Crédito, Arquivo Nacional
- Author, Edison Veiga
- Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Tempo de leitura: 8 min
Na letra, na melodia e na voz de Chico Buarque, uma canção de Natal não precisa ter aquele estilo solene de um coral, muito menos a atmosfera melancólica do inverno europeu.
Para Chico, o Natal também pode ser cantado como uma marchinha de Carnaval, de jeito simples, alegre, descontraído.
O músico tinha 23 anos e uma carreira ascendente quando, em 1967, foi contratado pela maior imobiliária de São Paulo, a Clineu Rocha S.A., para compor um jingle natalino.
Na verdade, não exatamente um jingle — que seria uma canção estritamente publicitária, para promover uma marca —, mas uma música sob encomenda que não menciona a empresa, embora fosse utilizada apenas para divulgá-la.
Ele criou, então, Tão Bom Que Foi o Natal, canção que saiu em um compacto que a firma distribuiu como brinde de fim de ano a seus clientes.
Tornou-se uma raridade — e, também, um conflito entre o músico e a empresa.
“Olha a cidade, que linda/ Até parece deserta/ A meninada dormindo/ de janela aberta”, diz a letra de Chico.
“Papai Noel completa toda coleção/ Boneca, bicicleta, bola, bala e balão.”
A canção tem elementos comuns na obra de Chico, como o clima de crônica e as aliterações e assonâncias que realçam sua poesia.
O músico, compositor e diretor de arte Bruno Leo Ribeiro, do podcast Silêncio no Estúdio, afirma que a canção de Natal faz parte do início da evolução artística de Chico.
“Apesar de parecer simples, A Banda, do seu disco de estreia, retrata o Brasil com sutileza e certa crítica social disfarçada. Na canção Tão Bom Que Foi o Natal, parece que ele usa a mesma temática lírica e melódica, trazendo a melancolia de músicas de Natal para essa marchinha”, analisa Ribeiro.
O pesquisador musical Giovani Marangoni nota na composição qualidades próprias da obra de Chico Buarque, apesar da canção ter sido feita para fins comerciais.
“Ele está muito jovem ali, mas eu consigo ver semelhança inclusive com A Banda, uma ingenuidade, mas uma poética que brinca com as palavras”, pontua Marangoni, autor do livro Vivendo de Música na Era Online e professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

Crédito, Reprodução
O disquinho distribuído a clientes da imobiliária começa com um narrador apresentando Chico, descrito como “ídolo de velhos, de moços e de crianças”.
“Sem falsa modéstia, queremos crer que essa nossa ideia, a de pedir ao Chico que fizesse uma canção de Natal especialmente aos amigos do escritório imobiliário Clineu Rocha, foi das melhores que já tivemos”, diz o narrador.
O lado B do compacto é um amontoado de jingles promocionais da empresa, veiculados nos intervalos comerciais das rádios da época.
As musiquinhas eram cantadas pelos chamados “bandeirantinhos”, os mascotes da empresa.
No meio publicitário, foi um sucesso. Em 1968, a iniciativa da imobiliária recebeu menção honrosa na primeira edição do Prêmio Colunistas, um reconhecimento da Associação Brasileira dos Colunistas de Marketing e Propaganda (Abracomp).
Em tempos sem redes sociais e “excesso de estímulos”, a ideia fazia ainda mais sentido, afirma o designer e especialista em marketing João Finamor, professor da ESPM.
“Um disquinho exclusivo, distribuído como brinde, com música original assinada por um compositor em ascensão, criava exclusividade, prestígio, memória afetiva e diferenciação competitiva”, explica Finamor.
As contas chegam para todo mundo
Chico Buarque já era famoso naquele Natal de 1967. No ano anterior, havia lançado seu primeiro álbum, Chico Buarque de Holanda, com faixas como A Banda, A Rita e Pedro Pedreiro.
Com a primeira, vencera o Festival de Música Popular Brasileira, em interpretação inesquecível de Nara Leão (1942-1989).
No ano em que compôs a canção natalina, ele estava em evidência.
“A contratação do Chico Buarque tinha um objetivo simples e direto: transferir parte do capital simbólico dele para a imobiliária paulistana”, explica o administrador de empresas e executivo de marketing João Ciaco, professor da ESPM.
“Era a tentativa de associar a Clineu Rocha à sensibilidade jovem, refinada e moderna que o Chico representava.”
O ano de 1967 foi agitado, conforme mostra o jornalista Wagner Homem no livro Chico Buarque (Leya, 2012).
Entre viagens, apresentações na TV e participação em dois festivais, Chico ainda gravou três compactos, o LP Chico Buarque de Hollanda vol. 2 e escreveu a peça Roda-Viva, registrou o jornalista.
Chico Buarque de Hollanda vol. 2 traz sucessos como Noite dos Mascarados, Com Açúcar, Com Afeto e Quem Te Viu, Quem Te Vê.
Curiosamente, o álbum tem outra canção festiva não muito conhecida de Chico, Ano Novo.
“E quem já viu de pé/ O mesmo velho ovo/ Hoje fica contente/ Porque é Ano Novo”, diz um trecho da canção.
Se muito provavelmente o que seduziu o então jovem Chico a compor Tão Bom Que Foi o Natal foi principalmente a verdade incontornável de que todos temos contas a pagar — então, um trabalhinho extra cai bem geralmente —, esta parceria entre Chico Buarque e a Clineu Rocha não teria exatamente um final feliz como se espera de um Natal.
Nos anos seguintes, o músico e a empresa tiveram atritos. Segundo relatou Chico posteriormente, a imobiliária passou a veicular a canção em rádios, o que seria um desrespeito com o combinado com o artista de manter a gravação apenas no disquinho-presente.
Em junho de 1977, o cantor falou sobre o caso em entrevista veiculada pelo CooJornal, histórico jornal alternativo que circulou nos últimos anos da ditadura militar.
Àquela altura, a Clineu Rocha havia fechado as portas — com problemas financeiros, encerrou as atividades em janeiro daquele ano.
Na entrevista, o repórter do jornal falou: “Aquela imobiliária de São Paulo, a Clineu Rocha, usou com a maior cara de pau uma música tua como jingle”.
Chico completa: “Mas ela foi à falência como castigo [risos]”.
“Eu fiz uma musiquinha, gravei com violão assim, que era para essa empresa distribuir aos seus clientes de brinde no Natal”, contou o músico na entrevista.
“Mas estava escrito: não era gravação comercial, não era para tocar na rádio, nem nada. Agora, há dois anos, usaram no Natal como jingle da firma. Aí, fui lá e processei, e eles me deram a grana porque era um abuso.”
A BBC News Brasil procurou Chico Buarque para saber detalhes dessa história — inclusive, os valores envolvidos na sua contratação e as condições que haviam sido combinadas.
Sua assessoria de imprensa limitou-se a dizer que não havia como ajudar com tais informações “pois este é um assunto sem relevância dentro da trajetória” do artista.
Essa postura fica clara pela exclusão da canção em coleções que supostamente abrangem toda a musicografia de Chico Buarque, como o livro Tantas Palavras – Todas as Letras, publicado pela Companhia das Letras.
Entretanto, no site oficial do músico, Tão Bom Que Foi o Natal aparece listada em sua obra.
Uma imobiliária inovadora

Crédito, Getty Images
O nome Clineu Rocha traz uma história à parte.
O fundador da imobiliária acabou se tornando uma referência para o setor. Filho de um comerciante e advogado, mudou-se com a família de Descalvado, no interior paulista, para a capital quando criança.
Era o irmão mais velho dentre os cinco filhos, todos de nome começados com a letra C: Clineu, Clóvis, Clunny, Clarice e Clélia.
A família enfrentava problemas financeiros, e as crianças costumavam fazer bicos — como engraxate, por exemplo. Quando Clineu Rocha tinha 11 anos, no segundo semestre de 1932, conseguiu um emprego em uma atacadista de tecidos.
Fez curso técnico de contabilidade e, quando tinha de 19 para 20 anos, foi trabalhar em uma construtora. Na mesma época, decidiu estudar economia. Isso fez com que ele ganhasse a confiança dos diretores da empresa e, aos poucos, foi ascendendo — chegando a chefiar o escritório, cuidando da contabilidade e da engenharia.
Em 1948, fez uma viagem aos Estados Unidos. Lá, encantou-se com a voracidade e o profissionalismo do mercado imobiliário.
Quando voltou ao Brasil, quis implementar o sistema americano em São Paulo, criando uma imobiliária que tivesse um método de compra e vendas mais agressivo.
O primeiro escritório da empresa Clineu Rocha foi aberto em 1950, e o auge ocorreu nos anos 1960.
Nesse período, a Clineu Rocha funcionava em um prédio próprio, na Avenida Angélica, e contava com 400 corretores.
Caio Calfat, vice-presidente de assuntos turísticos imobiliários do Sindicato das Empresas de Compra, Venda e Administração de Imóveis de São Paulo (Secovi), afirma que o modelo implementado por Clineu Rocha passou a ser utilizado pelas “principais imobiliárias”.
Uma das inovações trazida pela empresa foi catalogar as opções conforme os bairros da cidade e por faixas de preço.
Em uma era analógica, a companhia criou filtros que facilitavam a busca, de forma que o interessado conseguia pesquisar dentro da categoria que melhor lhe conviesse.
A Clineu Rocha também é considerada a introdutora da figura do avaliador, um profissional capaz de atribuir o preço correto para o imóvel.
Além disso, destacou-se ao instituir um treinamento padrão para corretores e tornou prática recorrente os anúncios em jornal.
O estilo aguerrido da imobiliária impactou no setor publicitário — o caso do disquinho do Chico Buarque não foi um esforço isolado.
No seu podcast Zebras na Publicidade, em 2021, o publicitário Washington Olivetto (1951-2024) destacou a trajetória de Clineu Rocha, enfatizando que a empresa dele “era a maior imobiliária do Brasil” e “o maior anunciante do jornal O Estado de S. Paulo”.
A decadência da firma espelhou o momento de crise econômica dos anos 1970, marcado por episódios como o embargo de combustíveis imposto a vários países pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) em 1973 e, dentro do Brasil, por uma resolução do Banco Central que limitou, em 1976, o crédito imobiliário, sufocando o setor.
O cenário de inflação também dificultava investimentos.
Raridade
Hoje, o disquinho da Clineu Rocha virou uma peça rara.
Como a tiragem do compacto foi pequena, é difícil encontrá-lo em versão física, mas a música vem sendo reproduzida na internet.
Como Chico Buarque detém os direitos autorais da canção, a reprodução correta da faixa exige a regularização do uso e pagamento para o cantor e para o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad).
Em 2022, a faixa Tão Bom Que Foi o Natal passou a integrar a playlist “Chico Buarque: Raridades Analógicas”, material garimpado pelo jornalista e pesquisador musical Renato Vieira e veiculado pela Rádio Batuta, emissora digital do Instituto Moreira Salles.
Como repercutiu na mídia e entre entusiastas de MPB, isso deu nova vida à quase esquecida canção.
A especialista em projetos culturais Gisele Jordão, coordenadora do curso de Cinema e Audiovisual da ESPM, diz que a faixa não é amplamente conhecida mesmo entre admiradores de Chico, já que o disquinho teve “baixíssima circulação”.
O músico Bruno Leo Ribeiro brinca: “Eu não conhecia essa história e agora estou fascinado”.