- Há spoilers. Leiam, aqui, a crítica da temporada anterior.
A primeira temporada de Falando a Real acaba em um cliffhanger, com Grace (Heidi Gardner), paciente de Jimmy (Jason Segel), empurrando seu marido abusivo Donny (Tilky Jones) de um precipício, em uma interpretação literal do que o terapeuta a havia aconselhado fazer em sua estratégia parte de seu próprio processo de luto pela morte da esposa, de parar de levar seus pacientes à conclusões, entregando-as de bandeja para eles. É uma das formas que a série encontrou para deixar bem clara linha fina que separa psicólogo e paciente e para deixar um elemento narrativo a ser explorado diretamente no segundo ano da série, algo que, como era de se esperar, marca o início da nova temporada.
Apesar de o artifício comum a tantas séries ser fundamentalmente desnecessário em Falando a Real, fiquei feliz em notar que a equipe criativa não estendeu esse aspecto da temporada anterior por mais tempo do que deveria e realmente só o utilizou como uma eficiente porta de entrada para aumentar o conflito profissional entre o experiente terapeuta sênior Paul Rhoades (Harrison Ford) e Jimmy, ainda que ecos da resolução da situação de Grace e de seu marido sejam sentidos ao longo de todo o novo ano, que conta com 12 episódios, dois a mais do que o inaugural. Aliás, achei que o aumento no número de episódios seria um sinal de que a experiência próxima à perfeição que tive com a série em 2023 não se repetiria, mas, muito ao contrário, ela se intensificou, deixando ainda mais clara a principal marca da série para mim: a capacidade invejável que a equipe de roteiristas tem de trabalhar um elenco principal razoavelmente grande, que é cercado de um elenco de apoio ainda maior, sem deixar de desenvolver cada um deles, sem introduzir situações e cenas que não tenham conexão direta ou indireta, com as linhas narrativas centrais. É, não tenho dúvida alguma em afirmar, um exemplo firme de como uma grande obra audiovisual não desperdiça nada.
Jimmy, na segunda temporada, vive entre os sucessos e os fracassos de sua “técnica” assertiva de tratar seus pacientes, mergulhando profundamente na vida pessoal deles para horror de Paul, tudo como uma forma de desviar do enfrentamento que precisa fazer sobre a morte de sua esposa e sobre o quanto deixou sua filha Alice (Lukita Maxwell) de lado enquanto mergulhava em drogas e prostitutas para abafar sua dor. É aqui que vemos que Jimmy, o terapeuta, precisa de tanto ou mais ajuda do que todos ao seu redor, com Paul aos poucos quebrando sua resistência e ele mesmo percebendo que sua abordagem conservadora do método terapêutico precisa de relativização enquanto ele lida com o debilitante Parkinson que avança a passos largos. E, em meio a isso, claro, temos a psicóloga Gabrielle “Gaby” Evans (Jessica Williams), que fecha a trinca que trabalha no consultório e que fora a melhor amiga da esposa de Jimmy, começando um caso com ele também como parte de um processo autodestrutivo de se lidar com a dor. Gaby é pura energia e franqueza, mas ela também usa essas suas características com desculpas para não se analisar, para não parar para respirar e compreender o que a relação com Jimmy pode significar.
No entanto, como disse, a série se esmera – nessa segunda temporada ainda mais do que na primeira, diria – em trabalhar cada personagem central com todo o cuidado possível, pelo que seria impossível, em uma crítica descrever cada acontecimento, bastando afirmar que todos ganham arcos narrativos complexos que se interpenetram, com Derek (Ted McGinley), o simpaticíssimo marido de Liz (Christa Miller), vizinha de Jimmy e “mãezona” que cuidou de Alice sozinha quando Jimmy se afastou, inclusive deixando de ser apenas um personagem de apoio e ele próprio contribuindo mais para a história central e sendo brindado com seu próprio arco, que põe em xeque o relacionamento de décadas que ele tem com a esposa. De maneira semelhante, Brian (Michael Urie), melhor amigo de Jimmy, está mais presente nas situações de cotidiano dos demais personagens, também recebendo o tratamento de arco narrativo próprio quando ele e seu marido Charlie (Devin Kawaoka) hesitantemente decidem adotar um bebê e Sean (Luke Tennie), paciente que Jimmy quase que adotou como filho, entra em uma segunda fase de seu tratamento, dessa vez com Paul.
A grande novidade na temporada, porém, é a inserção na história de Louis Winston (Brett Goldstein que, como Segel, é co-criador da série), o homem que, dirigindo embriagado, foi responsável pela morte de Tia (Lilan Bowden), esposa de Jimmy e mãe de Alice. Louis é uma pessoa completamente devastada pelo que aconteceu, alguém que se afastou de tudo e de todos e que, por isso, não conta mais com uma rede de apoio, vivendo cada dia como uma elipse de tortura no inferno. É muito interessante e corajosa essa abordagem que humaniza alguém que estamos programados – assim como todos na série – a odiar com todas as nossas forças. E não é aquele tipo de humanização barata que se vê muito por aí, com uma história que justifique ou suavize o que aconteceu ou que ganhe desenvolvimento mágico em que, de repente, ele se torna “apenas mais um personagem” na série. Louis é, para todos os efeitos, o catalisador de uma jornada de autoconhecimento por parte de Alice, jornada essa que começou, claro, com as conversas dela com Paul no banco da praça mediante pagamento de guloseimas “proibidas” e que chega ao seu ponto mais alto aqui. E Louis funciona, também, como o empurrão necessário para Jimmy finalmente perceber que ele vem se negligenciando, que sua obsessão em ajudar todos da maneira mais ampla possível não passa de uma forma de ele não se ajudar, de não procurar nenhum tipo de aconselhamento.
No entanto, a série continua se recusando a dar respostas fáceis, a fazer como Jimmy faz com seus pacientes. Cada roteiro faz de tudo para lenta, mas consistentemente, trabalhar as narrativas de maneira a levar os personagens a compreenderem a situação em que se encontram e a enfrentar seus próprios desafios sem que cenas subsequentes “magicamente” desfaçam o que foi estabelecido logo antes. E tudo isso com um humor inteligente e enganosamente leve que faz o espectador sorrir de situações complexas e dramáticas, suavizando, mas nunca esvaziando seus impactos. O elenco, especialmente Ford, Segel e Williams, mas sem de forma alguma esquecer de Maxwell, Miller, Urie e McGinley, agora somado de Goldstein, é como uma sinfonia com instrumentos bem afinados que se complementam sem parecer que fazem esforço nesse processo. É muito raro ver um grupo tão eclético e heterogêneo convencer tão completamente como personagens que realmente convivem, que parecem mesmo se conhecer há muitos anos. Há uma cumplicidade cativante entre eles e isso simplesmente não tem preço.
Tudo bem que, por vezes, a narrativa sucumbe à tentação de caminhar pelo puro dramalhão (trata-se de uma comédia, tecnicamente, mas eu vejo muito mais como um drama cômico que não chega a ser dramédia, seja lá o que isso signifique exatamente), com algumas situações resvalando no didatismo ou no sentimentalismo, como é o caso do discurso de Thanksgiving de Paul, que é lindo, daqueles de emocionar, mas que é também cuidadosamente feito para ter esse efeito, por vezes parecendo até brega, só que até esse tipo de escolha tem espaço na história. E fiquei particularmente feliz em notar que, mesmo renovada para uma terceira temporada, esta segunda acaba fechando por completo todos os arcos, sem deixar pontas soltas e especialmente sem contar com cliffhanger. Há aspectos que, claro, podem ser expandidos, mas, se por azar, resolvessem voltar atrás na confirmação de um novo ano, seria perfeitamente considerar que a história acabou aqui. E isso é sempre uma grande notícia, no mínimo é a prova de que a equipe criativa tem muita segurança no que está fazendo.
Falando a Real – 2ª Temporada (Shrinking – EUA, de 16 de outubro a 24 de dezembro de 2024)
Criação: Bill Lawrence, Jason Segel, Brett Goldstein
Direção: Randall Keenan Winston, Zach Braff, Jamie Babbit, James Ponsoldt, Anu Valia, Bill Lawrence
Roteiro: Rachna Fruchbom, Annie Mebane, Brian Gallivan, Sofi Selig, Zack Bornstein, Brett Goldstein, Kyra Brown, CJ Hoke, Sasha Garron, Bill Posley, Ashley Nicole Black, Neil Goldman, Bill Lawrence
Elenco: Jason Segel, Harrison Ford, Jessica Williams, Luke Tennie, Michael Urie, Lukita Maxwell, Christa Miller, Ted McGinley, Heidi Gardner, Lilan Bowden, Devin Kawaoka, Rachel Stubington, Kenajuan Bentley, Lily Rabe, Wendie Malick, Kimberly Condict, Tilky Jones, Gavin Lewis, Mike C. Nelson, Neil Flynn, Brett Goldstein, Courtney Taylor, Amy Rosoff, Vernee Watson, Josh Hopkins, Damon Wayans Jr., Kelly Bishop, Meredith Hagner, Tanner Zagarino, Claudia Sulewski, Cobie Smulders, Nora Kirkpatrick
Duração: 421 min. (12 episódios)