Quando o filósofo franco-argelino Jacques Rancière afirmou que o “real precisa ser ficcionado para ser pensado”, ele se referia a uma zona escura da realidade que nem sempre está ao alcance de historiadores e sociólogos. Uma espécie de lacuna que só pode ser preenchida pelo imaginário e cuja compreensão se constrói por meio das emoções e da identificação do leitor com os personagens. É por essa razão que o romance Juventude sem Deus, do escritor austro-húngaro Ödön von Horváth, que acaba de ser publicado pela Todavia, pode ser considerado um registro importante do cotidiano alemão sob os primeiros anos de nazismo.
Publicada em 1938, na Holanda, após ter sido proibida na Alemanha sob a acusação de promover o pacifismo, a obra se desenvolve em um ambiente escolar em que um professor se vê diante de alunos cada vez mais radicalizados pelo discurso nazista. Ao se deparar com a redação em que um deles afirma que “todos os negros são traiçoeiros, covardes e vagabundos”, reage: “os negros também são seres humanos”. E então começam os problemas: primeiro, o pai do estudante vai até a escola questionar o “comentário absolutamente inaudito” feito pelo professor; depois, o próprio diretor o convida para uma conversa a fim de que aquilo não se repetisse mais: “temos de afastar da juventude tudo aquilo que, de alguma maneira, possa vir a prejudicar suas futuras capacidades militares”. Mais tarde, o professor se deu conta de que aquela opinião não vinha do nada: estava nas rádios, nas transmissões, nos restaurantes e, agora, também nas escolas — então, como ele poderia repreender o aluno por repeti-la?
Aos poucos, a sua voz crítica recua e se abstém ante a postura cada vez mais violenta dos alunos, que agora o espionam e anotam suas frases para denunciá-lo. Preocupado com a estabilidade de seu emprego e com a garantia da aposentadoria, ele cala e se limita à correção gramatical dos textos ao invés de confrontá-los. Neste cenário claustrofóbico, Ödön von Horváth toca em uma questão que não cessa de nos atormentar: por que o nazismo não foi impedido em seu ninho antes que tomasse conta da Alemanha? Por que o ódio não foi parado por aqueles que poderiam intervir em um primeiro momento?
A passividade encarnada pelo professor é um dos aspectos mais perturbadores da obra. Diante do silêncio dos que poderiam agir, e até encorajados por esse silêncio, os maus agem livremente, como na síntese formulada no poema do pastor luterano Martin Niemöller, frequentemente atribuído a Bertolt Brecht (“primeiro levaram os comunistas, mas não me importei, eu não era comunista…”). Antes mesmo que os nazistas consolidassem o poder por meio do qual exerceriam o seu totalitarismo, o professor — símbolo do cidadão comum alemão — já estava totalmente rendido, como no momento em que ele assiste, de longe, a uma marcha em celebração ao aniversário de Hitler: marchavam as moças e os rapazes que acreditavam em todas as mentiras propagadas, “e os que não acreditam nelas marcham também”. E então constatou que ele próprio, que também não acreditava, havia pendurado uma bandeira em sua janela para não despertar suspeitas.
O torpor e a indiferença do professor só são interrompidos quando a situação se agrava a tal ponto que um dos alunos comete um assassinato. Rompido o transe, o professor age para que se faça justiça e se estabeleça a verdade. Como observa Michele Gialdroni no prefácio que abre o romance, toda a trama de Juventude sem Deus “é uma metáfora do senso de culpa, de quem, querendo ou não, apoia ou tolera os contextos criminosos”, de maneira que nenhum dos personagens pode ser eximido de culpa. Nem o assassino e nem a vítima, que também assumia o ideário hitlerista. E tampouco o professor, que, na tentativa de salvar a carreira e a tranquilidade de sua própria vida, põe em risco o país.
Ao longo da narrativa, a imagem de um quadro perturba o professor em sua crise de consciência: Jesus pendurado na cruz. Está morto. Maria chora, João a consola. Um raio atravessa o céu negro. À direita, em primeiro plano, um guerreiro de capacete e armadura que reconhece Cristo como o filho de Deus. Mas o que ele fez? Que medida tomou? Permaneceu quieto debaixo da cruz. No fim, o soldado “viveu tranquilo como aposentado”.
O autor Ödön von Horváth faleceu precocemente em Paris, durante o exílio, poucos meses depois de publicar Juventude sem Deus. Enquanto caminhava pelos arredores da avenida Champs-Élysées, um raio atingiu uma árvore, rompendo um galho que desabou sobre a cabeça do escritor, causando sua morte. Se a sua vida não tivesse sido interrompida pela fatalidade de um acidente absurdo, o autor teria assistido à carnificina que os nazistas provocaram nos anos seguintes. E então a alegoria bíblica da covardia poderia ser substituída por uma outra, também do livro de Mateus, que foi incorporada por Brecht à peça Os fuzis da senhora Carrar: “os que lavam as mãos o fazem em bacias de sangue”.
André Rosa é crítico e doutorando em Literatura Comparada pela UFRJ
Juventude sem Deus, Ödön von Horváth. Todavia, 2024. Tradução: Sergio Tellaroli.