Conhecido por ser uma pessoa que está sempre com um sorriso no rosto e muitas ideias na cabeça, Pat Gelsinger não é mais CEO da Intel. A informação, confirmada pela própria gigante, caiu como uma bomba na indústria de tecnologia na última segunda-feira (02). Figura sempre presente em conferências e cheio de entusiasmo, Pat deixa a Intel em um momento delicado.
A história de Pat é longa e data do fim da década de 1970, quando o futuro engenheiro entraria na empresa em 1979 e subiria exponencialmente os degraus da companhia. Em 2001, ele se tornou Chief Technology Officer (CTO) e saiu oito anos depois para se tornar COO da EMC e CEO da VMWare, uma companhia especializada em softwares para virtualização e computação em nuvem.
Após momentos de tensão na Intel, Pat Gelsinger retornou à empresa que o consagrou, mas dessa vez como CEO. O executivo tinha uma missão complexa: colocar a Intel no patamar que nunca deveria ter saído, e corrigir erros de anos – que finalmente estão cobrando as dívidas.
Os antecedentes
É difícil resumir a crise e demissão da Intel ao analisar somente os últimos três ou quatro anos. Para isso, é preciso voltar no tempo e realizar um recorte mais extenso.
Fundada em 1968 por Bob Noyce e Gordon Moore (sim, o cara da Lei de Moore), a companhia inicialmente tinha o nome de NM Electronics e lançou seu primeiro chip no ano seguinte. Já em 1970 a coisa realmente começou a andar com o DRAM 1103, muitas parcerias e inovações técnicas. Porém, é na década de 80 que a empresa teve seu boom e começou a desenvolver microprocessadores de PCs para consumidores domésticos.
Fonte: GettyImages Intel possui os processadores mais conhecidos do mercado (Imagem: GettyImages)Fonte: GettyImages
O impacto tecnológico foi tão grande que a Intel basicamente se tornou uma espécie de sinônimo para computadores de tecnologia. Na década de 90, 85% dos computadores já continham chips e nos anos seguintes a marca criou linhas de processadores icônicos, como os Pentium, Core 2 Duo e consolidou a família Intel Core i3/i5/i7/9, tão conhecidas pelo público.
Com tanta dominância e destaque no mercado global de computadores, como tudo começou a desandar?
Moore nosso que estais no céu
Também não é fácil apontar o dedo para um erro específico que a Intel cometeu e que jogou a empresa em um mar de críticas e problemas. Como qualquer companhia gigante e bilionária, dificilmente apenas um erro é capaz de criar uma crise desse tamanho.
Em 2007, Steve Jobs e a Apple revolucionaram o mundo ao anunciar o iPhone e dar início a uma era de celulares inteligentes. Pouco tempo antes desse anúncio, em 2005, a Intel tinha sido a principal cotada para desenvolver o chip que equiparia o vindouro iPhone, mas o CEO da época, Paul Ottellini, parece não ter gostado muito da ideia.
Em uma entrevista ao site The Atlantic, publicada em 2013, Ottellini revelou que não compreendia a visão da Apple e Jobs para o smartphone, indicando que não via sucesso naquele lançamento. O ex-CEO também indicou que os valores envolvidos na negociação também não eram vantajosos para a Intel. No fim das contas, a Samsung produziu o chip do primeiro iPhone e o produto contribuiu (e muito) para que a Maçã se tornasse uma das maiores empresas da história.
Fonte: leodanmarjod Alguns protótipos das GPUs Larrabee foram vendidos no eBay (Imagem: leodanmarjod/Reprodução)Fonte: leodanmarjod
Além dos chips, a Intel também deixou de ficar na vanguarda quando o assunto é inteligência artificial (IA). Uma reportagem da Reuters revela que a companhia negociou com a OpenAI entre 2017 e 2018 para um possível investimento, mas o então CEO Bob Swan não acreditava que o campo da IA generativa vingaria no mercado e tampouco daria lucros. Em 2022, a OpenAI decolou no mercado com o CharGPT e a Nvidia saiu na dianteira com seus aceleradores.
O mesmo vale para a linha das placas gráficas. Por décadas a Intel batia na tecla que lançaria uma série de placas de vídeo para o mercado doméstico e até nomeou o projeto Larrabee para isso, mas não deu prosseguimento. Em 2022 a empresa lançou as Intel Arc Série-A, que embora tenham ideias bem positivas, não são um sucesso de vendas.
Segundo Arthur Igreja, que é especialista em Tecnologia e Inovação, esse turbilhão de decisões erradas faz parte do pacote da crise que se instaurou nos últimos tempos. “É uma empresa que perdeu o momento da IA, que teve a chance de investir na OpenIA e perdeu. Teve a oportunidade de estabelecer boas parcerias, deu as costas em alguma medida para a TSMC, que hoje é uma companhia que vai muito bem também. É um histórico que está longe de ser favorável”, comenta Igreja em entrevista ao TecMundo.
A concorrência chegou
Com uma sucessão de erros década após década, a Intel começou a acreditar que nadaria no mercado de processadores de braços abertos para sempre. O conjunto de erros abriu espaço para outros competidores, e empresas como a AMD e Nvidia catapultaram sua popularidade.
A AMD saiu do fiasco dos processadores FX e placas de qualidade duvidosa para a criação dos Ryzen e as Radeon RX após Lisa Su assumir a presidência da empresa. Já a Nvidia investiu em IA e recentemente ultrapassou a Apple em valor de mercado, além de ficar confortável na fabricação de GPUs gamer de alto nível. A Intel seguiu o fluxo da água, até chegar em um redemoinho.
Fonte: GettyImages Dono da Nvidia, Jensen Huang, se tornou um dos mais influentes personalidades da indústria tech (Imagem: GettyImages)Fonte: GettyImages
“O mercado vê a Intel, hoje, como uma companhia lenta, que sempre teve respeito técnico, esteve na vanguarda, mas dominava o mercado de PCs”, afirma Arthur Igreja.
Para Igreja, a Intel gradualmente se tornou uma companhia escanteada na concepção da indústria. “Análises apontam que a Intel está provavelmente há 20 anos errando nas decisões e esse é um efeito acumulado. Só comparar com empresas como a AMD e Nvidia. A AMD era muito menor do que a Intel e hoje é imensamente maior”.
O retorno de Pat
Precisando de alguém experiente, a Intel colocou Pat Gelsinger como CEO da empresa em fevereiro de 2021. Experiente e respeitado na casa, Gelsinger anunciou o plano de desenvolver 5 nós (litografia dos chips) em quatro anos e o retorno do famoso tick tock, ou seja, a ideia de lançar uma nova geração de CPUs, e um ano depois atualizar esses chips com uma espécie de refinamento.
Pat também recorreu à Lei dos Chips norte-americana para buscar financiamento para construção de novas fábricas e tecnologias. O mandatário deu o sinal verde para construção de novas instalações no estado de Ohio (EUA) e na Alemanha, para utilizar as tecnologias EUV de luz ultravioleta extrema para litografias avançadas.
Fonte: GettyImages No meio da tecnologia, Pat Gelsinger sempre foi um CEO bem animado (Imagem: GettyImages)Fonte: GettyImages
Não era uma missão fácil. Gelsinger precisava restabelecer o nome da Intel ao público e mostrar para todos que o time azul estava de volta ao jogo, com a mesma seriedade e vontade de investir. De início, isso deu certo.
Em outubro do mesmo ano, a Intel lançou os processadores Alder Lake de 12ª geração para desktops, que traziam uma gigantesca mudança aos chips da empresa. A companhia adotou uma arquitetura híbrida com núcleos de desempenho e performance, recebendo bons elogios do público e da imprensa especializada.
Em 2022 foi a vez dos Raptor Lake, que mantinham a mesma ideia, mas com núcleos melhorados e, novamente, a geração foi bem recebida. O problema chegou com os processadores Raptor Lake Refresh em 2023, que como o nome sugere, tem um leve incremento em relação à geração anterior.
Criticados por apresentarem pouco desempenho, a Intel tinha em mãos uma geração sem tanta identidade. Contudo, o lançamento dos processadores Meteor Lake para notebooks em dezembro do mesmo ano, que continham a primeira unidade de IA da empresa, ajudou a mascarar as coisas e trouxe um ar de inovação à marca.
Fonte: Intel Geração Meteor Lake introduziu uma NPU (Unidade de Processamento Neural) para trabalhar em tarefas relacionadas com IA (Imagem: Intel)Fonte: Intel
No olho do furacão
Se a situação para a Intel estava retornando a um patamar de mais tranquilidade com uma visão longeva para os negócios, os chips começaram a fritar – literalmente. Ao longo de boa parte de 2024, processadores de 13ª e 14ª geração começaram a apresentar inúmeros problemas de instabilidade, dando muita dor de cabeça aos usuários, fabricantes de placas-mãe e claro, a Intel.
Após meses de idas e vindas, supostas descobertas e erros, a Intel finalmente descobriu as origens do problema, desenvolveu correções e ofereceu garantia estendida a usuários que possuíssem processadores defeituosos. Problema resolvido, certo? Não exatamente.
A demora na correção do erro e a falta de transparência da companhia por meses fez com que a opinião pública fosse bem desfavorável para a empresa. Somado a esse caos, a empresa anunciou a demissão de 15% de sua força de trabalho para cortar custos, o equivalente a cerca de 15 mil funcionários. Dentre outras medidas para reduzir as despesas, a empresa separou a divisão de fabricação, a Intel Foundry, para torná-la um braço separado.
Fonte: GettyImages Demissões afetaram filiais da Intel em todo o mundo (Imagem: Intel)Fonte: GettyImages
O resultado disso foi uma queda de 13% na bolsa de valores e um prejuízo de US$ 1,6 bilhões (cerca de R$ 9 bilhões) no segundo trimestre de 2024. Toda a situação escalonou a um nível em que a Qualcomm teria iniciado conversas para comprar a Intel, segundo fontes do The New York Times.
Em meio a todos os problemas, o então ex-CEO da Intel chegou a publicar versos bíblicos no X (antigo Twitter). O problema é que isso ocorreu logo após as milhares de demissões da companhia e soou como uma ofensa por parte do executivo.
Um clima terrível
Todas ações e erros da Intel cobraram um preço caro em 2024. A companhia perdeu bilhões de dólares e o renomado prestígio que costumava ter, apesar de ainda ser uma indiscutível referência no mundo dos semicondutores. Mesmo assim, a conta chegou e trouxe juros.
Esses juros precisavam ser pagos por um personagem grande o suficiente, e Pat Gelsinger parecia ser essa figura. O experiente executivo tentou, mas não conseguiu a sonhada retomada de posto da Intel.
Informações da Bloomberg indicam que o clima no time azul não era dos melhores. Os conselheiros da empresa não teriam ficado satisfeitos com o andamento do plano de recuperação financeira proposto por Pat e na falta de apresentação de produtos que auxiliem nessa retomada.
Fonte: GettyImages Substituto de Pat Gelsinger terá bastante trabalho pela frente (Imagem: GettyImages)Fonte: GettyImages
Gelsinger se viu com duas alternativas: ser demitido, ou se demitir e curtir a aposentadoria. Com uma passagem relativamente curta, é complicado não enxergar que Pat Gelsinger realmente queria algo de bom para a Intel e tinha a experiência para tocar seus planos, mas o emaranhado de problemas e consequências que estouraram durante sua jornada inviabilizaram uma Intel melhor.
É injusto colocar toda uma crise nas costas do CEO, embora como antigo mandatário da empresa, ele sempre sabia de tudo. Mas observando os fatos e a possível acomodação da Intel na última década, é nítido que a empresa colhe frutos de ex-presidentes que tiveram ações questionáveis e acreditaram que a indústria permaneceria a mesma bolha para sempre.
O especialista em Tecnologia e Inovação Arthur Igreja aponta que muitos outros especialistas entendem que Pat Gelsinger serviu como um bode expiatório, mas que a mudança no alto escalão pode ser benéfica.
“Tem vezes que essa mudança na liderança funciona bastante bem, tem vezes que só expõe problemas mais profundos”, diz Arthur Igreja.
“A saída pode trazer novas ideias, porque a Intel, por ser tão icônica, criou certas formas de estabelecer estratégias, e muitas delas, justamente por não terem mudado ao longo do tempo, foi o que levou a empresa a passar por esse problema atual. Muito da gestão terá que mudar”, sinaliza.
Futuro em aberto
Sem um CEO no momento, a Intel terá David Zinsner e Michelle Johnston Holthaus como co-CEOs interinos. Zinsner atuava como vice-presidente executivo e gerente de finanças, enquanto Michelle era uma executiva que aparecia mais ao público, ocupando o cargo de CEO da divisão de produtos.
Não há informações se a Intel buscará um novo CEO ou adotará uma solução caseira para os negócios, mas a esperança é que o time azul enfim retome sua trajetória de sucesso e volte a ser o que Noyce e Moore idealizaram há mais de cinco décadas. O mercado e os consumidores precisam e merecem uma Intel melhor.
“A Intel pode, sim, recuperar sua imagem. Basta lembrar o que aconteceu com a Apple nos anos 90, uma empresa que esteve prestes a desaparecer e foi salva por capital do Bill Gates. Ocorreu toda aquela volta do Steve Jobs, uma companhia que passou por uma enorme reconstrução até voltar a uma posição de empresa mais valiosa do mundo”, argumenta.
“Se recuperar é possível, mas é bem difícil. São raros os casos”, finaliza o especialista.