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sábado, janeiro 4, 2025

Crítica | Missal & Broqueis, de Cruz e Sousa – Plano Crítico

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Os caminhos pavimentados pela literatura brasileira durante o desfecho do século XIX e o preâmbulo do século XX foram enriquecedores em seus movimentos que buscavam uma renovação estética, além da exploração de temas relevantes para discussões numa sociedade em ebulição com tantos avanços sociais, culturais, políticos e, consequentemente, tecnológicos. Missal e Broqueis, de Cruz e Sousa, é uma publicação que se encontra situada nesse contexto, obra que se destaca significativamente, tanto por sua linguagem inovadora quanto por seu conteúdo emocional e simbólico. Reconhecido apenas postumamente, alijado do painel lírico expressivo da época por conta das questões raciais que até os dias atuais, insistem em permanecer em nosso país, o poeta foi um dos maiores representantes do simbolismo brasileiro. A sua trajetória, marcada por desafios e preconceitos, especialmente devido à sua ascendência afro-brasileira, moldou sua visão de mundo e sua produção literária, questões que podemos ver alegorizadas nos poemas em questão, inicialmente publicados em 1893, conteúdos de estrutura bifurcada, edificadas pela dualidade e complexidade dos sentimentos humanos, expressados pelo estilo peculiar de uma poesia representativa não apenas por questões políticas, mas estéticas.

Dividida em duas partes, Missal e Broqueis ressoam com as oposições características do simbolismo: o sagrado versus o profano, o ideal frente ao real. Missal, como sugere o título, evoca uma dimensão litúrgica, onde a poesia se transforma em um veículo de elevação espiritual e transcendência. Aqui, o autor utiliza a musicalidade das palavras e a força dos símbolos para criar uma atmosfera de misticismo e introspecção. Os poemas são concisos e carregados de imagens oníricas, que transportam o leitor para uma reflexão profunda sobre a existência e a busca do divino. Por outro lado, Broqueis traz uma perspectiva mais crua e terrena, refletindo a dor, o sofrimento e a injustiça social. Os versos dessa parte são impregnados com uma ironia mordaz e uma crítica contundente à sociedade brasileira da época. O poeta não hesita em abordar temas como a pobreza, o racismo e a hipocrisia da elite, evidenciando sua angústia e luta por reconhecimento e respeito. Essa dualidade entre sagrado e profano, ideal e real, é uma das características que tornam Missal e Broqueis uma composição rica e provocativa, que deveria ter maior destaque nos livros didáticos e também nas pesquisas em Letras no Brasil.

A linguagem usada por Cruz e Sousa é um dos aspectos mais inovadores e impactantes de sua obra. O simbolismo, enquanto movimento, se opõe ao realismo e ao naturalismo que dominavam o cenário literário anterior. A escolha de palavras, a musicalidade dos versos e a construção de imagens poéticas estabelecem um diálogo constante entre o leitor e o texto. Ao utilizar metáforas e simbolismos, Cruz e Sousa consegue capturar a essência de sentimentos complexos e profundos, levando o leitor a uma experiência sensorial e reflexiva. Entre as temáticas que dominam Missal e Broqueis, a busca pela identidade é uma das mais preponderantes. O poeta, como um sujeito marginalizado, enfrenta a dificuldade de se encontrar em um mundo que, muitas vezes, o rejeita. Nesse sentido, suas experiências pessoais se entrelaçam com uma crítica social mais ampla, que vislumbra a luta de um povo por reconhecimento e dignidade. Essa busca pela identidade é uma constante na literatura brasileira, ressoando em várias vozes e estilos ao longo dos anos. Além disso, a interação de Cruz e Sousa com a musicalidade é outro ponto a ser destacado. A sonoridade de seus versos, aliada à cadência e ao ritmo, faz com que a leitura da publicação se torne uma experiência quase musical.

O poeta utiliza assonâncias e outros recursos sonoros que conferem à sua poesia uma dimensão oral, enfatizando o aspecto performático da literatura. Tal abordagem aproxima a poesia de outras formas de arte, como a música e a dança, revelando uma espécie de multifuncionalidade do texto literário. Ademais, os poemas expressam as características que a crítica literária definiu para o movimento literário que surgiu, segundo os livros didáticos, no final do século XIX, como uma “resposta” ao Realismo e Naturalismo, com forte influência dos movimentos simbolistas europeus, especialmente do simbolismo francês. Nessas composições, encontramos muita subjetividade, pois o movimento prioriza a expressão subjetiva e interior do eu lírico. A literatura simbolista está cheia de introspecção, explorando sentimentos íntimos, sonhos e estados da alma, como podemos contemplar em Missal e Broqueis. A busca pelo espiritual e o transcendental é outra marca muito forte na poesia do movimento. Os autores simbolistas brasileiros frequentemente exploram temas religiosos, esotéricos e místicos, procurando uma conexão com o divino e o desconhecido, em poemas que valorizam a sonoridade das palavras.

Os poemas simbolistas são ricos em aliterações, assonâncias e ritmos que visam criar uma experiência estética através da musicalidade do texto. A sinestesia, como nós também podemos observar em Cruz e Sousa, é constante. Há uma preocupação em fundir e misturar sensações, como se os sentidos pudessem se comunicar entre si. Os poetas simbolistas frequentemente descrevem cores, sons e aromas de maneira interconectada, buscando criar uma experiência sensorial completa. Os simbolistas, obviamente, utilizam símbolos para sugerir ideias e emoções, em vez de descrevê-las diretamente. Elementos da natureza, objetos e figuras surgem carregados de significados ocultos e múltiplas interpretações. Não é uma poesia que posso definir como difícil, mas para leitores iniciantes, pode apresentar desafios na linguagem, em especial, nessa época nossa de pouca leitura e mais apego ao imagético das redes sociais e afins. Importante salientar que a poesia do autor, e de todo movimento, é carregada de pessimismo e melancolia. Muitos textos simbolistas têm um tom de tristeza, desilusão e melancolia. A atmosfera geral é muitas vezes sombria, refletindo uma visão pessimista da realidade. Os sonhos e o mundo inconsciente são fonte constante de inspiração, pois a lírica simbolista frequentemente mergulha no fantástico, no surreal, explorando o inconsciente e o irracional.

Ademais, a profundidade psicológica é um elemento peculiar dos poemas de Cruz e Sousa e do período em questão. Explorou-se intensamente a psicologia humana, investigando os sentimentos e pensamentos mais profundos, obscuros e complexos da alma humana. O simbolismo também traz uma liberdade formal e rejeita as formas fixas do parnasianismo, utilizando versos livres e uma estrutura mais flexível para alcançar uma expressão mais sincera e pessoal. E, dentre tantas outras características, o movimento, considerado como uma “reação” contra a objetividade e o materialismo do Realismo e Naturalismo. Aqui, em vez de focar em uma representação minuciosa da realidade externa, o simbolismo se volta para o mundo interior, subjetivo e abstrato. É um movimento fascinante e profundo, que deixou uma marca importante na literatura brasileira, ganhando ressonâncias em poetas e escritores da posteridade em sua busca pelo belo, pelo espiritual e pelo inefável. Lamentável como é tão pouco estudado na fase escolar, geralmente ganhando páginas tímidas nos livros didáticos mais interessados em outros períodos da historiografia literária brasileira.

Analisar Missal e Broqueis, por sua vez, é também refletir o seu contexto histórico e as conexões que podemos entrelaçar com o contemporâneo. Cruz e Sousa, um dos mais importantes poetas simbolistas brasileiros, não apenas deixou um legado literário ímpar, como também viveu e sofreu na pele as agruras do racismo que permeava a sociedade brasileira do final do século XIX. Como já mencionado, ele teve apenas reconhecimento póstumo. Ficou conhecido como o “Poeta Maldito”. Não obstante seu talento e genialidade, sempre foi alvo de discriminação racial e preconceito, fatores que profundamente influenciaram sua obra e sua vida pessoal. Precisamos lembrar que o contexto social em que Cruz e Sousa viveu era marcado pela escravidão, que perdurou no Brasil até 1888. Mesmo após a abolição, as feridas do racismo e da desigualdade social continuaram a resultar em discriminação e marginalização das estruturas sociais, o que afetou brutalmente a vida de indivíduos negros e mestiços. Cruz e Sousa, sendo filho de um ex-escravo, encontrou em sua trajetória um caminho repleto de obstáculos.

Desde jovem, o poeta sofreu com a exclusão social e a intolerância, experimentando a dor de ser tratado como um diferente, um “outsider” nos termos mais atuais. Embora sua carreira literária tenha começado com certo reconhecimento, a sua cor de pele sempre foi uma barreira. A luta contra o racismo que o poeta enfrentou pôde ser observada em sua obra. Os sentimentos de tristeza, solidão e rebeldia que permeiam seus versos são reflexos diretos da realidade discriminatória e do desprezo social. O simbolismo, por sua vez, encontrou em sua poesia um espaço fértil para explorar os sentimentos mais obscuros da alma humana. Cruz e Sousa utilizou sua experiência pessoal de opressão e exclusão para fomentar uma arte que não apenas questionava a estética literária da época, mas também denunciava as desigualdades raciais. Sua poética é marcada por uma profunda musicalidade, rica em metáforas e simbolismo, que revela a beleza e a tragédia da condição humana, frequentemente marcada pela discriminação racial.

Em linhas gerais, poesia pra ser conhecida por sua importância estética, além da dimensões políticas.

Missal/Broqueis (Brasil, 1893)
Autor: Cruz e Sousa
Editora: WMF Martins Fontes
Páginas: 250



[Fonte Original]

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