O poeta Manoel de Barros completa 96 anos neste mês, mas não se acomodou ainda à sombra da própria obra nem espera a morte confortavelmente instalado num sofá jururu. Todas as manhãs, ele sobe com sua bengala os degraus para seu “escritório de ser inútil” e anota coisas que transvê ou inventa em pequenos cadernos que ele mesmo fabrica com papel barato e grampeador manual. Biografias de moscas ou de seres sem importância, visões das grandezas do ínfimo, formigas místicas, o amor entre os insetos, coisas que a civilização despreza e pisa e mija em cima e que servem para a poesia; com Manoel de Barros, a língua portuguesa delira em estado de frescor de chamas e orvalho e gozo e brisa e gosma, e a poesia brasileira se renova para além do óbvio. Como é ser poeta depois dos 90? “O corpo pega dores”, desexplica Manoel de Barros, “mas a imaginação flui melhor e com mais liberdade”.
Apesar de seguir sendo um dos poetas que mais vende livros de poesia no Brasil e um dos mais amados por leitores de todo o país, Manoel de Barros se recusa a ocupar o lugar de vedete. Em cerimônia de premiação na Biblioteca Nacional, há dois anos, teve de subir ao palco e fazer um discurso. Em vez disso, fez um desdiscurso: “Tudo o que tenho a dizer é que não tenho nada a dizer”. Foi aplaudido de pé até pelo guarda noturno. No living de sua bonita casa em Campo Grande, na Rua Piratininga, com muros altos e cerca elétrica, onde vive com a musa Stella, Manoel de Barros conta que nunca enviou livros aos críticos nem fez média com jornalistas. Entretanto, confessa: “Gostaria de ler uma resenha do Antonio Candido sobre a minha poesia”. Digo a Manoel que isso seria lindo, mas, ao que parece, infelizmente o autor de Formação da Literatura Brasileira já pendurou as chuteiras.
São dez da manhã em Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, onde 28 milhões de cabeças de gado pastam numa boa e 3 milhões de pessoas esperam que tudo mude para melhor e os passarinhos deliram bêbados de sol. Quero saber mais como é ser poeta e ser Manoel de Barros depois dos 90. “Quando o crepúsculo baixa em mim”, responde, “fico mais pessimista”. Manoel de Barros pergunta se ainda escrevo em portunhol selvagem. Respondo que fiz uma opção inconveniente desde um ponto de vista óbvio: o portunhol selvagem está excluído dos benefícios estatais e institucionais que contemplam os escritores que escrevem na língua nacional. “Mas não importa”, digo, “me dá mais prazer escribir em portunhol selvagem do que escrever assim, corretamente, como um buen aluno de lengua portuguesa”. Manoel se rie e diz: “um dia vão reconhecer isso”. “Somos poetas que temos teko ete, Manoel!”. Ele quer saber o que é isso. Digo que em guarani significa “um modo de ser autêntico, berdadero, com origem propia“. Manoel diz que “liberdade de linguagem é fundamental para a poesia”.
Tomo meu cafezito antes que esfrie. Manoel de Barros me conta que seu filho Pedro sofreu um AVC recentemente e continua de cama em sua casa sob cuidados médicos. “Está paralisado, mas tem uma memória melhor que a minha: lembra de tudo o que leu e com detalhes”. Pergunto ao poeta se ele ainda flana ao amanhecer pelo pátio de sua casa. Manoel de Barros responde que não caminha mais porque tem medo de cair. “Quando a gente envelhece”, diz, “caminha mais ou menos rastejando com os pés. A velhice é uma merda…”. E rimos da velhice humana, que para ele é também uma espécie de terceira infância da poesia.
Manoel de Barros me entrega um exemplar autografado de seu último livro, uma linda plaquete, Escritos em verbal de ave, com uma desbiografia de Bernardo (um dos seus cinco ou sete alter egos), e um par de poemas breves, meio haikais meio microficções selvagens, em que poesia e prosa brotam mescladas sem esforço neurótico de ser mais original que ele mesmo. Agradeço o presente e, depois de ler ali mesmo alguns fragmentos, lhe digo que me alegra constatar que o poeta não degenerou em adulto e agora escreve como um menino do mato de mais de 90. Manoel ri e pergunta sobre o que estou escrevendo. Digo que estou tratando de terminar um romance intitulado Todas las Personas Que Queremos Van a Morir um Dia. “Gosto do título”, diz o poeta. As árvores gigantes da Rua Piratininga estão felizes de cigarras vagabundas. Manoel de Barros se equilibra con sua bengala no meio do mundo que flutua desequilibrado. A única coisa permanente na selva ou na cidade é a impermanência da vida. Então lhe digo, “adeus, poeta”, até logo, e me perco entre as curvas femininas das ruas de Campo Grande, a city morena. A poesia morreu, mas continua viva em meio aos escombros do futuro.
O que é um andarilho?
É um mensageiro que me entrega, de graça, o jeito de ser livre moda ave.
Poderia fazer uma descomparação entre a linguagem do poeta – a aventura errática – e o andar dum andarilho?
O andarilho é um ser desajustado no mundo, por isso provoca estranhezas por onde vai, e o poeta (falo de mim), eu não gosto das normas do idioma, eu procuro fazer distúrbios no idioma. Nós somos insatisfeitos com as normas: ele com as normas da sociedade e eu com as normas da linguagem (desfazer o normal é uma norma poética).
Poderia falar algo mais sobre o dialeto-rã e outros dialetos do Pantanal?
Penso que em todo lugar onde não acontece nada os moradores desse lugar começam a enfeitar o que não aconteceu. Nascem daí dialetos. Se o lugar tem aguadas de rãs pode nascer um dialeto-rã. Se o lugar jaguaretê, pode nascer o dialeto jaguaretês como no conto do Rosa, se o lugar tem muita arara, pode nascer o ararês etc.
Qual língua os peões do Pantanal usam? Também falam por imagens?
A obrigação de completar o que não existe faz com que os peões inventem. E quase sempre inventam por imagens, vez que o vocabulário deles é parco.
Andarilhos não têm pátria nem honras?
Todos os andarilhos têm pátria. Todas as pátrias. E todas as pátrias são os caminhos que não têm fim.
Qual a diferença entre andarilhos e mendigo?
Os mendigos são parados e vivem de esmolas e os andarilhos procuram a liberdade. Os andarilhos do Pantanal, sobretudo, não dependem de esmolas, eles comem frutas selvagens, pescam, abatem caça, etc. Não sei se estou certo. Pode ser que os mendigos sejam mais livres. Eles sabem. Eu não sei.
Que coisas um ou dois ou cinco andarilhos estilo manoelês arcaico levam na bolsa?
Carregam pontas de lápis, pregos enferrujados, pregos de veludo, latas, guizos de cobra para dar sorte e outros amuletos. Uma vez eu vi na sacola de Joaquim Sapé um pedaço de formiga frita. Decerto ele deixou para comer depois.
Andarilhos podem virar árvore?
Bernardo virou árvore várias vezes. Ele tinha dor de árvore. Solidão de árvore seca. Tristeza de árvore sem pássaro. Bernardo passou de árvore a pássaro, de pássaro a rio, de rio a sol, de sol a gente. Vagou muitos anos sem identidades. Aliás, andarilho não tem identidade, pode de repente adquirir gosto de flor. Andarilho é plural sempre.
Você, que já viu até lobisomem que curte gemada, bugio de fralda, assombração que bebe leite, conhece algum andarilho tipo yaguaretê-aba?
Não. Só vi os andarilhos. Minha imaginação que via outros.
Existem passarinhos andarilhos? Sabe a biografia de algum? Quais outros bichos do mato são andarilhos?
Passarinho mais andarilho que conheço é andorinha mesmo. Elas mudam de lugar nas estações do ano. Depois vêm voltando. Urubus dizem que viajam muito, mas só viajam quando sentem presença de carniça. Não seriam nunca andarilhos legítimos porque os andarilhos legítimos não são interesseiros. Viajam por destinação. Por vocação de nada ter.
Como se vestia Joaquim Sapé?
Um paletó sebento, velho, que teria sido um dolmã que ganhara de algum soldado. O dolmã era bosteado de passarinho. Sempre um chapéu de palha também bosteado. De calças rasgadas. Descalço. O olhar furado de inocência.
Andarilhos dão flor?
Conheci um que tinha o gosto de encher os bolsos de gás. Era o Mário Pega Sapo. Ele era mórbido. Gostava de esfregar a barriga fria das gias no rosto. Esse era um andarilho de cidade. O que caracteriza os andarilhos é o desapego das coisas do mundo. Seguem, sem saber, os conselhos de São Francisco das aves. Eles se apegam à liberdade, ao nada.
Moram peixes e borboletas nos bolsos do andarilho?
Eu contei dez gias no bolso do Mário. Imagino que mosca, borboleta, sabiá, peixes. Mas só vi as gias no bolso do Mário.
Andarilhos mbyá-guaranis costumam andar tocando flauta mimby-pu (flauta doce pequena). Conhece algum andarilho músico?
Andarilho músico não conheci. Conheci andarilho mágico: um que vestia de azul o som das cigarras. Ele transpunha para canto arrulhos de pombas. E ele dava às cores formatos de canto.
Existem andarilhos de cidade e andarilhos da selva ou essa distinção é ilusória?
Os andarilhos de mato têm mais intimidade com os pássaros, com as águas, com as árvores. Mas todos são donos de ermos. Enormes trechos de ermo na alma.
O que os caminhos ensinam aos andarilhos?
Acho que os caminhos dos andarilhos ensinam a não chegar, a ir em frente com o corpo até ser planta de novo, até ser pedra de novo, até ser água de novo. Isso prega a renovação.
Que pode falar dos paradoxos do andarilho?
Do lugar onde estou já fui embora. Andar é um dom da inércia. Eu tenho um dom de traste atravessado em mim. Como trovão eu sou levado a sério. Quero não falar até chegar ao silêncio dos vermes. Um pingo de sol na formiga fica maior que o mar. Sou muito concorrido de bobagens. Eu só ando por dentro de mim; se fui em outro lugar, foi pra me ver. Não saio de dentro de mim nem pra pescar. Ando mais por dentro de mim do que na estrada. Passarinhos existem para dar movimento ao entardecer. Eu me recolho no abandono para ser livre. Desenharam nas pedras meu silêncio. Uma árvore que eu vi dava borboleta em vez de flor. Só o cinzento de uma tarde me amanhece. Mexer com gratuidades me enriquecem.
Aos 95 se pode desver ou transver melhor a natureza, as coisas, as palavras?
Em criança fui merecido de águas, de árvores, de rãs, de brisas e de garças. Na frente, aprendi a transver esta natureza. Tentei fazer primeiro o desvelhamento das palavras para não copiar as que eu aprendera. As palavras não tinham comportamento. Então inventei desver o que via para ver novas coisas. Um dia achei um lagarto a lamber o rosto da manhã. Não mudou um pouco a feição da natureza? Gostava de fazer isso. Outra vez eu vi um sapo com olhos de orvalho! Transver me dava orgulho!
Você já disse que o Bernardo era o melhor de você… Que aprendeu e ainda aprende com ele?
Bernardo me ensinou a ser tonto. Ele fazia desobjetos de inutilidade pública. Entre outros, estes: um ferro de engomar gelo; um alicate cremoso; um prego primaveril – por exemplo: Bernardo dementava as palavras. Através de seu exemplo eu consegui fazer: um besouro de olhar ajoelhado!
A inocência serve à poesia?
Inocência para mim é a raiz da palavra. Quando a palavra está nas águas e no amor do chão. Quando a palavra não sabe ainda do nosso egoísmo.
Bernardo falava a língua das aves, o portuñol selvagem do silêncio?
Ambos querem pegar na raiz do silêncio.
Bernardo era íntimo das rãs e dos rios?
Bernardo benzia com a inocência das mãos e dos lábios porque era irmão dos rios, das rãs e das aves.
Como é viver a quinta infância?
Acho que minhas palavras voltaram para as suas raízes. Mas agora estão misturadas às nossas porcarias.
Que é um verso em estado verbal de ave?
Um verso em verbal de ave seria hoje a voz de um poeta parvo.
A infância, as crianças e as aves seguem influenciando sua poesia?
A infância é minha liberdade gramatical. Ela, a infância, pode tudo no sentido de iluminar ou escurecer.
Qual a diferença entre o verbal de ave e o verbal de águas?
Não há diferença entre inocências. Acho que água é mais inocente de que ave. Isso eu acho, mas não tenho certeza.
Já viu algo que ninguém viu?
Vi um caracol pregado em minhas palavras.
Bernardo tem um acervo de desobjetos…
Sim, o acervo de Bernardo consta de 36 desobjetos. Ele tem, por exemplo, um prego que farfalha; um besouro de olhar ajoelhado; uma água viciada em mar.
Douglas Diegues é autor de, entre outros, Astronauta Paraguayo e Triple Frontera Dreams (Eloisa Cartonera, 2012)