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domingo, outubro 6, 2024

Aritigo: O avesso do silêncio — poesia e crítica em Chico Bosco

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Uma das coisas que ocorre aos intelectuais e artistas fazer é desafiar a cultura, especialmente o comodismo espiritual que frequentemente toma conta das artes, do pensamento e dos costumes de uma época. E muitos desses intelectuais e artistas, para fazer isso, precisam usar recursos radicais e desconcertantes, pois o que está em jogo, nesses casos, não é produzir uma obra que agrade e satisfaça os sentidos, mas que perturbe.

O novo livro de Francisco Bosco é esse tipo de livro em que a arte confronta a cultura e a própria arte. “Meia palabra basta” (Record, 2024) oferece ao leitor uma obra urdida por aforismos que batem de frente com alguns hábitos morais e intelectuais dos nossos dias. O aforismo é um dos gêneros mais difíceis de execução porque é fácil errar: são construções literárias curtas, concisas, mordazes, enfim, peças literárias que, num golpe rápido e preciso, expressam a posição singular e crítica do autor diante de temas que colonizam um momento da cultura. O aforismo está entre a poesia e o ensaio e carrega consigo a beleza da primeira e a inconstância do segundo. A brevidade, a simplicidade aparente, a ambiguidade explícita e o tom provocativo e irônico são um convite para a reflexão e a para pensar o particular à luz do universal da experiência humana em torno do sentido da condição humana, da vida, amor, moralidade, política, arte, tempo, morte.

O aforismo não esclarece, não explica, ele causa desconforto: aforismos, sentencia Bosco, são “profundidades em aprofundamento”. Pela brevidade vertiginosa, o aforismo captura toda uma tempestade em um copo d’água.

Karl Kraus (1874-1936) talvez tenha sido o grande mestre contemporâneo do aforismo. Dramaturgo, jornalista, ensaísta e poeta austríaco, ele é considerado como um dos grandes escritores do século XX, especialmente pela sua veia crítica e satírica única. Em um ensaio dedicado à sua obra, Walter Benjamin (1892-1940) salienta que Kraus combateu as “frases feitas”, a retórica ornamental, o “falatório” e os “lugares comuns” que tomavam conta do jornalismo e da crítica cultural de língua alemã da sua época.

Kraus via no início do século XX algo que podemos enxergar nesse improvável século XXI: uma “época barulhenta”, marcada por uma desenfreada ânsia de dizer tudo sobre qualquer coisa, uma época em que a palavra grandiloquente, os discursos plenos de autoridade fundada em si mesmo, um tempo sem pausas, intervalos e vazios. Nessa época, escreveu Kraus, “não esperem uma só palavra minha”; e complementa, com suprema ironia, que pessoa alguma terá dele nenhuma palavra, “exceto estas, cujo único objetivo é manter o silêncio de ser mal interpretado”. Por isso, para Benjamin, “tudo o que Kraus escreveu é assim, com efeito, um silêncio às avessas, em que a tempestade de eventos adentra seu casaco preto, e ele o levante e vira do avesso o forro de cores berrantes”.

“Meia palavra basta” faz o oposto de tudo o que barulhenta marcha de convicções e afirmações de identidades e certezas vêm fazendo: dá um passo atrás, diz-se insatisfeito, “enxerga o escuro com as luzes acesas”, ri de si e evita estar certo. Assim como Kraus disparava contra os ornamentadores (aqueles das “frases feitas”), “Meia palavra basta” navega contra a paradoxal paz mental prometida pelo falatório raivoso que resolve tudo em slogans. Ora, onde a certeza dogmática trepida, onde o fanatismo se despe, é aí que a pessoa, antes autoidentificada, convencida de si, fiel e fanática, se divide e o pensamento encontra algum caminho para criar — sabe-se lá o quê.

Numa certa altura, Bosco se pergunta “O que é entretenimento?” Sobre o que ele está se perguntando — é sobre diversão, cultura de massas, o que afinal? Talvez essa seja uma pergunta sobre tudo o que nos cerca hoje, da política à religião, uma vez que permanecemos no espetáculo perpétuo. Mas aí Bosco responde: o entretenimento é o “que não coloca o sujeito em questão.” Nada contra o entretenimento, contra a diversão e a cultura de massas. Mas há algo que precisa ser dito, ou melhor, algo precisa ser calado para que a pessoa se divida, se ponha em questão. E é claro que a psicanálise joga um papel importante na tessitura de “Meia palavra basta”, ainda que, por denegação, muitos aforismos triturem os analistas e a análise. A psicanálise é importante porque a divisão do sujeito, o sujeito posto em questão está no cerne do trabalho psicanalítico, essa arte para lidarmos com a nossas ilusões e nosso narcisismo. A psicanálise, assim como a arte e a filosofia, nos faça ver que o trabalho necessário de pensar, refletir, ponderar, sopesar “não é dar um passo à frente”, mas dar dois passos para trás para observar nosso próprio espanto enquanto estamos em meio às coisas e às pessoas.

Francisco Bosco faz uma coisa no seu livro que é realmente inquietante. Esse é um livro pequeno, minúsculo, mas não dá para o ler às pressas, correndo as poucas páginas como quem devora um Big Mac. O texto plantado dentro do livro resiste à nossa leitura, não quer a nossa contemplação, está todo o tempo nos empurrando para fora dele, nos retirando de dentro do livro para olharmos para fora, ao redor. Lembro aqui de “O rumor da língua”, de Roland Barthes: “Nunca lhe ocorreu, ao ler um livro, interromper com frequência a leitura, não por desinteresse, mas, ao contrário, por afluxo de ideias, excitações, associações? Numa palavra, nunca lhe ocorreu ler levantando a cabeça?” Minha resposta é sim, agora!

Que estranho livro, esse de Francisco Bosco, que insiste em nos empurrar para fora dele, para nos perdermos da poesia dos seus parágrafos breves e irregulares, e nos encontrarmos com o caos pacificado das “frases feitas”. “Meia palavra basta” é uma afronta; é como um prurido, não mata, mas perturba.

Eu poderia listar aqui os temas recorrentes presentes em “Meia palavra basta”, como o trabalho do intelectual, as relações afetivas e os costumes, o papel da crítica, a literatura e a arte, mas tudo isso seria apontar para dentro de um livro que aponta para fora.

Em um livro publicado há 15 anos, “E livre seja este infortúnio” (Azougue, 2010), Bosco dizia que ali havia “um desejo de concretude”. Qual a concretude possível numa obra literária? Muitas respostas são possíveis, como a memória, a experiência, a subjetividade. Parece-me que nos textos de Bosco, tanto os literários quantos os filosóficos, essa concretude é a palavra acostumada, conformada, um colorido lamaçal no qual nos lambuzamos e nos entretemos. (Você pode perguntar o que é uma “palavra acostumada”: são palavras vazias de significado e cheias de ressentimento.) Por isso, a urgência da poesia, a máquina milenar de ferir suscetibilidades e quebrar palavras para mostrar que não há nada lá dentro.

Isso torna “Meia palavra basta” um livro meio que inclassificável e impossível de ser resenhado. Não há como o conter a não ser aceitar os desconfortos, levantar a cabeça, abandonar o livro episodicamente para bater com o nariz na solidez da névoa densa do presente… e o interpretar mal.

Waldomiro J. Silva Filho é Professor Titular de Filosofia da UFBA e Pesquisador do CNPq. Nasceu em Camacã, Bahia, e torce para o Fluminense. É autor, entre outros, de Porque a filosofia interessa à democracia (2020), A Calamidade (2022), Procurando Razões (2022), Os Dias (2023), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2024.

[Fonte Original]

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