O sucesso das chamadas casas de apostas virtuais já começou a impactar o Judiciário. E demissões por justa causa relacionadas ao acesso a sites de aposta durante o horário de trabalho têm sido mantidas pela Justiça, em diversos Estados, na primeira e segunda instâncias. A prática contrariaria a política interna das empresas e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
A tendência é de crescimento das demandas sobre o tema nas bancas de advocacia. Conforme um levantamento da Strategy&, da PwC, divulgado pelo Valor, estima-se que o setor de bets tenha movimentado em 2023 até R$ 97,6 bilhões. Para este ano, a expectativa é próxima de R$ 130 bilhões. De olho nesse mercado, o governo pretende arrecadar R$ 3,4 bilhões com a regularização dessas empresas. Atualmente, 213 marcas, de 96 empresas diferentes, estão autorizadas a atuar no país.
Segundo Douglas Uenohara, sócio da área trabalhista do Pipek Advogados, responsável pelo levantamento dos processos, disponibilizado com exclusividade ao Valor, empresas têm procurado escritórios de advocacia em busca de consultoria a respeito do tema, para saber quando a justa causa é aplicável.
A CLT prevê, em seu artigo 482, um rol taxativo de justificativas para a demissão por justa causa. A alínea “l” aborda, justamente, a “prática constante de jogos de azar”. Na Justiça trabalhista, o acesso a sites de apostas esportivas tem sido enquadrado nesse dispositivo. Porém, nem sempre ele é a única ou a principal justificativa para a demissão.
Em um caso emblemático, um ex-empregado entrou com ação na Justiça contra uma imobiliária de São Luís. Ele pede o reconhecimento de vínculo empregatício e o pagamento das verbas proporcionais entre os anos de 2018 e 2021. Apesar de reconhecer o vínculo, a empresa argumenta que a demissão foi por justa causa porque o funcionário, que atuava no setor financeiro e recebia um salário mínimo, desviou R$ 430 mil para apostar em jogos.
Como o funcionário não compareceu à audiência marcada pela juíza, o silêncio foi equiparado a uma confissão. Assim, ficou reconhecida a justa causa da demissão por improbidade e vício em jogos. Segundo a sentença, da 5ª Vara do Trabalho, proferida em agosto, a pena foi “proporcional à gravidade do ato cometido pelo reclamante” (processo nº 0016715-37.2022.5.16.0015).
Outro caso levado ao Judiciário, dessa vez em São Paulo, tratou de demissão por justa causa, por vício em jogos de azar, de trabalhador que acessava sites de apostas no computador da empresa, sem permissão. Nesse processo, a justa causa foi mantida pela juíza Sandra Regina Esposito de Castro, da 6ª Vara do Trabalho de São Paulo, em sentença proferida em setembro (processo nº 1000868-67.2024.5.02.0606).
Em novembro do ano passado, o Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região (TRT-5), na Bahia, manteve a justa causa de um empregado de banco que fazia apostas em plataformas de bets. Ele foi demitido por indisciplina, já que a conduta é vedada pelo regulamento interno da instituição financeira.
Além disso, o ex-funcionário do banco contraiu dívidas acima do limite permitido, usando acesso interno para alterar cadastros de renda e autorizar empréstimos irregulares. Com um salário de R$ 3,2 mil, ele chegou a contrair uma dívida de R$ 145 mil (processo nº 0000456-86.2020.5.05.0291).
Para advogados trabalhistas, nas discussões de demissão por justa causa, a prova é sempre um fator determinante e cabe à empresa se resguardar. Douglas Uenohara destaca que, nesses casos, é essencial a fiscalização das ferramentas de trabalho pelo empregador.
Foi o que garantiu a manutenção da justa causa de um porteiro pelo TRT da 20ª Região, em Sergipe. O empregado alegou que o computador era usado por outros funcionários, mas a empresa apresentou os horários de acesso aos sites de apostas. Ao ser analisada em conjunto com as folhas de frequência, a prova levou o relator do caso, desembargador Fabio Túlio Correia Ribeiro, a constatar que “o acesso ao site de aposta ocorria no turno e nos dias de escala do reclamante” (processo nº 0000233-69.2023.5.20.0014).
Outras regras elaboradas pela empresa podem validar ou fortalecer a demissão por justa causa. Segundo Elisa Alonso, advogada trabalhista do RCA Advogados, a política interna precisa ser clara, proibindo o uso de sites de apostas, vedando o acesso no horário de trabalho e é preciso obter a ciência do empregado a respeito dessas normas.
Elisa destaca ainda que as penalidades precisam ser aplicadas de forma gradativa, conforme a gravidade da infração. “Normalmente, é razoável esperar a aplicação de três advertências ao funcionário, que podem escalar para uma suspensão e, se a conduta não for corrigida, culminar na demissão por justa causa”, diz.
Quando possível, a empresa também pode promover programas e campanhas educativas para conscientizar os funcionários sobre os riscos associados ao jogo, afirma Eliane Ribeiro Gago, head da área trabalhista do Duarte Garcia, Serra Netto e Terra Advogados. “Essas iniciativas demonstram que a empresa tomou medidas preventivas antes de recorrer à aplicação de uma justa causa, fortalecendo uma conduta afirmativa sobre o tema, de forma a minimizar eventuais disputas trabalhistas”, diz.
Sem esses cuidados, há a possibilidade de reversão da justa causa, alertam os especialistas. Foi o que aconteceu em um processo de agosto de 2021, no qual a 4ª Câmara do TRT da 12ª Região, em Santa Catarina, manteve uma sentença que anulou a demissão por justa causa de um ex-empregado de uma empresa de cobrança. Ele teria acessado sites de apostas, mas os endereços foram bloqueados pela empresa, que não conseguiu comprovar mais a continuidade da prática.
Além disso, segundo o voto do relator, Gracio Ricardo Barboza, o empregado tinha comportamento exemplar até então. O magistrado citou ainda que outros trabalhadores acessavam sites sobre assuntos que não diziam respeito ao trabalho e não foram demitidos por justa causa, considerando a punição “desproporcional” (processo nº 0000959-59.2020.5.12.0050).
Outro cuidado a ser tomado pelas empregadoras e trabalhadores é em relação à possibilidade de o vício em jogo estar avançado a ponto de ser uma doença. Conforme explica Rebecca Loureiro, advogada trabalhista do Duarte Garcia, Serra Netto e Terra Advogados, o “transtorno do jogo” ou “ludomania” é reconhecido como condição de saúde mental. Nesse caso, cabe ao trabalhador comprovar o transtorno por meio de laudos médicos e, se possível, informar o empregador.
“Recomenda-se que o empregador, uma vez ciente do transtorno, adote uma abordagem de apoio e acolhimento, encaminhando o empregado para tratamento médico adequado e, se necessário, promovendo o afastamento previdenciário”, aconselha a especialista.
A 4ª Turma do TRT da 8ª Região (Pará) já se deparou com a questão. O trabalhador alegava que o vício em jogo deveria ter sido tratado como doença pela empregadora, mas, como esse pedido não constava na inicial da ação, foi desconsiderado. Com base na alínea “l” do artigo 48 da CLT, o colegiado entendeu que a empresa respeitou a gradatividade das penas, aplicando advertências e suspendendo o funcionário antes de demiti-lo por justa causa (processo nº 0000275-14.2024.5.08.0113).
Eliane Ribeiro Gago destaca, por fim, que, embora a jurisprudência a respeito do tema não esteja consolidada, a tendência é o tratamento nos mesmos moldes de outras condutas irregulares no trabalho, como desídia (desleixo com o trabalho) pelo uso de celulares e acesso a plataformas recreativas no expediente.
Cabe ao funcionário respeitar as políticas internas da empresa e ajustar sua conduta quando advertido, diz a advogada. “Também é importante dialogar com a liderança em caso de dúvidas ou situações excepcionais e estar atento às diretrizes da empresa sobre o tema”, diz Eliane.