Crédito, Biblioteca da Universidade de Cambridge
- Author, Christian Kriticos
- Role, BBC Future
Tempo de leitura: 9 min
Alguns dos documentos mais preciosos do mundo estão guardados nos arquivos da Biblioteca da Universidade de Cambridge, no Reino Unido.
Esses manuscritos raros, e muitas vezes únicos, são mantidos com segurança em ambientes com controle climático, enquanto funcionários cuidam deles com atenção para evitar que as páginas delicadas se desfaçam ou que a tinta descasque.
Mas, quando a biblioteca recebeu 113 caixas de documentos e lembranças do escritório do físico Stephen Hawking (1942-2018), surgiu um desafio incomum.
Eles são resultado da adoção precoce do computador pessoal por Hawking, que conseguiu utilizá-lo graças a adaptações e softwares específicos, apesar de ter uma forma de doença do neurônio motor conhecida como esclerose lateral amiotrófica.
Dentro desses disquetes poderia haver todo tipo de informação esquecida ou descobertas até então desconhecidas sobre a vida do cientista. Os arquivistas ficaram perplexos.
Esses disquetes agora integram um projeto da Biblioteca da Universidade de Cambridge para resgatar o conhecimento oculto preso a esse tipo de mídia. O projeto Futura Nostalgia reflete uma tendência mais ampla no volume e no perfil das informações que chegam a arquivos e bibliotecas em todo o mundo.
“A maioria das doações que recebemos vem de pessoas que estão se aposentando ou falecendo”, explica Leontien Talboom, integrante da equipe de preservação digital da biblioteca e responsável pelo projeto. “Isso significa que estamos vendo cada vez mais materiais da era da computação pessoal.”

Crédito, Getty Images
À primeira vista, o plástico resistente dos disquetes, populares dos anos 1970 aos 1990, pode parecer mais seguro do que manuscritos frágeis. O papel apodrece, a tinta desbota e borra. Materiais sintéticos podem durar muito mais, afinal, é por isso que a poluição plástica é uma preocupação tão grande.
Mas a informação digital armazenada dentro dessas caixas rígidas é mais vulnerável do que parece. O óxido de ferro que reveste a fina camada de plástico interna pode se degradar e perder magnetismo ao longo do tempo. Isso significa que os dados podem ser perdidos para sempre.
Dispositivos de armazenamento de dados antigos, como os disquetes, representam, portanto, sérios desafios para os arquivistas.
“Se você tem um livro, não importa quão antigo ele seja, ainda é possível ler”, diz Talboom (desde que se entenda o idioma em que foi escrito, claro).
Com os disquetes, porém, você precisa de equipamentos especializados apenas para acessar o conteúdo. É como precisar de uma chave para abrir um livro. Mesmo assim, talvez não seja possível ler o que está dentro.
“Você também precisa saber muito sobre os sistemas nos quais esses disquetes foram formatados”, afirma Talboom.
Isso gerou preocupação entre arquivistas, historiadores e arqueólogos de que as futuras gerações possam enfrentar uma espécie de “Idade das Trevas digital” ao buscar material dos últimos 50 anos.
Assim como ocorreu na Idade das Trevas europeia após o colapso do Império Romano, não é que nada tenha acontecido. Mas, se não existirem registros da época, será impossível saber o que as pessoas pensavam, sentiam e como viviam.
Para enfrentar esse desafio, o projeto Futura Nostalgia tenta reunir peças de hardware de computadores antigos para ler disquetes raros e incomuns.
Mesmo quando possuem o hardware, a equipe precisa determinar, de forma trabalhosa, como os discos foram formatados para que possam ser lidos corretamente.
“Se as pessoas os guardarem em garagens ou sótãos, eles podem mofar”, diz.
O conteúdo recuperado até agora oferece um vislumbre instigante da diversidade de materiais existentes.
Só na Biblioteca da Universidade de Cambridge, ela já processou disquetes com conteúdos que vão de escritos e listas de resumos do poeta Nicholas Moore a artigos de uma sociedade paranormal.
Mas os disquetes de Hawking continuam sendo seus favoritos. “Foi uma honra trabalhar com eles”, afirma Talboom.

Crédito, Biblioteca da Universidade de Cambridge
A biblioteca recebeu os disquetes de Hawking junto A outros materiais de seu escritório por meio do programa Acceptance in Lieu, que permite que objetos e arquivos históricos relevantes sejam disponibilizados ao público em troca de retribuições fiscais para os doadores.
Junto com os documentos, cartas e impressões, havia uma quantidade considerável de material digital, afirma Talboom.
Os disquetes de Hawking chegaram em dois lotes. O primeiro era composto por discos de 5,25 polegadas, provenientes de um computador formatado em DOS (sistema operacional de disco).
“Basicamente, um Windows antigo”, explica Talboom. “É bastante difícil datar disquetes, porque as pessoas usavam esses mesmos sistemas por muito tempo”, acrescenta.
Ainda assim, acredita-se que esse primeiro conjunto de disquetes seja o mais antigo da coleção. Grande parte do conteúdo ainda está em análise, mas Talboom revela que os discos contêm cartas escritas por Hawking.
Ela também contou que foram encontrados jogos em alguns de seus disquetes — talvez um vislumbre do conhecido lado descontraído do cientista.
O segundo lote é formado por disquetes mais comuns, de 3,5 polegadas. Eles parecem ser de um período posterior e estão associados a um computador Mac, da Apple.
“São principalmente palestras”, diz Talboom. “Do ponto de vista técnico, são muito interessantes, porque as palestras eram tão grandes que ele precisava dividi-las em vários disquetes.”
Hawking era conhecido por escrever discursos e salvá-los em disco para poder apresentá-los posteriormente por meio de seu sintetizador de voz.
Os arquivos digitais do cientista também podem conter pastas com arquivos de texto simples sobre uma ampla gama de temas caros a ele , o que lhe permitia selecionar trechos a serem enviados ao sintetizador de voz durante conversas ou em resposta a perguntas.
As diferenças no tamanho dos disquetes e nos softwares necessários para acessar o material de Hawking são típicas da era dos disquetes.
“Não havia um sistema que dominasse o mercado”, explica Talboom. “Era uma espécie de terra sem lei.”
Para os arquivistas de hoje, isso significa que são necessárias dezenas de máquinas diferentes para ler disquetes de vários tamanhos e sistemas. E, muitas vezes, é preciso fazer longas buscas para encontrar esses equipamentos antigos, de leilões de espólios domésticos a mercados de colecionadores.
“Comprei meu drive de 8 polegadas no eBay”, diz Chris Knowles, participante do projeto Futura Nostalgia. “É um milagre que tenha funcionado.”
“Esses são os formatos mais antigos das nossas coleções”, afirma, referindo-se aos disquetes de 8 polegadas, que pertenceram a Neil Kinnock, líder do Partido Trabalhista no Reino Unido entre 1983 e 1992.
“No início, achávamos que os disquetes continham apenas discursos, que já existiam em outros formatos. Mas, ao realizarmos testes, comprovamos que ao menos parte do material é correspondência com seus eleitores.”
Nesse caso, Knowles teve sorte ao encontrar uma unidade funcional para um formato de disco raro.
Mas Talboom avalia que ficará cada vez mais difícil localizar os equipamentos necessários para desbloquear os dados presos em disquetes. “Essas coisas não vão durar para sempre”, afirma. “Há dez anos, teria sido mais fácil. Mas muita coisa está desaparecendo.”

Crédito, Biblioteca da Universidade de Cambridge
Entre os disquetes encontrados no acervo da Biblioteca da Universidade de Cambridge estão modelos peculiares de três polegadas, que foram populares por um curto período no Reino Unido antes de serem suplantados pelos disquetes de 3,5 polegadas, que se tornaram o tamanho padrão.
“Eles são mais desafiadores porque as unidades de leitura são mais difíceis de conseguir”, afirma Talboom. “Eles têm um sistema de voltagem diferente. Então, há uma série de peculiaridades que precisam ser resolvidas para fazê-los funcionar.”
Não é apenas o hardware que está se tornando mais raro. As informações sobre os softwares usados em disquetes também estão desaparecendo. “Muitas das pessoas que trabalharam nesses sistemas se aposentaram ou morreram”, explica Talboom. “Esse conhecimento está começando a se perder.”
Os disquetes de Neil Kinnock ilustram bem o problema. “Era muito difícil de acessar o material”, diz Knowles.
“Eles foram escritos no processador de texto Diamond Word. Há pouca informação disponível sobre esse sistema.”
Segundo ele, “há muitas comunidades de fãs em torno de qualquer sistema que tenha jogos, e os arquivistas costumam recorrer às ferramentas desses grupos. Mas quando isso não existe, é mais complicado.”
Isso significa que, mesmo quando é possível extrair dados de um disquete, geralmente é necessário um trabalho considerável para torná-los legíveis em dispositivos modernos.
Peter Rees, arquivista do Cambridge History of Innovation Project, compara o processo a uma forma de tradução. “Os filólogos vão ao latim antigo e o traduzem para um texto que podemos ler hoje”, afirma.
“É isso que o projeto Futura Nostalgia está fazendo com esse código ilegível. Precisamos usar equipamentos técnicos para decifrá-lo e depois torná-lo legível.”

Crédito, Biblioteca da Universidade de Cambridge
Essa etapa costuma ser a mais difícil. É por isso que alguns dados recuperados pelo projeto Futura Nostalgia a partir de disquetes ainda não estão disponíveis para os pesquisadores.
“No caso do material de Stephen Hawking, a próxima fase do processo é o acesso”, diz Talboom. A dificuldade de rodar softwares antigos em dispositivos modernos significa que é “bastante desafiador torná-los adequadamente acessíveis aos usuários”, acrescenta.
Knowles observa que, para os arquivistas que trabalham com softwares antigos, o uso de ferramentas modernas pode alterar ligeiramente a aparência ou a sensação do material original. “Tentamos minimizar ao máximo o quanto alteramos as coisas”, afirma.
Por ora, Talboom acredita que o trabalho mais crítico é simplesmente extrair e salvar os dados dos disquetes — antes que seja tarde demais.
“Muitos disquetes têm 40 ou 50 anos”, diz. “O material magnético em que foram gravados está começando a se degradar. Por isso, precisamos salvá-los o mais rápido possível.”
Além do trabalho técnico voltado à comunidade de arquivistas, Talboom também vem envolvendo o público em sua missão de preservar informações esquecidas presas em disquetes.
Em outubro, ela organizou um workshop sobre disquetes na Biblioteca da Universidade de Cambridge, no qual os participantes puderam levar discos antigos guardados em casa para descobrir que conteúdos estavam armazenados neles.
Para Knowles, faz todo sentido envolver o público na preservação dos disquetes. “Há claramente um grande interesse por história familiar”, afirma. “Essa é uma forma de as pessoas recuperarem coisas que pensavam estar perdidas, e de aprenderem com o que membros de suas famílias guardaram.”
No caso de Talboom, ela se interessa especialmente por disquetes de 5,25 polegadas — um dos formatos mais antigos e seu favorito.
“Os disquetes eram muito caros naquela época”, explica. “As pessoas os reutilizavam e sobrescreviam os dados. Por isso, com um disquete de 5,25 polegadas, nunca se sabe o que vai aparecer. O rótulo pode indicar uma coisa, mas o conteúdo pode ser outro.”
Esse mistério faz parte do fascínio de trabalhar com disquetes. “Quando você recebe um arquivo em papel, provavelmente alguém já folheou aquelas páginas”, diz Talboom.
“Mas os disquetes simplesmente nos são entregues. Acho fascinante pensar que alguém guardou um disquete há 40 anos e que eu sou a primeira pessoa a vê-lo novamente. É como descobrir algo.”
Em uma era em que a informação digital é facilmente acessível em qualquer lugar do mundo, Rees concorda que há algo especial em trabalhar com disquetes que contêm softwares e dados que ficaram adormecidos por décadas.
“Você pode achar que as coisas não mudaram tanto em 30 ou 40 anos”, afirma. “Mas os disquetes mostram o quanto o passado é estranho para nós. Graças a eles, temos uma memória melhor.”