Contada primeiramente por meio da quarta temporada do famoso podcast – programa em áudio – Projeto Humanos, de autoria do jornalista independente Ivan Mizanzuk, a série documental O Caso Evandro – lançado em 2021, pelo Globoplay – escancara um dos percalços latentes da sociedade brasileira: o desaparecimento de crianças. No conteúdo televisivo, nós somos transportados para uma jornada repleta de outros entraves nacionais, como a violência policial naturalizada, o preconceito religioso, o sensacionalismo da imprensa e, principalmente, a perpetuação de notícias falsas, as quais incriminam inocentes. Sendo uma espécie de narrador ocasional, Mizanzuk é uma voz de autoridade ao contar a história de Evandro Ramos Caetano, garotinho de apenas 6 anos que, em 6 de abril de 1992, sumiu misteriosamente na cidade interiorana e litorânea de Guaratuba, no Paraná, e nunca mais foi encontrado com vida. Ao longo dos episódios, são exibidos diversos materiais da época, como entrevistas e reportagens, para dar credibilidade e promover a ilustração dos fatos e das notícias.
Dentre o material apresentado, destacam-se as prisões dos sete inocentes, presos injustamente na época por histórias inverídicas, como a esposa e a filha do então prefeito da cidade mencionada Aldo Abagge, são elas: Celina e Beatriz Abagge. Segundo a acusação, ambas promoveram, com a ajuda de mais cinco pessoas, como o pai de santo Osvaldo Marceneiro, um ritual macabro para acabar com a vida de Evandro, o qual teve o corpo completamente desfigurado e, posteriormente, encontrado em um matagal. Em função da imensa repercussão, e de todos os detalhes que o grupo teve que confessar à base de tortura de terceiros, o caso ficou conhecido por anos de forma errônea como “As Bruxas de Guaratuba”, com as duas mencionadas tendo confessado o assassinato do Evandro, juntamente outras cinco pessoas, todas elas inocentes, a saber: Airton Bardelli dos Santos, Francisco Sérgio Cristofolini, Vicente de Paula, Osvaldo MArcineiro, Davi dos Santos Soares, Celina Abagge e Beatriz Abagge.
Ao longo dos episódios, somos transportados em uma trama real que envolve política, intrigas familiares antigas e conspirações, capazes de deixar muitas obras ficcionais sem relevância, sem repercussão. Essa característica é relevante e, ao mesmo tempo, triste, pois escancara a crueldade humana no seu mais alto nível de materialização, seja com o pequeno Evandro, seja com os sete inocentes. No caso do segundo grupo, Ivan revelou com exclusividade – por intermédio das fitas cassetes – a tortura pela qual eles tiveram que passar para confessarem um crime que não cometeram naquela época, em um local desconhecido, com muitas sessões de torturas física e psicológicas. Nessa revelação, os destaques são as reações do advogado de defesa da família Abagge e, principalmente, do promotor que atuou em um dos julgamentos, que, ao se depararem com uma nova prova na qual poderia ser usada para a comprovação da inocência, foram surpreendidos pelos atos cometidos por policiais militares do Paraná, com muita tortura, crueldade e desumanidade pelos sete inocentes.
Outra criança que também ganhou destaque ao longo do seriado foi Leandro Bossi, que desapareceu um pouco antes de Evandro, mas ambos estão conectados em vários aspectos. Inclusive, teve a identificação de sua ossada somente em 2023, porém, por muitos anos, acreditou-se que se tratava de uma menina, e não de um menino. Com isso, infelizmente, o pai dele, João Bossi, não ficou sabendo dessa informação a tempo, pois ele faleceu antes de a polícia científica paranaense assumir para a imprensa que de fato os ossos encontrados – praticamente 30 anos atrás – eram do garoto. Contudo, antes, em um dos episódios, vemos a angústia de um pai à procura do filho querido, o qual nunca perdeu as esperanças de encontrá-lo, juntamente ao apoio dos seus outros filhos. Na época, ainda, uma criança amazonense, chamada Diogo Rodrigo Moreira, se identificou como Leandro e voltou aos braços do aparentemente pai, entretanto foi revelado que ele não era de fato o filho biológico de João apesar da semelhança física. Foi desolador para ele não ter encontrado verdadeiramente o garotinho, assim como para a sua ex-esposa, Paulina Bossi, a qual também faleceu recentemente sem notícias do que realmente aconteceu com o filho tão amado e querido por todos.
O mais chocante em O Caso Evandro é a sucessão de erros, seja da polícia, seja do Judiciário, pois, a todo momento, tentamos especular quem matou as crianças, onde se encontra essa pessoa perversa e se ela ainda está viva. Ademais, a mídia jornalística e televisiva também cometeu graves erros ao espetacularizar o caso – sem nenhuma responsabilidade social de averiguação dos fatos, por exemplo -, como se fosse um ritual macabro de magia negra, em que as crianças eram sacrificadas para a ascensão de poder e de benefícios aos praticantes. É tenebroso e assustador pensar que a sociedade brasileira como um todo ficou por décadas aceitando notícias falsas como verdadeiras e, por isso, inocentes sofreram e sofrem até os dias atuais por conta desse caso de maldade com crianças tão indefesas. Quantos tantos outros Evandros e Leandros estão por aí desaparecidos à angústia de pais e de mães? É muito triste pensar e refletir sobre isso, porque não há uma mobilização nacional em prol da efetiva aparição de crianças e de adolescentes perdidos pelo mundo afora, suscetíveis a qualquer tipo de crueldade, de maldade e de perversidade, infelizmente.
Além disso, o seriado documental sabe usar o suspense e as reviravoltas a seu favor, criando uma narrativa que gera interesse no público, especialmente nos fãs de true crime [“crime real”, em tradução livre para o português]. A apresentação da cidade de Guaratuba também é um personagem à parte dessa história, um município aparentemente pacato do interior, com o qual é muito fácil de se identificar. Com uma direção exemplar de Aly Muritiba, são reveladas diversas reviravoltas, ao fazer uma espécie de paralelo entre a “inocência” da cidade litorânea com a criança desaparecida. Somado a isso, de forma a ser surpreendente, a narrativa nos conduz a sermos de certa forma “enganados” pelos informes, já que no início é criada uma linha de raciocínio de difícil discordância, todavia, ao longo dos episódios, é revelado que nada é realmente o que parece ser, isto é, as pessoas dadas como culpadas são vítimas de algo muito maior e mais perigoso.
Esteticamente, a série parece emular o estilo típico dos populares programas policiais dos anos de 1990 e 2000, os quais assustavam e promoviam medo em qualquer telespectador desavisado. Outro recurso utilizado, por exemplo, é a produção de dramatizações com atores, remetendo ao recurso usado pelo programa Linha Direta (1999), da Rede Globo, que, por meio de diferentes visões dos envolvidos, reconstituem os fatos, contendo, é claro, o cuidado e o respeito de não mostrar o rosto do Evandro. Há uma contribuição riquíssima do jornalismo policial, o qual, apesar de ser sensacionalista ao extremo na maioria das vezes, apresenta ao telespectador diferentes pontos de vista da narrativa. Logo, a partir da nossa interpretação, é como se estivéssemos no corpo de membros do júri e, a partir disso, teremos que avaliar os argumentos defendidos pelos envolvidos para chegar ao veredicto final. Vale ressaltar que isso não significa que o documentário se isenta de manter um posicionamento às claras, muito pelo contrário: fica extremamente nítido, no último episódio a opinião da inocência dos sete acusados injustamente, incluindo ainda o depoimento emocionante de Osvaldo Marcineiro, que ficou escondido e fora da mídia por muito tempo até ter coragem em relatar o lado dele dessa história tão cruel.
Portanto, O Caso Evandro é um excelente e exemplar conteúdo – em áudio e em vídeo – que vai além da proposta final, que é elucidar a inocência das pessoas citadas. Isso ocorre, porque, em qualquer investigação criminal, é preciso ter cuidado na apuração das informações, e esse comportamento foi inteiramente praticado por Ivan Mizanzuk, o qual manteve, ao lado de sua equipe, o respeito e o carinho ao contar essa triste ocorrência do país. A maneira como ele consegue conduzir os fatos, sentado no escritório, traz uma sensação de proximidade com a história, como se ela estivesse sendo contada em uma conversa com um amigo ou um familiar próximo. Não podemos nos esquecer desse caso, que promoveu, em um dos tribunais do caso, uma duração de inimagináveis 34 dias, sendo considerado o mais longo da história do Poder Judiciário do Brasil. Sem sombras de dúvidas, O Caso Evandro é o melhor true crime nacional, ao promover a reflexão sobre o combate à intolerância religiosa, a necessidade de organizar o bagunçado sistema judiciário brasileiro, assim como aniquilar as notícias falsas e a tortura.
O Caso Evandro – 1ª Temporada (Brasil, 2021)
Criação: Aly Muritiba
Direção: Aly Muritiba, Michelle Chevrand
Roteiro: Ângelo Defanti, Arthur Warren, Ludmila Naves, Tainá Muhringer
Elenco: Ivan Mizanzuk, Beatriz Abagge, Celina Abagge, Davi dos Santos Soares, Airton Bardelli, Maria Celeste Corrêa, João Bossi, José Maria Corrêa, Dulcinéia Novaes, Antônio Figueiredo Basto, Paulo Markowicz, Luiz Carlos de Oliveira, Mira Graçano, Cristina Padiglione, Dirceu Silvestre, Vânia Mara Welte, João Ricardo Kepes Noronha, Zuleica Dantas Pereira
Duração: 09 episódios – Cada episódio tendo 50 minutos de duração, em média.