Amanhecia em Cáli no sábado, 2 de novembro, mas dentro do plenário Amazonas só havia delegados com olheiras e muitos assentos vazios. Nada mais da festa de dez horas antes, na sexta à noite, quando a plenária lotada começara e afrodescendentes comemoraram a vitória de ter seu papel na preservação da natureza finalmente reconhecido oficialmente pelas Nações Unidas. Mas, às 7h da manhã, o ponto nevrálgico da Conferência de Biodiversidade, a COP16, tinha aflorado: a demanda por recursos financeiros, que os países ricos deveriam aportar ou mobilizar para ajudar as nações em desenvolvimento e biodiversas a manter em pé suas florestas. Ficou logo claro que não haveria acordo. A saída foi chamar a checagem do quórum. A COP16 foi suspensa e agora se está à espera de sua versão 2.0 em algum lugar, em 2025.
A COP de Cáli havia batido recordes de público para uma conferência de biodiversidade – 22 mil pessoas em duas semanas -, recorde de participação indígena, afrodescendente e de comunidades locais, e recorde de empresas e do setor financeiro (algumas estimativas falavam em 3.000 executivos e gerentes). Também teve vários avanços.
Lançou-se o Fundo Cáli, um mecanismo multilateral para repartir benefícios do uso econômico da biodiversidade através de informações em sequências genéticas digitais, conhecido pela sigla DSI. Os países concordaram em criar um órgão subsidiário permanente, que começará a ficar operacional nos próximos dois anos, para tratar da participação dos povos indígenas e das comunidades locais em todos os processos da convenção. Não é pouca coisa: tanto as COPs de clima como as de biodiversidade só têm dois órgãos subsidiários, um mais técnico, o outro de implementação das decisões.
Recursos disponíveis e governança de fundo multilateral são pontos de atrito
Também houve progressos nas decisões sobre espécies exóticas invasoras e na identificação de áreas marinhas com importância ecológica ou biológica. No primeiro caso – que é um dos cinco principais fatores diretos de perda de biodiversidade – a COP16 reforçou a necessidade de cooperação internacional e abordou questões mais amplas de como lidar com o comércio eletrônico de espécies invasoras, por exemplo. No segundo, concordou com um processo novo para que os países possam identificar as partes mais críticas e vulneráveis do oceano.
Para a primeira conferência depois da aprovação do Marco Global pela Biodiversidade – algo que ficou conhecido como o “Acordo de Paris da Biodiversidade”, tal sua importância -, em 2022, em Montreal, tratava-se de conseguir em Cáli implementar as decisões, o que nunca é fácil.
São 23 metas para preservação, recuperação e uso sustentável da natureza com enfoques amplos, da agricultura à saúde, da tecnologia à criação de unidades de conservação no mar. Implementação, em acordos internacionais, significa dar recursos financeiros e condições técnicas para quem não os têm conseguir implementar o que prometeu. É aqui que os recursos financeiros cumprem um papel fundamental e são a chave do embate entre o mundo rico, que já não tem mais muita biodiversidade, e o em desenvolvimento, muito rico em natureza, mas sem dinheiro ou condições de evitar sua destruição.
A COP16 discutia três flancos de financiamento: a mobilização de recursos, o tipo de mecanismo financeiro mais adequado e a remuneração dos países detentores de biodiversidade pelo uso de seus recursos naturais – este último, o DSI, equacionado no Fundo Cáli. A mobilização de recursos trata de como seria implementado o objetivo 19 do Marco Global. Na ocasião, se identificou uma lacuna de US$ 200 bilhões ao ano de financiamento para a natureza. Deste total, 10% (ou seja, US$ 20 bilhões ao ano) deveriam vir de recursos públicos dos países desenvolvidos para o Sul Global até 2025. Depois, de 2025 a 2030, esse número salta para US$ 30 bilhões ao ano e os outros US$ 170 bilhões viriam de filantropia, do setor privado, de mobilização doméstica de recursos, de bancos multilaterais de desenvolvimento. O problema é que este dinheiro não chega na escala que deveria.
Há aqui uma guerra de números entre os países ricos e todos os outros. Se o objetivo é alcançar US$ 20 bilhões ao ano até 2025, os desenvolvidos dizem que estão perto de US$ 15 bilhões, segundo relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE, o chamado “clube dos ricos”. Os em desenvolvimento criticam a falta de transparência e a metodologia das contas. Nos seus cálculos, o que há é o dinheiro que está no GBFF, sigla para Global Biodiversity Framework Fund, criado há dois anos e colocado de pé pelo Global Environment Facility, o GEF, ligado ao Banco Mundial. Ali haveria US$ 400 milhões, sendo US$ 163 milhões ainda em promessas feitas em Cáli. É nada, em relação ao necessário.
O GEF é um problema para os países em desenvolvimento, pela sua governança desequilibrada. “A estrutura de governança do GEF está alinhada com as decisões de Bretton Woods – quem coloca mais dinheiro tem voto -, algo que o Brasil não vê se encaixando no século XXI e o presidente Lula tem criticado”, disse ao Valor o diplomata Gustavo Pacheco, que liderou as negociações do Brasil na COP16. Uma solução para o enrosco financeiro foi proposta pelos países em desenvolvimento, mas União Europeia, Noruega, Japão e Canadá não quiseram nem ouvir. Foi aí que o caldo entornou e a COP, suspensa. A solução? Nos próximos capítulos das COPs.
A jornalista viajou a Cáli a convite do Instituto ClimaInfo e da The Nature Conservancy (TNC)