19.5 C
Brasília
domingo, dezembro 22, 2024

De invasão garimpeira durante gestão Bolsonaro a operações sem solução no período Lula: Terra Yanomâmi continua em crise

- Advertisement -spot_imgspot_img
- Advertisement -spot_imgspot_img

Em janeiro de 2023, a divulgação de fotos com crianças e idosos yanomâmi desnutridos suscitou a primeira grande crise enfrentada pela nova gestão Lula, que acabara de tomar posse. Em resposta à crise humanitária no território indígena, acentuada após onda de invasão garimpeira durante a gestão Bolsonaro, o governo federal decretou situação de emergência pública na terra Yanomâmi. Mas, quase dois anos após o início da operação especial, que envolveu ações de saúde e de segurança, a situação permanece sem solução, em meio à mortalidade ainda alta devido à malária e a presença de criminosos no território.

Neste contexto, o médico Marcos Pellegrini pediu exoneração da coordenação do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Yanomami nesta segunda-feira (16). Apesar de ter experiência em saúde indígena, inclusive no próprio território Yanomami, o então coordenador vinha sofrendo críticas de lideranças e foi alvo de uma carta no final de outubro que pedia a sua saída.

Nos últimos anos, o território Yanomami sofreu com aumento da invasão do garimpo ilegal, o que gerou comprometimentos à saúde da população. Avesso às políticas de proteção ambiental e de proteção aos povos originários, além de entusiasta do aumento da permissão de exploração mineral na Amazônia, Jair Bolsonaro reduziu funções da Funai e nomeou o delegado federal Marcelo Xavier para presidir a fundação.

A gestão de Xavier foi criticada por ambientalistas e indígenas pelas falhas nas proteções aos territórios protegidos. Ele chegou a ser indiciado pela Polícia Federal por dolo eventual nos assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips, em junho de 2022.

Com uma combinação de aumento do valor do ouro no mercado exterior e da diminuição de fiscalização ambiental nas terras indígenas, o garimpo ilegal voltou seu foco à Terra Indígena Yanomami (TIY), que já havia sofrido com as investidas na década de 80. Em 2022, último ano de Jair Bolsonaro na presidência, o garimpo ilegal cresceu 54% na TIY, segundo uma pesquisa do Instituto Socioambiental (ISA) com a Hutukara Associação Yanomami (HAY). Naquele ano, 1.782 hectares foram destruídos.

A alta seguiu uma tendência iniciada até mesmo antes da gestão Jair Bolsonaro. A partir de 2016, sob governo de Michel Temer, o desmatamento na Amazônia voltou a aumentar após anos de redução. De 2016 a 2022, o garimpo ilegal em terras indígenas amazônicas aumentou 787%, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Em 2022, o HAY lançou o relatório “Yanomami sob ataque – Garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami, com denúncias das violências que vinham sendo cometidas nas mais de 350 comunidades da Terra Indígena Yanomami, que somam uma população de cerca de 31 mil pessoas. O relatório mostrou como a presença do garimpo gerava uma reação em cadeia, desde prejuízos ambientais a assassinatos e violência sexual.

Instalado no território indígena, o garimpo resulta em corte de árvores e poluição dos rios, por causa do uso do mercúrio. Em muitos casos, grupos criminosos sequestravam pistas de pouso antes usados para serviço de saúde, para escoarem o ouro extraído. E em algumas comunidades, indígenas eram cooptados por garimpeiros, seja por pagamentos ou até por oferta de drogas e bebidas alcoólicas. Além de tudo, o relatório denunciou casos de estupros.

Em janeiro de 2023, o governo federal decretou “emergência pública” na Terra Indígena Yanomami (TIY), que fica em Roraima, após o registro de casos de desnutrição severa e de malária. Os números indicavam ao menos 570 crianças menores de cinco anos mortas nos quatro anos anteriores por doenças que poderiam ter sido evitadas. Em 2022, as estatísticas oficiais registraram 343 mortes na TIY, na maioria dos casos por malária e desnutrição. Além de prometer reestruturar o distrito de saúde local, o governo montou uma força tarefa especial para desintrusão dos garimpeiros.

Enquanto recuperou os polos de saúde da TIY, o governo federal criou um plano, unindo Ibama, Exército e Polícia Federal, para remover os milhares de garimpeiros que estavam no território. Ao longo de 2023, houve 310 ações de fiscalização ambiental, com R$93 milhões de bens apreendidos, além da destruição ou apreensão de 362 acampamentos do garimpo, 34 aeronaves, 43 barcos, 14 armas e 838 gramas de ouro. A TIY também recebeu 4,3 milhões de medicamentos e insumos, 13 mil atendimentos de saúde e aplicação de 52,6 mil doses de vacina. Por outro lado, das 151 mil cestas básicas previstas, apenas 58 mil foram entregues.

Problema continua sem solução

Mas, no segundo semestre de 2023, as ações diminuíram, como mostrou o O GLOBO. Indígenas e fontes que participaram da operação explicaram que a falta de coordenação central foi decisiva para a queda dos resultados. O governo teria falhado em não garantir até o fim do ano os bloqueios de trânsito fluvial e o controle aéreo e em não fazer todas as ações sociais posteriores às remoções de garimpeiros. Houve críticas também sobre suposta omissão do Exército, que teria falhado na cooperação durante as operações.

Com isso, muitos garimpeiros acabaram voltando. O resultado foi a manutenção do patamar alto de mortes. Em 2023, segundo o Ministério da Saúde, houve 363 mortes — um aumento de 6% em relação a 2022. Uma das justificativas seria a possibilidade dos dados de 2022 estarem subestimados, já que o distrito de saúde local não estava funcionando adequadamente.

Em abril deste ano, o governo federal montou uma nova operação de combate ao garimpo na TIY, e instalou uma “Casa de Governo” em Boa Vista (RR). Segundo o governo, o número de alerta de garimpos na Terra Indígena Yanomami teve queda de 73% no período de janeiro, fevereiro, março e abril de 2024, comparado ao mesmo período em 2023.

‘Malária continua matando muitos yanomami’

Mas, ao final do ano, o problema continua sem solução. Presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami/Ye’kuana, Junior Kekurari Yanomami afirma que a malária continua matando muitos yanomami. Segundo ele, apesar das contratações de mais médicos — segundo o Ministério da Saúde o número de profissionais aumentou de 690 para 1,5 mil no último ano — muitas comunidades continuam desassistidas.

Ele diz que as visitas médicas, com foco no combate à malária, só acontecem a cada três meses, em alguns locais. Na comunidade Auaris, a última visita teria sido há seis meses.

— A malária continua muito forte, a situação é preocupante. Há muitos profissionais agora, então não é falta de recursos humanos. O que falta, talvez, é planejamento e organização. Em muitas comunidades só se chega de helicóptero, por isso precisa de planejamento melhor — explica Junior, que se queixa da falta de “diálogo”. — Tento acompanhar, mas não tenho respostas. Somos excluídos.

Histórico na TIY e discussão em reunião

A falta de transparência nos dados e de respostas às solicitações das lideranças indígenas foram a principal queixa em relação à gestão de Marcos Pellegrini. O diálogo insatisfatório chamou ainda mais a atenção porque Pellegrini já atuou na TIY nos anos 1980 e 90 e mantinha bom relacionamento com os yanomami. Por isso, ele foi uma escolha técnica do Ministério da Saúde.

Formado em medicina pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e mestre e doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Pellegrini publicou, neste ano, o livro “Watupari: um testemunho da resistência do povo Yanomami”, que narra as violências contra os yanomami e também sua resistência e força cultural. O prefácio foi escrito pela ministra da Saúde, Nísia Trindade, e o próprio Junior Yanomami foi um dos indígenas a dar depoimento, elogioso à atuação de Pellegrini na região.

Junior diz que, apesar dos problemas recentes, mantem seu “respeito” à história de atuação de Pellegrini. Mas admite frustração com a falta de resultados à frente do distrito sanitário.

— No começo acreditei muito, mas não sei o que aconteceu. Como ele é antropólogo, médico sanitarista e professor, a gente pensou que ele ia ter diálogo e respeito melhor com as comunidades. A gente tentou conversar sobre informações de dados, da saúde yanomami, sobre estatísticas de nascimentos e óbitos, malária, mas não tinha essa transparência. Por isso questionamos muito, porque precisamos acompanhar o que realmente está acontecendo, e porque não diminuem os casos de malária.

O estopim da insatisfação das lideranças yanomami com Pellegrini, explica Junior, foi o Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana, um encontro anual com lideranças e autoridades para tratar sobre as demandas e resultados no território, ocorrido no final de setembro. Segundo Junior, diante das queixas acerca do problema da malária, o médico teria respondido que já contraiu a doença 20 vezes, mas nunca morreu.

— O Marcos respondeu com falta de educação, com ignorância. Isso é falta de respeito com as vidas. Ele tomou medicamentos, mas muitos yanomami não tomam, e morreram de malária — afirmou o presidente do conselho, que diz que a situação gerou revolta entre diversas lideranças.

No mesmo fórum, o Ministério da Saúde afirmou que 5,2 mil indígenas voltaram a ter assistência após o decreto de emergência pública e que somente a Secretaria de Saúde Indígena investiu R$ 221 milhões no território Yanomami em 2023. Até agosto deste ano, foram R$ 216 milhões. O secretário de Saúde Indígena, Weibe Tapeba, informou, no encontro, uma redução de 33% na mortalidade.

Carta pediu afastamento do coordenador

Após o fórum, no dia 30 de outubro, o Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami/Ye’kuana enviou uma carta à ministra Nísia Trindade e a Weibe Tapeba, com pedido de afastamento de Marcos Pellegrini.

Segundo a carta, a situação era de “desorganização” e que a “falta de gestão” precarizava o serviço de saúde. As lideranças também reclamaram da ausência de informações técnicas detalhadas sobre o andamento das ações e intervenções no território Yanomami” e afirmaram que, sob coordenação de Pellegrini, a equipe demonstrava “baixa coesão e profissionalismo”.

“O funcionamento do DSEI Yanomami está prejudicado devido a falhas recorrentes na gestão e na resposta a demandas críticas, comprometendo a assistência e a segurança da comunidade Yanomami, além da falta de profissionalismo da equipe sob sua coordenação que também contribui para um ambiente de trabalho insatisfatório, impactando negativamente a qualidade dos serviços prestados à população Yanomami e o desenvolvimento de atividades essenciais”, diz trecho da carta.

Procurado, o Ministério da Saúde disse que está “acompanhando de perto a situação” e que, após a saída de Pellegrini, a função foi assumida interinamente por Francisco de Almeida Cardoso, coordenador substituto do Dsei-YY. Nesta semana, a secretária adjunta da Secretaria de Saúde Indígena, Lucinha Tremembé, está na região para garantir a continuidade das ações de saúde, e a pasta está “em tratativas com as lideranças e suas organizações representativas para assegurar uma transição tranquila e dar seguimento ao planejamento em andamento no território”.

Marcos Pellegrini preferiu não se manifestar.

Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que a comunidade de Auaris, no território Yanomami, conta com atendimento médico contínuo, realizado por profissionais do programa Mais Médicos e especialistas contratados pela AgSUS.

“Em nenhum momento houve interrupção na presença de médicos na comunidade, reforçando o compromisso com a assistência integral à saúde indígena”, disse a pasta.

Leia a nota completa do Ministério da Saúde:

A comunidade de Auaris, no território Yanomami, conta com atendimento médico contínuo, realizado por profissionais do programa Mais Médicos do Ministério da Saúde e especialistas contratados pela AgSUS. Em nenhum momento houve interrupção na presença de médicos na comunidade, reforçando o compromisso com a assistência integral à saúde indígena.

A ampliação da força de trabalho e das ações de vigilância epidemiológica permitiu um monitoramento mais amplo e eficaz em todo o território Yanomami. Essa vigilância intensificada resulta em maior número de exames realizados e, consequentemente, maior detecção de casos. No entanto, essa abordagem também possibilita diagnóstico e tratamento mais rápidos, o que tem contribuído para a redução significativa de óbitos por malária.

A comunidade de Auaris, que possui uma das maiores populações do território Yanomami, reflete a complexidade desse cenário, exigindo atenção redobrada nas estratégias de vigilância e combate à malária.

O Ministério da Saúde mantém uma política ativa de divulgação de informações. O Informe 6 sobre as ações no território Yanomami foi recentemente apresentado durante a oficina de resultados realizada no Dsei Yanomami, em 11 de dezembro. Esses dados incluem estatísticas detalhadas de casos e óbitos por malária, reforçando o compromisso com a clareza e a acessibilidade das informações de saúde pública.

[Fonte Original]

- Advertisement -spot_imgspot_img

Destaques

- Advertisement -spot_img

Últimas Notícias

- Advertisement -spot_img