Desde que Belém foi anunciada como sede da COP30, surgiram debates acalorados, muitos deles marcados por preconceitos e uma visão limitada sobre a Amazônia. Antes mesmo da primeira visita oficial da UNFCCC, a cidade foi rotulada como uma “sede precária”, ignorando sua complexidade e a oportunidade única de colocar a Amazônia no centro do debate climático global. Como filhos da terra e membros da Rede Amazônidas pelo Clima (RAC), sentimo-nos na obrigação de rebater esse discurso reducionista. Essa narrativa não apenas revela preconceitos colonizadores, mas também enfraquece um evento que pode ser transformador, desde que encarado com seriedade e compromisso.
É essencial desmistificar a ideia de que a infraestrutura determina o sucesso de uma COP. Hospedar tal evento na Amazônia é uma oportunidade estratégica de expor desafios concretos e apontar caminhos para superá-los, muito além da logística. Afinal, precária é a cidade ou a visão sobre o que significa sediar uma COP?
Infraestrutura é importante, mas não é tudo. Não é a ausência de hoteis ou a dificuldade de locomoção que define o sucesso ou o fracasso de uma COP. Durante a Conferência do Clima COP15 em Copenhague, Dinamarca, em 2009, assim como a COP26 em Glasgow, em 2021, muitas pessoas ficaram hospedadas em cidades vizinhas, devido à falta de leitos disponíveis na cidade-sede. Copenhague é lembrada como uma COP fracassada – certamente não pela infraestrutura, mas pela incapacidade das Partes em alcançar um acordo robusto. Problemas logísticos em COPs são regra, não exceção. Alimentação cara e ruim, oferta de hospedagem caótica, com preços absurdos, além de transporte difícil são características de quase todas as edições. Reduzir a COP30 a isso é um desserviço.
Além disso, o discurso de apontar os problemas de Belém segue uma lógica de culpabilização da vítima. Afinal, a população local é a primeira a sofrer com a falta de infraestrutura. Parece que antes da COP a opinião pública não estava tão interessada nesta pauta. O verdadeiro sucesso de uma COP é medido pela capacidade de avançar compromissos climáticos ambiciosos e viáveis. Belém pode, e deve, se tornar um símbolo de como os desafios do território amazônico podem ser transformados em soluções climáticas globais. Autoridades locais devem aproveitar a “atmosfera de COP” para estimular engajamento e participação social que acelerem a adaptação de Belém aos efeitos da mudança do clima, já em andamento. Ainda há tempo e a Cidade das Mangueiras mostraria que o precário não mora na mentalidade de nossas lideranças.
Política do “Pão e Circo”. Infelizmente, o que se observa é uma política do espetáculo: vídeos mostrando trator derrubando áreas de conservação para abrir espaço para carros, discursos vazios e a busca de protagonismo momentâneo. O discurso político megalomaníaco é carregado de oportunismos. Não precisamos da “maior COP de todos os tempos” porque o sucesso de uma COP não se mede pelo número de participantes. Assim como também não se mede por um sorvete batizado de “COP30”. Belém é uma das Cidades Criativas da UNESCO para a Gastronomia desde 2015, título obtido com muito mérito e sem barras forçadas. Precisamos de menos marketing e mais comprometimento político real, sem cair na armadilha de encarar o evento como uma nova Copa do Mundo.
Não é somente sobre ser sede, mas sobre ser um agente político. Precisamos ir além dessa superficialidade. A COP pode trazer um legado estratégico, mas apenas se as autoridades locais e nacionais entenderem seu papel na construção de uma agenda climática séria e comprometida. Os recursos que chegarão são importantes, mas passageiros. O verdadeiro legado é elevar a posição dos amazônidas na mesa de negociação global.
Não temos vergonha do que a nossa cidade é. Ela é fruto do modo como o estado do Pará foi e segue sendo colonizado; reflete a falta de visibilidade e de priorização por investimentos, desafios estruturais de mais de quatro séculos, e a falta de estratégia política sobre uma região que nunca foi priorizada por nenhum governo da história do Brasil.
O que está em jogo. A Amazônia já vive os impactos da crise climática de forma desproporcional. Enquanto líderes discursam sobre metas globais, o Pará está em chamas. Essa realidade precisa ser sentida e vivida por aqueles que virão ao território para negociar. A COP na Amazônia não pode ser um evento maquiado para agradar visitantes estrangeiros, mas um momento para trazer à tona as contradições, os desafios e as soluções do território. Também é uma oportunidade de reeducar a imprensa nacional. Parte do legado que esperamos é uma imprensa um pouco mais letrada sobre como pautar a Amazônia.
A crítica à infraestrutura é válida, mas precisa vir acompanhada de um esforço genuíno para entender os desafios estruturais da região, que passam pela desigual distribuição de recursos, que historicamente ficam concentrados na região Centro-Sul. Pouco se fala ou se chama à responsabilidade sobre as relações de causa e consequência dessa relação, que envolvem manter a região Norte como espaço a ser continuamente explorado, distante de onde as decisões políticas e os eventos importantes acontecem, e nunca no lugar de protagonismo ou de onde podem nascer boas práticas e políticas modelo replicáveis nacional e globalmente. Não é sobre criticar por criticar, mas sobre construir junto.
O que de fato determina uma COP 30 de sucesso? Há muita expectativa sobre o que é esperado para a COP30 em termos de negociações. Essa será a COP na qual as Partes da Convenção do Clima já terão apresentado as suas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs), assim como os Relatórios Bianuais de Transparência. Os países signatários do Acordo de Paris terão a maior quantidade de informações já disponibilizada em uma COP, permitindo uma atuação da Presidência de forma precisa e informada, como nunca antes, a fim de avançar na ambição. Os compromissos devem seguir uma lógica de ambição contínua, conforme prevê o Acordo de Paris. Além disso, após três edições realizadas em países com regimes autoritários, espera-se que a COP de Belém seja pautada por uma forte atuação da sociedade civil e dos movimentos sociais, que terão mais liberdade para realizar manifestações públicas.
Sendo realizada na Amazônia, é esperada também uma grande mobilização de Povos Indígenas e comunidades tradicionais, inclusive de outros países da região, que se beneficiarão com a proximidade e a oportunidade de acesso aos espaços abertos ao público. Com um forte potencial de participação social, a COP pode se beneficiar com possibilidades de escuta e diálogo mais ativo com as pessoas que são as mais afetadas pela mudança do clima, verdadeiros especialistas em resiliência ecológica, solidariedade social e vida sustentável.
Com o fechamento das negociações no âmbito do G20, cresce a pressão por uma alocação robusta de financiamento climático não somente para mitigação, mas para a agenda de adaptação e perdas e danos. Esse financiamento precisa chegar no chão dos territórios e beneficiar as populações que estão na linha de frente no enfrentamento das mudanças climáticas.
Muito já foi escrito sobre o resultado da COP29, desde a forma como a Presidência desse ano conduziu os trabalhos, até o número fatídico de 300 bilhões em financiamento climático até 2035. Mas a mensagem principal que fica para a COP30 é que será uma nova, difícil batalha para ajudar a evitar os efeitos mais extremos e adversos das mudanças climáticas que já estamos sentindo. Será uma oportunidade de visibilização da Amazônia, em especial, da visibilização de sua excelência. Já está mais do que na hora do mundo e do Brasil atualizarem suas percepções sobre a Amazônia. Que ela possa finalmente deixar de ser vista como vítima, e passe a ser encarada como protagonista de seu próprio desenvolvimento, com iniciativas inovadoras no campo da ciência, do setor privado, da sociedade civil entre outras.
Garantir uma COP de sucesso requer um esforço conjunto, a ser construído sob as bases do multilateralismo, de colaboração e pressão social. O Brasil tem um nível de responsabilidade importante, por chefiar as negociações. Temos uma diplomacia habilidosa, mas esse é um jogo que não se joga sozinho, principalmente quando a credibilidade do sistema multilateral de negociações sobre o clima está em jogo.
Por fim, fica um questionamento retórico: todo mundo quer “salvar a Amazônia”, mas ninguém quer discutir isso no nosso território? Como diria a sempre atual música do Mosaico de Ravena Belém Pará Brasil: “Quem quiser, venha ver, mas só um de cada vez. Não queremos nossos jacarés tropeçando em vocês”. Podem vir, mas pisem com respeito na nossa terra.
Priscilla Santos é mestre em Natureza, Sociedade e Política Ambiental pela Universidade de Oxford, Diretora Executiva da CLIMÁTICA, co-fundadora da Rede Amazônidas pelo Clima (RAC)* e membro da LACLIMA.
*Esse artigo é endossado pelos seguintes membros da Rede Amazônidas pelo Clima (RAC): Adriana Guimas, Alexandre Bezerra, Ana Carolina Cazetta (USP), Bianca Guimarães (PUC/SP), Caroline Medeiros Rocha Frasson (LACLIMA/Oxford/UNISANTOS), Carolina Gueiros, Felipe Storch de Oliveira (Yale School of the Environment), Flávia do Amaral Vieira, Gustavo Ferreira Amaral (UFT), Isabela Caluff Canto, Isabela Lima, Isabela Morbach, João Leão (UEPA),Juliana Maia, Laize Sampaio Chagas e Silva, Larissa Eloi, Larissa Noguchi (FGV), Larissa Pinheiro, Lise Tupiassu (UFPA), Mary Lima (Círculo D Consultoria/FGV), Mayara Viana, Pollyana Bernardes, Tiago Cunha, Vitor Martins Dias (Butler University) e Yanê Amoras Lima.
(*) Disclaimer: Este artigo reflete a opinião do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso destas informações.