O amor narcísico conserva um lugar controverso na psicanálise. Constitutivo por um lado, ele aprisiona a libido nas feições egóicas e imaginárias que se distanciam da falta desejante. O sujeito do desejo é destituído de rosto. Seu perfil alinha-se às vibrações, aos tremores, às intensidades. Lança-se desavisado em direção ao abismo de onde recolhe dores e recompensas. Jogar-se nesse rumo implica riscos. Por isso, não é raro que nossas garras se finquem nos contornos conhecidos do eu como reflexo especular. Miramos para a imagem identitária de nossa constituição subjetiva certos de que a figura pronta trará uma dança mais suave, menos perigosa. Ilusão inescapável.
Seja como for, há outro prisma narcísico a ser indicado aqui: nem sede voraz pelo ardor desejante, nem enamoramento amortecido da imago encerrada; o narcisismo às avessas nasce do sangue que jorra quente entre os cantos dos órgãos. Do ar aquecido que se aspira e percorre as várias partes do peito, estufando-o até que o abdômen peça gentilmente para que ele saia. O ar espirado por cada narina ocupa o espaço rente ao corpo com sua afabilidade invisível, composta de gases e vapor d’água. Em tal narcisismo, ama-se cada uma das batidas do coração, pulsação cujo ritmo nem sempre é uniforme. A angústia do desejo devolve ao eu o rumor inaudível da palpitação, ruído que tange o corpo inteiro. O narcisismo às avessas tateia delicadamente pequenas saliências ou protuberâncias da pele. Constata os pelos a evadirem dos poros. Sente as pálpebras a abrirem-se e fecharem-se para as paisagens que se distribuem ao redor dos olhos. Observa a cada mirada no espelho o novo fio de cabelo branco que nasce através dias. O pé de galinha mais acentuado, a linha expressiva no horizonte da fronte, a covinha viciada: pequenos indícios e cacoetes das alegrias e dos prantos. Entre essas marcas preservam-se ainda blocos territoriais intactos a serem desbravados pelas experiências que advirão. Os músculos distendem-se como massas estrangeiras a lutarem por abrigo. Ampliam o espaço ao dilatarem os tecidos epidérmicos. Pintas, verrugas, manchas, veias: mapa de sinais que indica a existência desses habitantes desconhecidos de um eu revirado em seu contrário.
Nesse narcisismo, a libido instala-se com vagar, respeitando os compassos de um corpo que tem vida própria. Sem impor protocolos oriundos de fora, o sujeito acolhe sua música própria e busca dançar sua coreografia. Em tempos tão demandantes de produções imagéticas de eus empoderados e afirmativos, talvez não nos faça mal também seguir a cadência de tal via narcísica. Que em 2025 experiências amorosas do eu às avessas também possam caber em nossos dias frenéticos e produtivos. Com esse amor delicado, quero desejar um feliz ano para todes!
Alessandra Affortunati Martins é psicanalista e doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP. Autora de Sublimação e Unheimliche (Pearson, 2017), A abstração e o sensível: Três ensaios sobre o Moisés de Freud (E-galáxia, 2020) e organizadora de Freud e o patriarcado (Hedra, 2020).