Conheci o trabalho de Jean Van Hamme quando XIII, obra de premissa extraída de A Identidade Bourne, de Robert Ludlum, foi publicada no Brasil no formato original europeu, mas com dois álbuns por publicação. Imediatamente me apaixonei pela sucessão infinita de bem concatenadas reviravoltas pelo que o desmemoriado protagonista passava e, não tem muito tempo, coincidentemente, comecei do zero a releitura. Quando soube que Thorgal, outra obra clássica do quadrinista belga, seria lançada por aqui em robustas edições de capa dura contendo algo como entre oito ou nove álbuns cada, não tive dúvida em adquirir o primeiro volume cobrindo a saga escrita por Van Hamme e desenhada pelo polonês Grzegorz Rosiński entre 1977 a 1984, ou seja, os oito álbuns iniciais de um total de 29 capitaneados por eles.
E a experiência foi fantástica. A dupla criativa fez, nos quadrinhos, o que Ursula K. Le Guin fizera antes tão bem em seus romances do Ciclo Hainish, ou seja, a fusão que considero ideal de fantasia com ficção científica, com os dois gêneros mesclando-se de tal maneira em um conjunto uno, indivisível e harmônico que impede que o leitor faça a separação e aceite tudo com grande facilidade e naturalidade. Os mais cínicos dirão que o que Van Hamme e Rosiński fizeram foi reunir, sob um mesmo teto, tudo aquilo de mais chamativo na cultura pop, ou seja, vikings, violência, homens musculosos, mulheres bonitas, criaturas fantásticas, ambientações mágicas e ficção científica clássica, em uma “sopa” apetitosa, mas a grande verdade é que é a dupla criativa faz mais do que apenas isso e constrói sem pressa uma história bem amarrada e sempre repleta de novidades a cada novo álbum, em uma estrutura de “situação da vez” (ou caso da semana se eu estivesse falando de série de TV procedimental) que é ao mesmo tempo autocontida e que traz novas peças para compreendermos lentamente a magnitude do projeto.
As histórias giram em torno de Thorgal Aegirsson, um viking que só é viking por ter sido criado como tal, já que ele, apesar de muito habilidoso em praticamente qualquer coisa, tem ideais bem diferentes, de cunho pacifista, sempre tentando encontrar um meio-termo que evite a violência. Mas é a violência que marca o primeiro álbum, A Feiticeira Traída, que nos apresenta ao protagonista como alguém deixado para morrer acorrentado a uma rocha com a maré subindo pelo rei de sua tribo, Gandalf – O Louco, pai da mulher que ama, Aaricia. Sua morte certa é evitada pela chegada de uma misteriosa mulher ruiva com um tapa-olho acompanhada de um lobo que o liberta em troca de ele ficar a seu serviço por um ano, levando-o imediatamente a uma missão que pela primeira vez evidencia o lado de fantasia da saga, em que Thorgal precisa enfrentar um gigante e um anão para recuperar uma arca contendo os Braceletes de Freyr.

Dentre todas as histórias reunidas neste primeiro compilado, apenas a segunda, Quase o Paraíso…, não tem conexão evidente, pelo menos nesse início, com a história macro de Thorgal, sendo completamente fechada em si mesmo, com o herói, durante uma nevasca, caindo em um desfiladeiro e encontrando um paraíso verdejante no fundo com direito a duas mulheres lindas que querem que ele fique por lá. A lógica para a existência dessa segunda e curta história é que ela complementa o número de páginas menor do que o regulamentar de 46 da primeira (que tem só 30), sendo normalmente publicadas juntas mesmo sendo desconectadas. Em A Ilha dos Mares Gelados, terceira história e primeira de 46 páginas, Aaricia, prestes a se casar com Thorgal, é misteriosamente levada por um barco para o norte e seu noivo e toda a tribo vai atras, levando à introdução dos primeiros elementos de ficção científica no épico.
O que segue, daí, são, então, álbuns que trafegam perfeitamente entre gêneros e que cada vez mais aprofundam na história pregressa de Thorgal, revelando sua verdadeira origem – ou verdadeira até o oitavo álbum, já que, como disse, Van Hamme adora trabalhar reviravoltas atrás de reviravoltas – e ao mesmo tempo avançando de verdade no tempo, sem deixar por um momento sequer que a narrativa principal ande de lado e acabe sendo somente uma desculpa para contar mais histórias que não acrescentem nada à mitologia cuidadosamente construída. No entanto, a magia de Van Hamme nos roteiros não seria tão eficiente sem sua parceria com Rosiński e seus traços fortes em rostos e corpos, mas suaves na ambientação quando necessário, com um estilo que trafega entre o levemente caricato e grotesco e o decididamente realista e detalhista até o momento em que as amarras são afrouxadas e, então, eliminadas, e ele então pode soltar completamente a veia criativa como acontece em Além das Sombras, o quinto álbum, em que Thorgal parte em uma jornada progressivamente mais lisérgica por um estranho mundo ou dimensão.
Thorgal é, nesses oito álbuns iniciais, uma prazerosa e engajante leitura que combina e recombina gêneros e nos apresenta a um protagonista fascinante e a uma constelação de personagens coadjuvantes, vilões e ambientações diferentes que aos poucos ajuda a erigir um mundo amplo, rico e complexo, com mitologia original e expansiva. Quando a última página da caprichada edição da Pipoca e Nanquim acaba – incluindo aí o completo material extra em seu final que nos oferece uma visão ampla do processo criativo de Van Hamme e Rosínski – tudo o que passa pela cabeça do leitor é quando é que os próximos álbuns serão disponibilizados. Esse universo viking-mágico-alienígena é, sem dúvida alguma, viciante e cativante, uma verdadeira joia das BDs europeias.
Thorgal: Série Clássica – Vol. 1 (Bélgica/França, 1977 a 1984)
Contendo: A Feiticeira Traída (La Magicienne Trahie), Quase o Paraíso, A Ilha dos Mares Gelados (L’Ile des Mers Gelées), Os Três Anciões do Reino de Aran (Les Trois Vieillards du Pays d’Aran), A Galé Negra (La Galère Noire), Além das Sombras (Au-Delà des Ombres), A Queda de Brek Zarith (La Chute de Brek Zarith), O Filho das Estrelas (L’Enfant des Étoiles), Alinoë (Idem)
Roteiro: Jean Van Hamme
Arte: Grzegorz Rosiński
Editora original: Le Lombard (Tintin), Éditions du Lombard
Datas originais de publicação: 1977 a 1984
Editora no Brasil: Pipoca e Nanquim
Data de publicação no Brasil (encadernado): 1º de setembro de 2025
Tradução: Rodrigo Lobo
Páginas: 420