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terça-feira, dezembro 16, 2025

“É o desvio que atrai” – Revista Cult

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O que acontece do lado de dentro dos muros do presídio onde cumprem pena alguns dos criminosos mais famosos do país? É a essa pergunta que tenta responder Tremembé, que alcançou o posto de série mais vista no Prime Video no mundo. Os números confirmam a curiosidade do público sobre as figuras que habitam a penitenciária no interior do estado de São Paulo — entre elas, Suzane von Richthofen e Elize Matsunaga — e reacendem debates sobre a ética do que deve ou não ser mostrado e a conversão de criminosos reais em celebridades.

Quem assina a direção e o roteiro da série é a cineasta Vera Egito, que fecha o ano de 2025 com sua primeira incursão no true crime em seu projeto mais comercial, após o sucesso do longa experimental A batalha da rua Maria Antônia.

A proposta para a série, segundo ela, é subverter as idiossincrasias do gênero, com seu excesso de sangue e violência, e “falar do convívio do pós-crime, evitando a exploração da violência, sem criar um debate sobre pessoas já condenadas”, diz.

Em entrevista à Cult, Egito falou sobre os desafios éticos de retratar crimes reais, a liberdade criativa no audiovisual e porque as pessoas se fascinam pelo true crime — “não são ‘as pessoas’, mas nós”, argumenta.

 

Como você entrou em contato com a história de Tremembé e por que decidiu contá-la?

Esse projeto chegou até mim como um convite da Amazon, intermediado por Julia Prioli, executiva criativa da empresa, que me disse que a Prime Video havia comprado os direitos dos livros de Ullisses Campbell e que havia pensado em mim para liderar a série — tanto a sala de roteiro quanto a direção. Gostei da iniciativa justamente pelo desafio de fazer algo diferente do que fazia.

Meu primeiro passo foi ler os livros de Ullisses: duas biografias — uma sobre Suzane von Richthofen; outra sobre Elisa Matsunaga. Julia acreditava que o mais interessante dessa história — o mais assombroso — era o convívio dessas pessoas no presídio. Eu achei essa abordagem surpreendente. E começamos a desenvolver os roteiros com Ullisses durante dois anos.

 

Por que as pessoas se fascinam tanto com true crime?

A primeira coisa que observo é que não são “as pessoas”, mas nós, porque é algo que não pertence só ao outro. Não se trata só do crime, mas daquilo que desvia. O desvio atrai porque amedronta, é misterioso e também nos mostra algo que reconhecemos.

Isso está no cerne do drama. A dramaturgia trabalha com a falha. Personagens que não falham, portanto, não interessam. Na trajetória heroica, por exemplo, o herói supera todas as suas falhas e faz algo grandioso. No roteiro de um true crime, por outro lado, a saga é invertida. Geralmente, ele se afunda cada vez mais e não tem como escapar do que ele é. Isso atrai como o abismo nos atrai: dá medo, mas também dá vontade de olhar.

O true crime remete à cena de uma criança brincando em um parquinho: ela experimenta o perigo das situações brincando, quase se machucando, mas a salvo. O perigo existe, mas é codificado e testado. Na ficção, acontece a mesma coisa. Nós treinamos porque não queremos viver ou praticar um crime na vida real.

 

Alguns de seus trabalhos recentes, como A batalha da rua Maria Antônia (2023) e Tremembé (2025), se destacam por serem baseados em fatos reais. Como é o seu processo de pesquisa e o que guia o seu olhar para montar uma narrativa?

Os projetos que você citou são muito diferentes entre si. Maria Antônia, por exemplo, é um filme autoral, que partiu de um universo sonhado e pesquisado por mim durante anos. A primeira etapa da pesquisa foi, basicamente, a leitura. Conversei também com alguns sobreviventes da batalha ao longo do processo, assim como pesquisadoras profissionais. Mas vale lembrar que se trata de uma ficção.

Eu reuni todos esses eventos reais e os amarrei em uma linha narrativa dramática. O grande trabalho de adaptação é este: inserir os fatos em uma lógica — porque a vida não tem lógica, diferente da dramaturgia, que é dialética.

Tremembé, por outro lado, é um projeto comercial, encomendado por um estúdio. Nesse caso, há uma série de demandas e instâncias de aprovação às quais o diretor está submetido. A pesquisa para a série deve muito à obra de Ullisses, que trabalha a partir do método jornalístico, e tem acesso às fontes.

Outro aspecto ao qual dediquei bastante atenção foi a pesquisa estética, que tem a função de criar uma linguagem e um universo imaginário coesos para o drama. Para isso, precisei estudar a linguagem e os métodos do true crime. Nesse gênero, existe uma ideia preponderante de trabalhar com a linearidade e o resgate das histórias de infância dos personagens. Essa não era a linha da série, pois não queríamos criar uma identificação com essas pessoas. Queríamos falar do convívio do pós-crime, evitando a exploração da violência, e não criar um debate sobre pessoas já condenadas. Por outro lado, decidimos mostrar os crimes, porque é importante que não esqueçamos quem são essas pessoas.

 

Apesar desse cuidado, alguns críticos têm questionado eticamente alguns aspectos da série, como a romantização dos personagens. O que você tem achado dessas críticas?

Aconteceu que Tremembé se tornou um sucesso estrondoso. Chegou a ser a série mais vista do Prime no mundo, o que é algo histórico. Acho que, quando milhões de pessoas assistem a uma produção, ela entra para o debate público. Mas também tem outros aspectos, como a busca pelo clique e o engajamento. Algumas críticas sobre a romantização – que não existe no roteiro — foram muito apressadas. Não há nada de edificante na atitude dos personagens.

A verdade é que as pessoas gostaram muito da série. Acho que os cuidados que tomamos — tanto com as vítimas quanto com a própria elaboração do roteiro — para criar um pensamento crítico — deram certo.

A trilha sonora, por exemplo — que gerou polêmica — foi escolhida justamente para criar uma distância entre o público e os personagens e evitar o envolvimento. É irônico. Acho que muitos comentários partem da ideia de que o audiovisual precisa ser didático, como se o público não entendesse que existe sarcasmo e crítica. A série traz todas essas contradições.

Grandes obras de cinema trabalham com o moralmente duvidoso, como Hitchcock e, especialmente, Fritz Lang — que retratou, em seu filme M, um serial killer de crianças. O interesse pela reprodução do mal real nasce com o cinema. Um crime inventado não tem a mesma força. Acho que há algo a entender nisso. Na segunda temporada da série, alguns elementos desse debate serão assimilados, ora como reafirmação, ora como crítica, ora como metalinguagem.

 

Como são as exigências de um streaming internacional quando um diretor brasileiro é contratado?

Uma série para o streaming é um produto dentro de um mercado, no qual uma empresa multinacional investe alguns milhões em uma obra e espera um retorno. Em Tremembé, por exemplo, trabalharam 1.700 pessoas. Esse dinheiro vem do exterior e é inserido na economia brasileira.

Há interferência em tudo. Desde o elenco até a trilha sonora e montagem. A primeira montagem passa por testes de audiência e repercussão. Seguimos a segunda etapa da montagem a partir do resultado dessa pesquisa. A criatividade da direção vem a serviço de tudo isso. Mas o desafio é esse: construir um trabalho dentro de todas essas necessidades, o que é muito diferente do cinema autoral. E o Brasil tem um mercado imenso para produções nacionais nesse sentido.

Toda a regulamentação para o streaming é muito necessária, e acho que a primeira coisa é o pagamento da CONDECINE para que os streamings contribuam justamente com nossa produção autoral. Até porque o Brasil, como grande consumidor desse produto, gera muito lucro para essas empresas.



[Fonte Original]

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