Iluminura do manuscrito de “Cidade das mulheres”, Bibliothèque Nationale de France. Divulgação, Editora 34
“É um enigma perene a razão pela qual nenhuma mulher jamais escreveu qualquer palavra de uma literatura extraordinária quando todo homem, ao que parece, é capaz de uma canção ou de um soneto.” A fala de Virginia Woolf em Um teto todo seu questiona o lugar da mulher na literatura em uma sociedade cujo cânone literário é composto quase que exclusivamente por homens. Escrito em 1928, o ensaio surge em um momento em que a discrepância de gênero na literatura transparecia com muita clareza quando a autora andava pelas bibliotecas. Passeando pelas prateleiras, Woolf questiona o retrato que tais autores pintavam de suas mulheres fictícias: “Algumas das mais inspiradas palavras, alguns dos mais profundos pensamentos saíam-lhe dos lábios na literatura; na vida real, mal sabiam ler e escrever e eram propriedade do marido.”
Muito antes de Virginia Woolf publicar Um teto todo seu, no entanto, outra mulher decidiu se aventurar pelas palavras de autores canônicos como Ovídio, Aristóteles e Boccaccio para mostrar os equívocos dos homens nas suas construções sobre a mulher. Escrito por Christine de Pizan entre 1404 e 1405, A cidade das mulheres é considerada a primeira obra feminista da história da literatura ocidental, e sua autora, a primeira a ser remunerada no mundo da escrita.
Pode um livro publicado há mais de quinhentos anos trazer uma contribuição significativa sobre a questão da desigualdade imposta às mulheres nos dias de hoje? Para Ivone Gebara, filósofa da religião e teóloga feminista, a resposta é afirmativa: “o sistema patriarcal e hierárquico excludente que nós vivemos hoje não começou nem quinhentos anos atrás. São mais de seis mil anos de concepção hierárquica de superioridade masculina que se expressa de diferentes maneiras, em várias culturas, até hoje. O preconceito não se produz se não for repetido por séculos.”
No livro, Christine se encontra com três damas que personificam a Razão, a Retidão e a Justiça para exigir que as mulheres, nas palavras de Ivone, “restaurem a realidade de seres pensantes” e questionem a “vontade divina” que as relegou à passividade. Profundamente devota, Christine não escapa dos clichês de sua época, chegando a escrever: “Desfazia-me em lamentações a Deus, angustiada pela tristeza, a ponto de desesperar-me pelo Senhor ter me feito nascer num corpo de mulher”. A partir dessa angústia, ela constrói sua obra, que consiste em questionamentos movidos pela necessidade de uma outra interpretação do cristianismo.
“As referências religiosas masculinas já não dão conta da complexidade social na qual vivemos”, comenta Ivone, “por isso, as perguntas que ela faz são absolutamente contemporâneas.” Em um Brasil marcado por discursos que se valem da religião para negar direitos às mulheres, os questionamentos levantados em A cidade das mulheres parecem muito atuais.
“O mundo religioso, em especial das igrejas cristãs, fundamenta argumentos contra a justiça de gênero em deus. Eles dizem que deus teria escrito isso, mas não existe um personagem físico que se chama deus que escreveu um texto literário. Atribui-se a esse deus imaginário as ideias que eles mesmos construíram na sociedade”, afirma a teóloga. Em 1405, Christine já pontuava as contradições dos argumentos religiosos e resgatava figuras femininas da história e da literatura para comprovar sua hipótese: a inferioridade do sexo feminino não passa de uma construção. Guerreiras como as Amazonas, governantes como Artemísia (“Em todas as leituras encontraste um príncipe ou cavaleiro de tão perfeitas qualidades?”), poetas como Safo e outras figuras femininas da literatura, de Medeia a Penélope, são usadas como símbolos da sabedoria e da força feminina.
“Somos nós, mulheres, que, como Christine, conversamos com a nossa razão e retidão para percebermos as contradições dos argumentos religiosos e buscarmos justiça. Em pleno século 21, nós estamos assistindo a um retrocesso flagrante do cristianismo. As igrejas não convidam ao pensamento. Precisamos contestar isso, questionando: o que é mesmo uma vontade divina? É uma vontade hierárquica, que exclui pessoas, conservando apenas os bem-nascidos e dando autoridade a quem usurpa poderes,” define Ivone.
Christine de Pizan propõe um método: questionar. “Enquanto hoje, infelizmente, muitas mulheres têm medo de fazer perguntas ou buscar novas respostas. Respondem com os mesmos argumentos do mundo patriarcal. Nós temos que retomar essa metodologia.”
A própria obra de Christine está sujeita a questionamentos, apresentando argumentos arcaicos e modernos colocados no papel por uma mulher da mais alta classe, protegida de reis e rainhas da França do século 15. Se ela conseguiu escrever foi por conta de sua condição material: tinha dinheiro e um teto todo dela, as circunstâncias básicas para que uma mulher escreva, de acordo com Virginia Woolf. “Nem tudo que Christine escreve serve para nós, mas o que serve é a atitude crítica de fazer perguntas e de buscar respostas plausíveis dentro do contexto e da situação que ela está vivendo. Isso as igrejas não fazem”, pontua Ivone.
O que há de certeiro na escrita de Christine, no entanto, está em uma atitude básica de memória: ela não despreza a tradição anterior e as histórias das mulheres que lutaram antes dela. Ivone destaca que republicar A cidade das mulheres possibilita que o feminismo continue o trabalho da autora, criando arquivos de luta e pensamento e estimulando a fundação de caminhos alternativos para o futuro do movimento:
“Nós, mulheres, estamos fazendo muito na recuperação de textos sagrados e literários, pois, mesmo que não se apliquem à nossa realidade, estimulam o pensamento. Eu não desprezo, como Christine não desprezava, a literatura anterior. Inclusive os textos filosóficos de Platão, Aristóteles e outros, que criticavam injustamente as mulheres como se nós, por natureza, fôssemos criadas para sermos inferiores, porque nossa existência toca na materialidade da vida. Os filósofos e homens religiosos não gostam da materialidade da vida. Quando chegam perto dela, imediatamente dizem que foi o deus deles que fez o milagre. Basta olhar as igrejas hoje, essa proliferação de milagres supõe que a solução da vida não está no diálogo, no respeito, nas políticas públicas, na educação, na divisão de bens. Christine faz isso, recupera a literatura para pensar, nesse sentido, a materialidade da vida.”