correspondente, informadíssimo, tinha virado outra pessoa e veio: “Você vai voltar para apresentar o ‘Fantástico'”.

Ainda mais com a cabeça de jornalismo britânico. “‘Fantástico’, que mistura informação e entretenimento? Loucura, olha só o que o mundo virou!”. Depois, não havia necessidade de um correspondente naquele momento. A Globonews nem tinha começado. Precisavam de um apresentador que fosse jornalista. Era aquele momento que o Cid Moreira e o Sérgio Chapelin… William Bonner assumiu e eu fui fazer o ‘Fantástico’. Aí, surgiu um reality show, e precisavam de alguém que soubesse conduzir ao vivo, que conversasse. Fui vendo e me submetendo à lei do mercado.

E agora? Você diz no livro que, assim como Isabel, não naturalizam o milagre que é viver. Aos 67 anos, o que te motiva, te dá tesão em seguir vivendo? E o que deseja fazer?

Continuo pasmo em acordar e ver a água sair da torneira, a luz acender. Por mais que a sociedade esteja em guerra, em meio à violência, com todas as encrencas… enquanto isso estiver acontecendo minimamente… Não é para todos, e a gente quer que se estenda para cada vez mais. O que me dá tesão? Talvez seja isso: pregar a esperança. Otimismo e pessimismo são duas posições meio toscas, mas a esperança é uma obrigação. E nasce desse maravilhamento milagroso que é estar aqui. Ninguém sai vivo daqui, como disse Jim Morrison. Que se possa servir de inspiração para alguém.

[Fonte Original]

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