Na capa da recente edição da Poesia reunida de Maria Lúcia Alvim, vemos dois retratos que me fazem vislumbrar uma terceira imagem. Uma das fotos mostra o rosto da autora já bastante idosa. Nela, o detalhe significativo, que Roland Barthes chamaria de punctum, são seus olhos fechados. O retrato, feito por Sebastião Rocha Reis para a edição de Batendo Pasto, em 2020, acompanhou a recepção do livro na imprensa, ilustrando a narrativa de sua trajetória deslocada, marcada por uma interrupção de recepção de quarenta anos. Afinal, o livro foi escrito ainda nos anos oitenta, mas Maria Lúcia não procurou publicá-lo. Ela pediu ao amigo e também poeta Paulo Henriques Britto que guardasse o manuscrito inédito e o publicasse depois de sua morte. Só em 2019, pouco antes de seu falecimento, o manuscrito foi finalmente editado e teve uma recepção crítica entusiasta, culminando com o Prêmio Jabuti. Agora a obra poética de Maria Lúcia Alvim foi reunida e publicada num único volume que inclui ainda muitos textos inéditos, e inclusive mais um livro inteiro, intitulado Rabo do olho. Surgiram também, entre os arquivos, outros retratos que mostram a autora em sua juventude. Uma destas fotografias, feita por Ismael Cardim em 1965, foi incluída na capa desta edição póstuma ao lado da outra. Nela também não vemos os olhos da poeta: estão encobertos por óculos de sol que refletem a paisagem.
Estas duas fotografias, representativas da velhice e da juventude da poeta, me levam a pensar numa terceira imagem, esboçada com palavras por Giorgio Agamben em “O que é o contemporâneo?” Contemporâneo, segundo ele, é quem recebe em pleno rosto o feixe de obscuridade que provém de seu tempo; quem não se deixa cegar pelas luzes do século e nelas consegue encontrar a parte da sombra. Referindo-se às “Considerações inatuais” de Nietzsche, ele argumenta que contemporaneidade não implica adesão à atualidade de modismos e tendências, mas justamente um certo deslocamento e defasagem, uma discronia, que permite ver, na obscuridade do presente, luzes de estrelas já extintas que ainda não chegaram até nós. Essa habilidade para ver o que, no passado, não é visível e ainda está por vir traça novas constelações nas configurações descontínuas da contemporaneidade. Nessa imagem de pensamento, reconheço a força da poesia de Maria Lúcia Alvim – gestos e escolhas que fazem dela uma poeta sem geração, e também por isso verdadeiramente contemporânea.
Nascida em 1932, Maria Lúcia Alvim publicou cinco livros de poesia entre 1959 e 1989, mas sempre de maneira estranhamente espaçada. Após sua estreia, com XX Sonetos, deixou passar nove anos antes de publicar Coração incólume e Pose no mesmo ano de 1968. Onze anos depois, em 1979, publicou Romanceiro de Dona Beja e, logo em seguida, em 1980, A Rosa Malvada. Neste mesmo ano, deixou o Rio de Janeiro para viver uma temporada na Fazenda do Pontal, propriedade de sua família, antes de se mudar para Juiz de Fora. Mas ainda na década de 1980, aceitou o convite do editor e poeta Augusto Massi para publicar na prestigiosa coleção Claro Enigma. Em 1989, saiu então Vivenda, uma reedição dos quatro livros publicados anteriormente. Mas depois disto ela não publicou mais nada, embora tenha escrito os dois livros que ficaram mais de quarenta anos guardados, Batendo Pasto e Rabo do olho, além de poemas esparsos e da série Sala de branco. A presente edição traz os livros publicados e os inéditos, além de notas e excelentes paratextos. Esta segunda e recente recepção, deslocada e defasada em relação ao momento de escrita, reforça a contemporaneidade inatual da produção da autora, que não se filiava a nenhuma tendência ou corrente literária.
Uma poeta sem geração
Em entrevista dada por ocasião da publicação de Batendo Pasto, Maria Lúcia Alvim conta que nunca gostou de grupos ou negociou suas escolhas estéticas em função de tendências atuais: “Mesmo dentro da família, entre os mais próximos, sempre houve essa celeuma. Quando fiz o Romanceiro de Dona Beja, meu irmão Chico meteu o pau, disse que aquilo era uma bobagem, escrever um romanceiro no século XX. Fui tocando e fazendo tudo o que fiz. Não me incomodava. Nesse ponto sempre fui muito independente”. Francisco Alvim (1938) – o irmão mais novo mencionado nesta declaração – fez sua estreia como poeta em 1968 e se tornou, como sabemos, um importante expoente da geração dita “marginal”, que se projetaria na década de 1970, explorando formas curtas, linguagem coloquial e cultivando o “poema-piada”. Por outro lado, a produção poética da irmã mais velha, Maria Ângela Alvim (1926-1959), tem características da chamada “geração de 45”, que buscava apuro formal e mesclava temáticas espirituais e preocupações sociais. Embora pertença a esta impressionante fratria de poetas, Maria Lúcia não se inscreve em nenhuma das duas correntes geracionais.
Acentuado pela defasagem entre os contextos de escrita e de recepção, o gesto extemporâneo da poeta nos leva a interrogar a pertinência da generalização da categoria de geração literária. De acordo com Italo Moriconi em Literatura, meu fetiche, entendo que este conceito implica a representação de ideais e opções estéticas, talvez também éticas e políticas, comuns a um grupo etário que escreve e publica num mesmo momento e, podemos inferir, frequentemente também se identifica a um certo recorte geográfico e social. Seguindo a argumentação de Moriconi, compreendemos que a configuração de uma geração necessita também um horizonte de recepção capaz de absorver e integrar sua produção no sistema literário, com seus diferentes valores e “circuitos” de validação. A poesia de Maria Lúcia Alvim evidencia os limites desta representação (e sobretudo da autorrepresentação) de geração literária para a recepção crítica de obras que escapam às tendências do momento, ou que se caracterizam por produção ou recepção tardias, deslocadas.
Significativamente, na apresentação de outra obra deslocada, o único livro de Hilda Machado, datado de 1997 e editado em 2018, Flora Süssekind estabelece uma comparação com o humor resultante da “tensão entre movimento reflexivo e imagem”, que também caracterizaria a produção de Lu Menezes, e com a “dicção falsamente íntima” de Ana Cristina Cesar, expoente da geração dos anos 1970. Assim, apesar da escrita poética de Hilda Machado ser isolada e bastante tardia, iniciada apenas nos anos 1990, o recorte geracional, identificado à faixa etária, aparece como categoria crítica capaz de associar a autora às questões trazidas por “poetas de sua geração”. Poderíamos incluir nesta tensão produtora de imagens reflexivas, identificada por Süssekind, também a poesia de Maria Lúcia Alvim. Proponho, assim, imaginarmos uma constelação de poetas sem geração que, como estrelas muito distantes umas das outras, correspondem a diferentes momentos de emissão de luz observados de um dado ponto de vista – o deste “aqui agora” que nos escapa a todo instante. No traçado desta imagem, esboço um conceito alternativo ao de geração: o de constelação geracional.
Estrela nesta constelação de poetas sem geração, Maria Lúcia Alvim se deu a liberdade de experimentar uma grande variedade de formas e gêneros, que vão do soneto ao verso livre, do haikai ao poema narrativo. Seu uso quase sempre transformador, às vezes irreverente, de formas poéticas tradicionais convive com o poema-piada e com poemas compostos a partir do recorte e da colagem de textos alheios. Suas temáticas líricas, marcadas pela presença do corpo e um forte erotismo são atravessadas pela memória, em entrecruzamentos temporais que implicam também personagens e fatos históricos. Mas as referências à história, presentes em vários de seus livros, em particular no Romanceiro de Dona Beja, e o uso de formas tradicionais não correspondem à nostalgia de algum passado perdido.
Penso que esta sobrecarga de historicidade está relacionada ao olhar estrangeiro da poeta em relação à situação linguística que corresponde à atualidade poética de seu tempo. E este estranhamento se traduz num modo particular de produção de imagens. Nesta poesia, materiais impregnados de historicidade convergem e divergem em anacronismos, superposições e entrecruzamentos, associando-se ao gesto recorrente de recortar e colar, que caracterizou também sua intensa atividade como colagista. Desdobrando seu impulso criativo em sete livros de poesia (contando com os dois engavetados), ela não cessou de produzir contemporaneidades extemporâneas com a matéria obscura de seu tempo, que é também o nosso.
A recente recepção crítica de Batendo pasto destacou a sensualidade de sua impressionante riqueza lexical, que vai juntando no mesmo “balaio de gato” expressões regionais, termos técnicos de agricultura, vocábulos antigos caídos em desuso, marcas de oralidade, registros de linguagem mais ou menos elevados e muitos duplos sentidos. Como observa Julia de Souza em resenha publicada na revista Quatro cinco um, o livro “revigora e atualiza nossa relação com a língua, destitui-nos do assento preguiçoso das leituras en passant e nos lembra da exuberância daquilo que demos como morto: a força da fênix, a força rutilante de uma palavra tão nova porque há muito esquecida: ‘galarim’; ‘espaventar’; ‘óbice’; ‘ajoujar’”.
Esta exploração sensual de meandros pouco frequentados e recantos esquecidos da língua materna leva novamente a pensar aquela contemporaneidade extemporânea de que fala Agamben. Deslocado tanto em relação às tendências de seu contexto de produção quanto em relação àquelas que caracterizam o momento de sua recepção tardia, a poesia de Maria Lúcia Alvim redescobre camadas idiomáticas soterradas, e as traz para o presente da leitura. Entretanto, ao lado das escavações poéticas que mobilizam a historicidade da língua materna, observamos ainda o uso recorrente de palavras em outros idiomas. A investigação lexical, que nos leva a estados anteriores da língua em interessantes entrecruzamentos temporais, vem se associar à alteridade rítmica e semântica de palavras estrangeiras.
Este gesto “translíngue” se intensifica em Rabo do olho, cujo terceiro poema coloca em cena, ironicamente, certa arquiduquesa austríaca que, em seu leito de morte, se exprime em francês com sua voz estrangeira:
Coisas de Áustria
Arquiduquesa
Maria Thereza
em seu leito de morte
– Êtes-vous à l’aise?
Pergunta-lhe o filho
(en la voyant souffrir)
E ela responde:
– Suffisement pour mourir.
“Está à vontade?”, pergunta em francês o filho, ao ver sua mãe sofrer, e a velha aristocrata responde: “o suficiente para morrer”.
Além do uso recorrente de hibridações linguísticas, como no poema citado acima, este último livro acabado pela autora inclui uma série de poemas construídos com citações em francês de Flaubert, textos que foram cuidadosamente traduzidos em notas editoriais. Estes elementos “translíngues” são também impregnados de historicidade, e contribuem significativamente para a produção inatual de contemporaneidades na poesia de Maria Lúcia Alvim.
Gesto translíngue
O recurso à alteridade e à hibridação linguística ainda não foi discutido pela recente recepção crítica da autora, embora já apareça significativamente em Batendo pasto num poema metalinguístico:
P o e s i a
Un sourire et un regard figés
– nestas paragens os recursos do medo
são tão escassos!
ferroa ferroa
“Um sorriso e um olhar fixos” seria uma tradução possível para o verso em francês, que vem logo depois da palavra “poesia”, grafada com maiúscula e letras espaçadas, de tal modo que podemos considerá-la como o título do poema ou como parte inicial dele. A frase remete à ideia de “mot figé” ou “locution figée”, isto é, uma elocução fixa, da qual não se pode modificar nenhum termo, e cujo sentido global não pode ser deduzido de seus elementos constitutivos. Os versos seguintes de fato tensionam a significação numa superposição não consecutiva de ideias. A expressão “nessas paragens” pode indicar o espaço do próprio poema ou, literalmente, fazer referência a essas fixações poéticas, para as quais os recursos do medo seriam escassos. Finalmente, “ferroa”, palavra pouco usual em português, e repetida duas vezes, significa o mesmo que dar ferroadas ou picar com ferrão, aguilhoar, mas em latim quer dizer também “de ferro”, “duro”. O poema permanece aberto e indeterminável porque seu sentido não se constrói na sucessão articulada dos elementos que o compõem, mas por associação evocativa, superposição e fixação de imagens numa composição que nos aguilhoa e interpela.
Como podemos perceber, o gesto translíngue não contradiz o sofisticado trabalho lexical intralinguístico. Os dois recursos criam estranhamento e ambivalência, confrontando-nos à alteridade linguística – seja porque o poema reinventa momentos anteriores da nossa própria língua, seja porque desloca a leitura a outros espaços idiomáticos. Entretanto, estes dois movimentos – centrípeto e centrífugo – se cruzam e tendem a se confundir, tornando porosas as fronteiras entre ritmos e processos de formação das línguas.
Em Rosa Malvada, a presença da língua estrangeira se faz sentir também em sua historicidade desde a epígrafe, um verso da poeta renascentista Louise Labé: “j’ay chaut estreme en endurant froidure” (“Tenho calor extremo aguentando frio”). O livro inclui ainda um texto em francês, colagem de frases do romancista François Mauriac, e outro em inglês. Destaco também um poema curto, “Sibila”, que cita um verso de Emily Dickinson. Mas o exemplo mais interessante é o penúltimo texto do livro, um soneto composto com “recortes” de Louise Labé.
Neste poema, alguns trechos são citações traduzidas para o português e por vezes modificadas, outros versos são citados em francês e há ainda elementos textuais escritos por Maria Lúcia Alvim. Esse material linguístico heterogêneo é tratado de maneira a produzir uma série de assonâncias e rimas, numa estranha e bela alternância rítmica entre as duas línguas. Português e francês se entrelaçam num uso transgressivo e inovador da forma renascentista do soneto em decassílabos, praticada por Louise Labé, poeta francesa que viveu no século XVI. Partindo de um material histórico constituído pela forma métrica tradicional e pela configuração inatual do francês de Labé, o poema é todo feito com recortes e colagem. Associa, portanto, alguns vestígios da época da poeta citada a um procedimento característico das vanguardas modernistas, além de fazer uso de uma forma inabitual de tradução poética que reescreve apenas alguns fragmentos dos poemas do século XVI em português brasileiro do século XX, seu presente de escrita.
Para retomar uma conhecida metáfora de Walter Benjamin n’A Tarefa do tradutor, podemos dizer que a densidade de relações que entrelaçam elementos formais, conteúdos semânticos e escolhas temáticas enraízam o texto poético no interior da “mata da língua”. Assim considerada, a poesia desafia a tradução e contribui para traçar as fronteiras de um território linguístico, de um “aqui” que podemos associar a um “agora” geracional, já que as línguas estão em constante transformação. Benjamin aponta, por outro lado, o caráter deslocado da tradução, tanto em relação a sua própria língua quanto em relação a língua do texto que está em seu ponto de partida. Segundo ele, a tradução vê-se fora da floresta linguística, “diante dela e, sem penetrá-la, chama o original para que adentre aquele único lugar, no qual, a cada vez, o eco é capaz de reproduzir na própria língua a ressonância de uma obra da língua estrangeira”. Neste soneto, entretanto, as duas línguas se ecoam mutuamente, numa espécie de trança. Produzindo efeitos de sentido com dois sistemas linguísticos ao mesmo tempo, Maria Lúcia Alvim desafia a própria diferenciação entre original e tradução.
Os recortes textuais, citados ou traduzidos e adaptados, “colam” entre si através de acréscimos de Maria Lúcia numa construção “translíngue”. Este conceito permite alargar o campo de produção de “ecos” capazes de dinamizar passagens entre línguas a práticas de escrita criativas que não se definem como traduções. No caso do exemplo citado, o hibridismo rítmico vem se associar à temática, produzindo, entre as duas línguas, uma erotização que contribui para a densificação poética da linguagem. Para além das significações que poderíamos buscar através da tradução e da interpretação, o poema faz de suas línguas entrelaçadas uma imagem erótica e babélica: “torre que suscita/tremor de entranha, golfo marulhando”.
Talvez por isso a imagem visual apareça aqui como um subtexto significativo, uma espécie de terceira língua. Entre os recortes de versos de Louise Labé, o poema também evoca uma série de pinturas de Vermeer (1632-1675). A mesma vestimenta de cetim amarelo, mencionada no soneto, aparece em quatro obras do pintor holandês. Duas delas representam mulheres que tocam alaúde ou “luth”, mas a peça de roupa aparece ainda, e com maior destaque cromático, em quadros que mostram mulheres em situações de escrita. Estas imagens, vindas de um outro momento do passado, vem se associar aos entrecruzamentos intempestivos na contemporaneidade deste poema que certamente também antecipa, nas obscuridades de seu tempo, um futuro que hoje aparece com toda a força do presente: mulheres que assumem seus desejos e escrevem, mulheres que inscrevem seus desejos na escrita, mulheres que, redescobrindo no passado o que não foi “carregado em cortejo”, inventam novos ensejos e modos de escrever.
Patrícia Lavelle é poeta, professora do Departamento de Letras da PUC-Rio e pesquisadora do CNPq.