21.5 C
Brasília
quarta-feira, fevereiro 5, 2025

Hamlet: a profundidade e as origens do maior personagem da literatura ocidental

- Advertisement -spot_imgspot_img
- Advertisement -spot_imgspot_img

Desde a sua primeira aparição no palco, “Hamlet” tem capturado a imaginação da humanidade como poucas obras da literatura ocidental. A profundidade psicológica da peça, seu mergulho nas inquietações existenciais e a complexidade dos dilemas éticos que coloca em cena torna-a uma obra de inigualável fascínio. Não é apenas a tragédia de um príncipe dinamarquês que confronta a traição e a loucura, mas também o retrato íntimo de uma mente em conflito, tentando navegar entre a ação e a inação, o destino e a vontade. A universalidade de seus temas tornou “Hamlet” objeto de constantes reflexões e análises, gerando discussões que ressoam através dos séculos.

Grandes intelectuais e escritores não esconderam sua admiração pela obra. Goethe, em “Wilhelm Meister”, elogiou a profundidade psicológica de “Hamlet”, sugerindo que o personagem é o reflexo de uma alma sobrecarregada por uma tarefa que vai além de sua capacidade. Goethe percebeu em Hamlet uma figura que não estava à altura da missão a ele imposta: “Um belo, puro, nobre e altamente moral ser, sem a força de caráter que forma o herói”. O poeta alemão via no protagonista um dilema que espelhava os conflitos internos de muitos seres humanos, onde o dever e a moralidade colidem com a fraqueza e o medo.

Hamlet, de William Shakespeare (Penguin-Companhia, 320 páginas, tradução de Lawrence Flores Pereira)

Por outro lado, Freud trouxe uma leitura revolucionária para o entendimento da obra ao apontar as motivações inconscientes de Hamlet. Para Freud, o famoso dilema de Hamlet, sua hesitação em vingar o assassinato de seu pai, deriva de um conflito edípico não resolvido. Ele sugere que Hamlet está paralisado porque, no fundo, se identifica com o criminoso, com Claudius, que agiu em nome dos desejos proibidos que Hamlet também carrega inconscientemente. Essa perspectiva psicanalítica abriu novos caminhos para a interpretação da obra e reafirmou seu caráter profundamente humano.

Nietzsche, em “O Nascimento da Tragédia”, também se debruçou sobre a natureza do dilema de Hamlet. Para ele, o príncipe dinamarquês não hesita apenas por fraqueza, mas porque é um dos poucos seres capazes de ver o abismo da existência, o que lhe causa um profundo ceticismo. Hamlet, segundo Nietzsche, se recusa a agir porque compreende que a vida é, em si, absurda, e que toda ação humana é fútil diante do inevitável. “Conhecer demais mata a ação”, escreveu Nietzsche, trazendo à tona a relação entre saber e paralisia, um tema central na peça.

Outro entusiasta da obra foi o poeta russo Boris Pasternak, que, em “Doutor Jivago”, faz uma analogia entre a vida de Hamlet e a condição humana em tempos de crise. Para Pasternak, Hamlet não é apenas um herói trágico, mas também uma figura que simboliza a busca pelo sentido em meio ao caos. Ele afirmou que “Hamlet é cada um de nós, que em algum momento da vida se depara com a necessidade de tomar decisões monumentais, mesmo quando a mente e o coração estão em frangalhos”.

As reflexões a respeito de “Hamlet” não se limitam a filósofos e poetas. Artistas de todas as épocas encontraram na obra de Shakespeare um espelho para os dilemas e anseios de suas próprias épocas. Laurence Olivier, um dos mais célebres intérpretes de Hamlet no cinema, declarou em suas memórias, “Confissões de um Ator”, que “Hamlet é a história de todos nós, porque somos todos príncipes de um reino interior devastado”. Para Olivier, a peça explora as profundezas da condição humana, revelando verdades ocultas sobre a natureza do sofrimento, da vingança e do amor.

Hamlet
Não é apenas a tragédia de um príncipe que confronta a traição e a loucura, mas também o retrato íntimo de uma mente em conflito

“Hamlet” se mantém como uma peça que não apenas sobrevive ao tempo, mas que continua a suscitar discussões sobre a condição humana, sempre presente nas crises que confrontam a moralidade, a ação e o sentido da existência.

“Hamlet” foi escrita entre 1599 e 1601, durante o apogeu da carreira de Shakespeare como dramaturgo. A primeira apresentação registrada da peça ocorreu em 1600 ou 1601, no Globe Theatre, em Londres. Desde então, a obra se tornou um dos pilares do cânone literário ocidental, sendo constantemente encenada, adaptada e reinterpretada. A trama, ambientada na Dinamarca, gira em torno do príncipe Hamlet, que é assombrado pelo espírito de seu pai, o rei Hamlet, assassinado por seu irmão Claudius, agora o novo rei e marido da rainha Gertrude. O fantasma revela a verdade a Hamlet, que então se vê mergulhado em um dilema moral: vingar a morte de seu pai ou se deixar consumir pela dúvida e pelo medo da ação.

O enredo é construído em 5 atos, uma estrutura clássica das tragédias shakesperianas, onde cada fase do desenvolvimento da narrativa está estrategicamente posicionada para amplificar a tensão dramática. No primeiro ato, Hamlet é informado da verdade sobre o assassinato de seu pai, e, nos atos subsequentes, o espectador acompanha sua luta interna com a ideia da vingança e sua crescente desconfiança em relação à moralidade e à justiça. A complexidade da trama aumenta conforme outros personagens, como Ophelia, Polonius, Laertes e Horatio, vão se envolvendo na espiral de intrigas e tragédias que cercam o príncipe.

A peça é escrita predominantemente em verso branco, ou seja, versos não rimados em pentâmetro iâmbico. Esse estilo era amplamente utilizado por Shakespeare e seus contemporâneos para as falas dos personagens nobres e aristocráticos. O pentâmetro iâmbico, composto por 5 pés métricos (iâmbicos), confere uma musicalidade e uma formalidade à fala que se adequam ao status elevado desses personagens. Hamlet, Claudius, Gertrude e Laertes, por exemplo, são personagens que se expressam em versos, o que reflete sua posição social e confere à peça um tom grandioso e poético.

Por outro lado, personagens de classes sociais mais baixas, como os coveiros ou os guardas, falam em prosa. A prosa, aqui, serve como uma marca clara de distinção social e estilística, revelando um discurso mais simples, direto e sem o refinamento dos versos. Essa alternância entre verso e prosa, característica das obras de Shakespeare, permite uma leitura mais rica dos diferentes níveis sociais e psicológicos dos personagens. A prosa, em “Hamlet”, não apenas reflete o estatuto inferior dos plebeus, mas também introduz elementos de humor e sátira, como nas cenas em que os coveiros discutem de forma irônica e até cômica sobre a morte.

O uso da prosa e do verso, portanto, vai além de uma simples convenção formal. Ele amplifica a complexidade da peça ao conectar a fala dos personagens ao seu papel social, às suas emoções e às suas intenções. Quando Hamlet, por exemplo, transita entre versos e prosa ao longo da peça, essa variação revela os diferentes estados emocionais pelos quais o personagem passa, alternando entre a formalidade de suas reflexões filosóficas e o sarcasmo da loucura fingida. Essa riqueza de estilo e estrutura faz de “Hamlet” não apenas uma obra-prima do ponto de vista temático, mas também técnico, demonstrando o domínio absoluto de Shakespeare sobre a linguagem e suas possibilidades dramáticas.

A origem de “Hamlet” é um tema que desperta grande interesse entre estudiosos, pois envolve uma complexa fusão de biografia, influências literárias e questões culturais da época de Shakespeare. Não há dúvida de que o gênio do dramaturgo inglês foi capaz de transformar diversas fontes em uma obra singular, mas a relação entre a vida de Shakespeare e a criação de “Hamlet” tem gerado interpretações e especulações que sugerem uma conexão íntima entre o drama do príncipe dinamarquês e as experiências pessoais do autor. Autores como Stephen Greenblatt, em seu livro “Ser Shakespeare: Uma Vida”, exploram essa possível intersecção entre o emocional e o artístico, trazendo à tona o impacto que a morte prematura do filho de Shakespeare, Hamnet, pode ter tido na criação da peça.

O nome “Hamlet”, como Greenblatt e outros apontam, é praticamente idêntico ao de Hamnet, filho de Shakespeare, que morreu aos 11 anos, em 1596, apenas alguns anos antes da provável escrita da peça. Embora não existam provas concretas de que a tragédia de Hamlet tenha sido diretamente inspirada por essa perda pessoal, o paralelismo entre os nomes e o tema central de morte, luto e vingança na peça convida à reflexão sobre a possibilidade de Shakespeare ter transformado sua dor pessoal em um dos textos mais profundos e universais da literatura mundial. Harold Bloom, em “Shakespeare: A Invenção do Humano”, também sugere que Hamlet pode representar uma expressão de luto sublimado, uma figura trágica que reflete a tentativa do autor de lidar com questões existenciais.

Ainda que o luto seja um tema frequente em “Hamlet”, ele não é o único que oferece pistas sobre as origens da peça. Shakespeare também se inspirou em tradições literárias anteriores. A história de Amleth, registrada pela primeira vez por Saxo Grammaticus em “História dos Danos”, já trazia a trama básica de um príncipe que vinga a morte de seu pai, embora as questões psicológicas e filosóficas presentes na peça de Shakespeare estejam ausentes no texto original. Shakespeare, no entanto, não se limitou a adaptar essa história; ele a elevou, conferindo à tragédia um caráter introspectivo e universal que continua a ressoar até hoje.

James Shapiro, em “1599: Um Ano na Vida de William Shakespeare”, argumenta que “Hamlet” é um produto não apenas das influências literárias e biográficas, mas também de um contexto político e social específico. A Inglaterra do final do século 16 estava marcada pela incerteza e pela instabilidade, especialmente em torno da sucessão da rainha Elizabeth 1ª, que não tinha herdeiros diretos. As tensões políticas, combinadas com as questões religiosas da época, criaram um ambiente de medo e desconfiança, algo que se reflete na atmosfera tensa e paranoica da corte dinamarquesa em “Hamlet”.

A fusão entre a biografia de Shakespeare e o contexto histórico mais amplo não diminui o aspecto universal da peça. Ao contrário, intensifica o sentido de que “Hamlet” transcende o particular para se tornar um reflexo das condições humanas em momentos de crise. A própria hesitação de Hamlet em vingar o assassinato de seu pai pode ser vista como uma metáfora para as incertezas que Shakespeare e seus contemporâneos vivenciavam em relação ao futuro da Inglaterra. Essa leitura se alinha com as observações de Greenblatt em “Vontade de Saber: As Fontes de Hamlet”, onde o crítico sugere que Shakespeare estava lidando com questões profundamente pessoais e políticas ao mesmo tempo, refletindo sobre o papel do indivíduo em um mundo incerto e muitas vezes injusto.

Além de Greenblatt, outros estudiosos, como Katherine Duncan-Jones, em “Shakespeare: Uma Vida na Literatura”, ressaltam a importância das relações familiares na obra do autor, particularmente em “Hamlet”. Duncan-Jones aponta que as dinâmicas familiares da peça, especialmente entre Hamlet, sua mãe Gertrude e o rei assassinado, podem ecoar as preocupações de Shakespeare com sua própria família, sua relação com seus filhos e o impacto da morte de Hamnet. Embora a peça se passe em um reino distante e mitológico, as emoções retratadas são profundamente familiares e universais.

É interessante notar que essa leitura biográfica de “Hamlet” não contradiz as interpretações mais amplas da peça como um comentário sobre o poder, a moralidade e a natureza humana. Ao contrário, ela complementa essas abordagens, mostrando como Shakespeare foi capaz de fundir o íntimo e o coletivo em uma única obra. Em “Hamlet e o Imaginário”, o crítico francês René Girard argumenta que o dilema central da peça, a inação de Hamlet, é tanto um reflexo de seu conflito interior quanto uma metáfora para a complexidade das relações humanas e o desejo de vingança, temas que Shakespeare poderia ter observado tanto em sua vida pessoal quanto em seu entorno social.

Ao estudar “Hamlet”, é possível perceber como Shakespeare foi hábil em tecer elementos de sua própria biografia, tradições literárias antigas e questões contemporâneas em uma trama que transcende qualquer contexto específico. Como Shapiro destaca, a genialidade de Shakespeare está em sua capacidade de transformar experiências pessoais em material literário que ressoa em diversas camadas de interpretação. “Hamlet” não é apenas uma peça sobre um príncipe vingador, mas uma reflexão profunda sobre a vida, a morte, o luto e a natureza humana — temas que continuam a fascinar leitores e espectadores ao longo dos séculos.

Ao considerar a origem de “Hamlet”, deve-se reconhecer que a peça é o resultado de uma confluência de fatores. A morte de Hamnet pode ter desempenhado um papel na concepção emocional da peça, enquanto a história de Amleth forneceu a base narrativa, e o contexto político de Elizabeth 1ª contribuiu para o clima de incerteza e medo. Esses elementos, somados à genialidade de Shakespeare, deram origem a uma obra que permanece tão vital e impactante hoje quanto na época de sua primeira apresentação.

“Ulysses”, de James Joyce, publicado em 1922, é frequentemente celebrado como uma das maiores realizações da literatura moderna, e entre seus muitos temas e inovações formais, ele traz à tona o elemento biográfico de maneira que ecoa a tradição shakespeariana, especialmente em relação ao luto pela perda de um filho. A maneira como Joyce aborda essa perda reverbera a exploração emocional que Shakespeare apresentou em “Hamlet”, revelando uma continuidade de temas biográficos na literatura ocidental, em que a tragédia pessoal é transformada em arte de complexidade e profundidade universais.

No centro de “Ulysses” está Leopold Bloom, um judeu irlandês que perambula por Dublin no dia 16 de junho de 1904, no que se tornaria conhecido como o famoso “Bloomsday”. Em sua jornada interior e exterior, Bloom enfrenta uma série de questões existenciais e íntimas, sendo uma das mais dolorosas a perda de seu filho, Rudy, que morreu ainda bebê. A ausência de Rudy permeia o romance de maneira sutil, mas poderosa, refletindo a devastação silenciosa que uma perda tão profunda pode causar. Essa dor é uma constante no casamento de Bloom com Molly, sua esposa, e, assim como em “Hamlet”, o luto pela perda de um filho torna-se uma questão central para entender a psique de Bloom e sua relação com o mundo.

A cena em que a questão da perda de Rudy surge de forma mais explícita acontece no episódio “Lestrigões”. Enquanto Bloom anda pelas ruas de Dublin, ele reflete sobre a paternidade e sobre o que Rudy poderia ter se tornado se tivesse vivido. “Se Rudy tivesse vivido”, pensa Bloom, “ele estaria agora com cerca de 11 anos”, a mesma idade com que o filho de Shakespeare morreu. Essa reflexão é acompanhada de uma profunda melancolia, uma espécie de luto silencioso que permeia a vida de Bloom e que surge nos momentos mais inesperados, assim como a presença fantasmagórica do pai de Hamlet aparece de forma intermitente e incômoda na tragédia shakespeariana. Bloom, ao longo de “Ulysses”, é assombrado pela ausência de Rudy, assim como Hamlet é assombrado pelo espectro de seu pai.

O luto de Bloom por Rudy é diferente do luto vingativo de Hamlet. Enquanto Hamlet busca uma forma de ação — e hesita em tomá-la —, Bloom é caracterizado por sua paciência e sua capacidade de suportar a dor em silêncio. Joyce nos oferece um retrato de um homem comum que lida com uma tragédia pessoal sem recorrer a grandes gestos dramáticos. Em vez disso, ele carrega seu luto no cotidiano, e sua introspecção revela como a perda de um filho afeta até mesmo as atividades mais mundanas, como passear pela cidade ou parar para comer. O luto de Bloom é muito mais internalizado, mas igualmente devastador.

Em outro episódio, “Circe”, o tema da perda de Rudy ressurge de forma onírica, quando o fantasma do menino aparece brevemente em uma visão que Bloom tem durante seu delírio. Rudy é imaginado como uma figura angelical, um símbolo daquilo que poderia ter sido, mas que jamais se concretizou. Essa aparição fantasmal lembra a presença constante da morte na obra de Joyce e evoca, mais uma vez, a figura do fantasma do pai de Hamlet. No entanto, a aparição de Rudy é mais dolorosa do que vingativa; ele é um lembrete da fragilidade da vida e da impossibilidade de recuperar o que foi perdido.

A maneira como Joyce lida com essa perda reflete não apenas uma homenagem ao luto shakespeariano, mas também uma transposição do tema biográfico para o universo moderno. Em “Ulysses”, o drama da perda de um filho não ocorre em palácios ou castelos, mas nas ruas e lares de uma cidade comum. Joyce transforma a tragédia íntima de Bloom em um reflexo da experiência humana universal, da mesma forma que Shakespeare transformou sua dor pessoal em uma obra de arte profundamente significativa. A perda de Rudy é um dos muitos elementos que humanizam Bloom, tornando-o uma figura trágica e, ao mesmo tempo, uma representação da resiliência diante da dor.

Além disso, o luto por Rudy não é apenas uma questão para Bloom; ele afeta profundamente seu relacionamento com Molly. A morte de Rudy não é mencionada diretamente entre os dois, mas paira como uma sombra sobre seu casamento. Molly, por sua vez, também lida com essa perda de maneiras sutis. A infidelidade de Molly, seu distanciamento emocional de Bloom, pode ser vista como uma resposta indireta à dor que ela sente pela morte do filho. O vazio deixado por Rudy cria uma fissura em seu relacionamento, uma lacuna que nunca pode ser completamente preenchida, mas que ambos os personagens tentam enfrentar à sua maneira.

O impacto do luto e sua influência sobre as relações humanas são temas recorrentes na literatura. Assim como Shakespeare utiliza a perda como um motor para as angústias de Hamlet, Joyce faz o mesmo com Bloom. Ambos os personagens são moldados por suas dores e encontram, em meio às suas jornadas, diferentes formas de lidar com a ausência e a memória. Enquanto Hamlet se debate entre a ação e a inação, sendo consumido por sua necessidade de vingança, Bloom aprende a conviver com a perda de forma mais resignada, encontrando consolo na rotina e nos pequenos prazeres da vida cotidiana.

Essa diferença entre os protagonistas também revela algo essencial sobre as formas como a literatura trata o luto ao longo do tempo. Em “Hamlet”, o sofrimento é elevado ao nível do trágico, onde o destino e a moralidade desempenham papéis centrais. Já em “Ulysses”, a dor se manifesta de forma mais sutil, permeando gestos comuns e pensamentos dispersos. Essa abordagem mais introspectiva reflete uma sensibilidade modernista, na qual as grandes questões existenciais são tratadas não apenas por meio de eventos dramáticos, mas também por meio da fragmentação e da subjetividade do fluxo de consciência.

Ao longo dos séculos, a literatura continuou a explorar o impacto da perda e do luto sob diversas perspectivas. A obra de Shakespeare influenciou incontáveis escritores, e James Joyce, ao transformar experiências pessoais em narrativa literária, ecoa essa tradição. A conexão entre “Hamlet” e “Ulysses” exemplifica como a literatura ocidental evoluiu sem perder de vista seus temas essenciais, como a mortalidade, a memória e a busca por significado.

Em última instância, tanto Hamlet quanto Bloom são personagens que, apesar de separados por séculos e contextos muito distintos, compartilham um vínculo profundo: ambos são assombrados pelo passado e precisam encontrar um caminho para seguir adiante. Se Hamlet se perde em sua indecisão e no peso de sua missão, Bloom representa uma visão alternativa — a de um homem comum que, mesmo carregando sua dor, continua a caminhar, a observar o mundo e a encontrar beleza na simplicidade da vida. Essa diferença fundamental entre os protagonistas de Shakespeare e Joyce evidencia não apenas a evolução da literatura, mas também as transformações na forma como compreendemos o sofrimento humano e sua expressão artística.

Dessa forma, a interseção entre “Hamlet” e “Ulysses” nos lembra que a literatura, em suas múltiplas formas e estilos, continua sendo um espaço para refletirmos sobre as experiências que nos tornam humanos — e que a dor, por mais devastadora que seja, pode se transformar em arte e em legado.

“Ulysses” traz à tona a questão de como a biografia e a literatura se entrelaçam para revelar verdades mais profundas sobre a experiência humana. Assim como Shakespeare, Joyce utiliza uma tragédia pessoal — tanto no caso do próprio Bloom quanto, possivelmente, de sua própria vida, já que Joyce e sua esposa, Nora, também perderam um filho prematuro — para tecer uma narrativa que ressoa com leitores em vários níveis. O luto pela perda de um filho, como em “Hamlet” e em “Ulysses”, transcende o particular para se tornar um tema universal, tocando em questões de memória, identidade e a fragilidade da existência humana.

James Joyce, ao escrever “Ulysses”, trouxe de volta à cena intelectual o tema biográfico da perda, especialmente no contexto da paternidade, e o transformou em um dos pilares emocionais de sua obra-prima. Assim como em “Hamlet”, o luto por um filho perdido serve como um fio condutor que une a tragédia pessoal à profundidade filosófica e psicológica do texto, demonstrando como a literatura pode extrair beleza e complexidade das dores mais íntimas da vida humana.

Hamlet é, antes de qualquer coisa, uma figura intelectual. Seu espírito reflexivo, constantemente voltado para questões filosóficas e existenciais, distingue-o não apenas como um príncipe dinamarquês, mas como um pensador imerso nas ambiguidades da vida e da morte. Desde o início da peça, fica claro que Hamlet não é alguém que age por impulso. Seu retorno da Universidade de Wittenberg, onde estudava, reforça a imagem de um jovem envolvido no conhecimento, alguém que valoriza o pensamento analítico e se vê confrontado com dilemas que transcendem os problemas políticos da corte.

Estudar fora, especialmente em uma cidade como Wittenberg, conhecida por ser um centro de aprendizado e de reforma intelectual, confere a Hamlet uma posição especial. Ele não é apenas o herdeiro de um trono, mas um homem cultivado, alguém que se distancia da superficialidade da corte por meio de seu contato com os saberes filosóficos e científicos da época. Seu retorno à Dinamarca, portanto, não é apenas o de um príncipe que volta ao lar, mas o de um jovem que traz consigo as incertezas da razão e o ceticismo próprio de uma mente treinada a questionar.

Esse aspecto intelectual de Hamlet se manifesta, sobretudo, em sua tendência a pensar incessantemente sobre as circunstâncias que o cercam, particularmente após a aparição do fantasma de seu pai. Enquanto muitos personagens na peça são movidos por paixões imediatas ou pela busca de poder, Hamlet prefere refletir. Ele se debruça sobre os aspectos mais sombrios e metafísicos da condição humana, o que é evidente em seus monólogos. O mais célebre deles, “Ser ou não ser, eis a questão”, não é apenas uma meditação sobre o suicídio, mas sobre o próprio sentido da existência, sobre o fardo da consciência e a incerteza do além-vida. Hamlet se pergunta se vale a pena continuar vivendo em um mundo marcado pela corrupção, pelo sofrimento e pela incerteza, uma questão que revela seu caráter profundamente filosófico.

Hamlet
Cada palavra de Hamlet parece ser impregnada de um poder capaz de perfurar as camadas superficiais da existência

Mas esse incessante questionamento também é sua maldição. Hamlet é um intelectual que se vê paralisado pela reflexão. Diferentemente de personagens como Laertes ou mesmo seu tio Cláudio, que agem rapidamente quando confrontados com problemas, Hamlet hesita, pondera, analisa cada detalhe antes de tomar qualquer decisão. Isso faz dele um homem diferente dos heróis tradicionais, que triunfam pela ação ou pela força. Hamlet é um herói trágico precisamente porque sua intelectualidade o impede de agir com a mesma rapidez ou eficácia que outros personagens na peça. A reflexão, que deveria ser uma ferramenta para entender o mundo, torna-se, para ele, um fardo que atrasa suas decisões e, eventualmente, contribui para sua queda.

Além disso, o fato de Hamlet viver constantemente imerso em pensamentos também o afasta emocionalmente de outros personagens. Seu distanciamento de Ofélia, por exemplo, pode ser interpretado como resultado de sua incapacidade de se conectar emocionalmente quando sua mente está consumida por dilemas éticos e filosóficos. Ele chega a dizer a Ofélia que “nunca a amou”, um gesto que, à primeira vista, parece cruel, mas que pode ser entendido como a incapacidade de conciliar suas preocupações intelectuais com suas emoções humanas. A mente de Hamlet é um campo de batalha, onde o amor, o dever, o pensamento e o desespero se entrelaçam de maneiras conflitantes.

Esse conflito entre pensamento e ação, entre emoção e intelecto, é um dos elementos que tornam Hamlet tão fascinante. Ele é, por excelência, um pensador, alguém que se sente mais confortável no reino das ideias do que no das ações práticas. Sua introspecção o faz questionar a justiça, a moralidade e o sentido da vingança. Ele se pergunta se a justiça pode realmente ser alcançada por meio da violência e se a morte pode, de fato, ser o fim de todos os sofrimentos. Suas dúvidas o consomem de tal forma que ele retarda a execução de sua vingança, o que o coloca em um lugar de profunda vulnerabilidade.

Entretanto, é importante notar que a intelectualidade de Hamlet não é apresentada como algo inteiramente negativo. Ao contrário, é ela que confere à peça sua profundidade e riqueza. Hamlet representa a figura do intelectual moderno, alguém que busca respostas em um mundo que não as oferece facilmente. Sua busca por sentido, sua recusa em aceitar as coisas pelo que são e sua insistência em questionar o status quo são características que ressoam com qualquer pessoa que já se viu confrontada pelas grandes questões da vida. Hamlet, em seu incessante pensar, nos convida a refletir sobre nossas próprias vidas, sobre nossos próprios dilemas e nossas próprias hesitações.

Trata-se de uma peça sobre o pensamento — sobre o preço de ser um pensador em um mundo que valoriza a ação. E é nesse conflito entre pensamento e ação que reside a grande tragédia de Hamlet. Sua mente, que poderia ter sido sua maior força, acaba se tornando sua maior fraqueza, pois o impede de agir no momento certo. O peso de sua intelectualidade, embora fascinante e profundo, o arrasta para um destino trágico. Assim, Hamlet não é apenas um personagem complexo; ele é o reflexo de uma humanidade que, ao pensar demais, muitas vezes se perde nas próprias questões que cria.

Hamlet, sem dúvida, ocupa o lugar mais alto na hierarquia dos grandes personagens da literatura ocidental. O impacto que ele provoca vai além de qualquer outra figura literária, em parte pela complexidade multifacetada que Shakespeare lhe deu, em parte pela universalidade de suas dúvidas e angústias. Ele é o espelho de uma humanidade que, no fundo, busca incessantemente respostas para perguntas que talvez nunca tenham solução definitiva. A força de Hamlet está em sua profundidade de pensamento, que transcende a narrativa da vingança e alcança questões sobre a essência da vida e do ser. Mesmo comparado a outros personagens monumentalmente complexos, como Marcel, o narrador de “Em Busca do Tempo Perdido”, de Proust, Hamlet permanece inabalável em seu posto de maior personagem da história da literatura.

Enquanto Marcel gasta cerca de 3.000 páginas para articular suas percepções, recordações e sentimentos, Hamlet, em alguns mil versos, sintetiza questões existenciais que ressoam de forma quase universal. Marcel, em sua profunda investigação da memória, do tempo e do amor, é um personagem profundamente introspectivo, mas, apesar da vastidão de sua narrativa, ele não consegue alcançar a densidade e a profundidade filosófica que Hamlet oferece em cada fala. Para mim, um proustiano devoto, é difícil reconhecer isso, mas meu compromisso maior de existência é e sempre foi a literatura, então se faz necessário reconhecer. Enquanto Marcel nos apresenta o mundo interior de um indivíduo que se constrói por meio da memória e do tempo, Hamlet nos lança diretamente nas questões que governam a existência humana: a vida, a morte, a moralidade, o ser e o não ser.

Hamlet, em suas reflexões, não só se aprofunda na subjetividade, mas também naquilo que é universal: o medo da morte, o peso da consciência, o dilema entre ação e paralisia, a corrupção do poder e a impotência diante do destino. Enquanto Marcel revisita continuamente suas experiências passadas, Hamlet enfrenta a crueza do presente e a urgência do futuro. Sua crise pessoal não é apenas o produto de um trauma singular, mas o reflexo de uma angústia existencial que todo ser humano, em algum momento, é forçado a confrontar. Hamlet é, antes de tudo, um ser em luta com as grandes questões da condição humana, questões que transcendem o tempo e o espaço.

Shakespeare cria em Hamlet um personagem que, mesmo em seus momentos mais introspectivos e solitários, está em constante diálogo com o mundo ao seu redor, seja através de suas interações com outros personagens, seja através de seus monólogos profundos, que expõem suas tormentas internas. Ele não é apenas um príncipe que medita sobre a vingança de um pai assassinado; é um pensador que luta para compreender o sentido da existência em um universo que lhe parece cada vez mais vazio de respostas. E é essa amplitude de questionamento que faz de Hamlet um personagem imortal. Ele não representa apenas o homem da Renascença, mas o homem de todas as épocas.

Por outro lado, Marcel, apesar de ser uma das criações mais brilhantes da literatura moderna, parece estar sempre voltado para dentro, imerso em seu mundo subjetivo de lembranças e sensações. Sua busca pela verdade através da memória e da arte é, sem dúvida, uma jornada monumental, mas carece da intensidade e urgência que caracterizam as crises existenciais de Hamlet. Proust escreve uma saga sobre o tempo e a memória, mas Hamlet, em suas falas breves e incisivas, vai diretamente ao coração das questões humanas mais fundamentais, e isso o coloca em uma posição única na história da literatura. A cada nova geração que se depara com Hamlet, seja no palco ou nas páginas de Shakespeare, a peça ressurge com uma relevância impressionante, pois o personagem encapsula algo que transcende a mera interpretação histórica ou literária.

Há uma sabedoria em Hamlet que o torna, paradoxalmente, tanto o mais humano quanto o mais sobre-humano dos personagens. Ele é capaz de reconhecer a pequenez e a grandeza da existência em um só gesto, como na cena em que contempla o crânio de Yorick, o bobo da corte. Nesse gesto simples, Hamlet reflete sobre a mortalidade de forma tão contundente que suas palavras ecoam através dos séculos, dialogando com todos os que, em algum momento, se viram face a face com a inevitabilidade da morte. Em um instante, ele capta a tragicidade da vida humana e a absurda comédia da existência. Nenhum outro personagem da literatura, nem mesmo Marcel, com suas memórias infinitas, consegue abarcar tal profundidade em tão poucas palavras.

Hamlet continua a ser insuperável. Enquanto Marcel nos oferece um mergulho profundo nas águas da subjetividade e do tempo, Hamlet nos oferece o oceano aberto da condição humana. Marcel, em suas páginas incontáveis, é certamente uma das grandes realizações da literatura, mas Hamlet, com sua combinação única de intelecto, emoção e filosofia, é o personagem que, em última análise, oferece a mais completa visão do que significa ser humano. É por isso que Hamlet, ao longo dos séculos, continua a fascinar e a intrigar, não apenas como um personagem trágico, mas como o mais fiel representante da profundidade e complexidade da alma humana.

Se Marcel representa a complexidade de um indivíduo em constante busca de sentido, Hamlet representa a complexidade de toda a humanidade. Ele é o herói trágico por excelência, cujas dúvidas, hesitações e reflexões são o espelho de nossas próprias angústias. Hamlet permanece, então, como o maior personagem da literatura ocidental, não porque sua história seja mais grandiosa ou mais extensa, mas porque ele, em sua essência, captura a totalidade da experiência humana com uma precisão e uma profundidade que continuam a ressoar em todos aqueles que, como ele, já pararam para se questionar sobre o sentido de suas próprias vidas.

A sabedoria de Shakespeare, tal como a de Montaigne, resplandece em sua capacidade de examinar o ser humano em toda a sua complexidade e ambiguidade. Ambos, Shakespeare e Montaigne, são mestres da dúvida, do questionamento incessante sobre a natureza da vida, da moralidade e do sentido da existência. Enquanto Montaigne, em seus “Ensaios”, nos convida a uma introspecção filosófica, frequentemente sublinhando as contradições da natureza humana, Shakespeare, em “Hamlet”, nos apresenta um personagem cuja própria existência é definida por esse mesmo dilema: a busca pela verdade em um mundo de incertezas. A voz de Montaigne é a do pensador que, em reclusão, dialoga consigo e com os grandes autores do passado, refletindo sobre a condição humana; já a de Hamlet, no palco shakespeariano, é a de um intelectual em constante confronto com sua realidade imediata, vendo-se, ao mesmo tempo, ator e espectador de sua tragédia pessoal e universal.

Em Montaigne, vemos uma sabedoria que reconhece a fragilidade da certeza, a precariedade das opiniões e a falibilidade do julgamento humano. Seus ensaios se recusam a impor verdades absolutas, assim como “Hamlet” resiste a soluções fáceis para os dilemas existenciais que enfrenta. Quando Hamlet se pergunta “ser ou não ser”, ele não está apenas meditando sobre o suicídio, mas também sobre a própria essência do ser — uma questão profundamente montaigniana. Ambos revelam que a sabedoria não está na posse de respostas, mas na capacidade de habitar a incerteza com lucidez. Em Montaigne, lemos sobre a aceitação das próprias limitações, sobre o viver como uma constante adaptação ao inesperado. Shakespeare, em “Hamlet”, dramatiza essas mesmas questões com uma intensidade emocional que eleva a reflexão filosófica à dimensão trágica e universal.

Se Montaigne é o filósofo das incertezas e dos paradoxos, Dom Quixote e Sancho Pança, criados por Cervantes, oferecem um painel complementar a essa sabedoria. O cavaleiro e seu fiel escudeiro encarnam a dualidade fundamental entre idealismo e pragmatismo, sonho e realidade. Se Hamlet é o pensador trágico que se debate entre o fazer e o refletir, Quixote e Sancho encenam, em sua jornada, o embate entre a aspiração transcendental e a crueza do cotidiano. Hamlet, como Quixote, luta contra fantasmas, embora seus moinhos sejam de ordem moral e existencial, enquanto Quixote enfrenta os moinhos literais da banalidade cotidiana. E Sancho Pança, com seu realismo terreno, desempenha um papel que de certa forma ecoa o próprio Horácio de “Hamlet”: ambos são personagens secundários que, com sua prudência e moderação, tentam puxar seus mestres para o solo da realidade.

A sabedoria de Shakespeare, Montaigne, Cervantes e seus respectivos personagens se entrelaça em um contínuo esforço para compreender a condição humana. Dom Quixote busca a glória cavaleiresca e o ideal impossível; Hamlet procura o sentido da existência e a justiça em um mundo corrupto. O contraste entre Quixote e Sancho ressoa na tensão interna de Hamlet: a aspiração ao sublime confrontada com a crueza da existência. Sancho, com seu senso prático, nos lembra que a vida é feita de pequenos prazeres e pragmatismos; Hamlet, porém, ao contrário de Sancho, perde-se em uma sabedoria que lhe dificulta a ação.

O carisma de Hamlet é singular, distinto de qualquer outro personagem da literatura ocidental. Ele transcende a mera construção dramática, tornando-se uma figura quase mítica pela força de sua presença no palco e nas páginas. Parte desse carisma vem de sua inquietude intelectual: Hamlet é o herói que pensa, que questiona, que duvida. Diferente de outros protagonistas trágicos que agem impulsivamente, Hamlet está sempre imerso em um turbilhão de reflexões, e é essa complexidade interior que o torna tão magnético. O público não só o acompanha em sua jornada de vingança e justiça, mas também em sua busca por respostas que ultrapassam o enredo imediato, tocando as grandes questões da vida e da morte.

Essa capacidade de Hamlet de expor suas dúvidas e contradições com uma eloquência rara é, em grande parte, o que cativa o espectador e o leitor. Ele é um ser profundamente humano, e seu carisma não reside apenas em sua inteligência, mas em sua vulnerabilidade. Em suas falas mais célebres, como o “Ser ou não ser”, Hamlet nos coloca diante de questões que, mais cedo ou mais tarde, todo ser humano enfrenta. Sua angústia não é apenas individual, mas universal, e é essa capacidade de traduzir em palavras aquilo que é inefável, aquilo que muitas vezes não sabemos articular, que torna Hamlet tão fascinante. Ele não é apenas um príncipe dinamarquês; é um reflexo de todos nós.

Outra faceta de seu carisma está na sua mistura de introspecção filosófica com uma surpreendente veia cômica. Hamlet, embora trágico em sua essência, possui uma sagacidade e um senso de ironia que o tornam um personagem irresistivelmente encantador. Seu uso da palavra é afiado, e ele a emprega tanto para sondar os mistérios da existência quanto para expor as hipocrisias e os absurdos ao seu redor. Sua interação com personagens como Polônio, por exemplo, revela uma faceta jocosa que surpreende pela agilidade mental e ironia mordaz. Esse humor cortante, que surge em meio à sua dor, acrescenta uma dimensão inesperada ao seu caráter, mostrando que, mesmo na tragédia, Hamlet é capaz de enxergar o absurdo do mundo e rir dele.

Além disso, Hamlet é profundamente carismático porque é um personagem em constante transformação. Ele nunca é estático. Ao longo da peça, assistimos a um Hamlet que oscila entre a ação e a paralisia, entre o amor e o desprezo, entre a certeza e a dúvida. Ele é uma figura que se reinventa à medida que as circunstâncias mudam, e essa capacidade de transformação o torna imprevisível e, portanto, ainda mais atraente. Ele nunca se acomoda em um único papel, desafiando as expectativas tanto dos outros personagens quanto do público. Hamlet está sempre em movimento, sempre evoluindo, e isso o torna um personagem dinâmico e cativante.

No entanto, talvez o que mais contribua para o carisma de Hamlet seja sua coragem moral. Embora atormentado pela dúvida, ele nunca deixa de confrontar as verdades mais sombrias de sua existência. Ele questiona não só o mundo ao seu redor, mas também a si mesmo, e isso exige uma coragem que poucos personagens da literatura demonstram. Sua honestidade consigo próprio e com o público é o que o diferencia de muitos outros protagonistas trágicos. Hamlet não se esconde atrás de máscaras ou desculpas; ele expõe suas fraquezas e incertezas de maneira franca e direta. Esse tipo de vulnerabilidade autêntica é raro e profundamente atraente, pois nos conecta diretamente a ele em um nível emocional.

Hamlet
A universalidade de seus temas tornou a peça objeto de constantes reflexões e análises, gerando discussões que ressoam através dos séculos

O carisma, neste personagem infinito, reside no mistério que ele encarna. Mesmo após séculos de análises e interpretações, ele permanece uma figura enigmática. Não importa quantas vezes a peça seja lida ou encenada, Hamlet nunca revela totalmente sua essência. Ele continua a surpreender, a desconcertar, a provocar. Esse mistério é central ao seu apelo, pois, como os grandes personagens da história, Hamlet é inesgotável. Seu carisma é aquele que desafia e fascina, que convida a uma investigação infinita de sua alma, mas que nunca se revela por completo, garantindo sua imortalidade na literatura e no imaginário humano.

Ao retornarmos à origem de Hamlet, é inevitável mencionar o chamado Ur-Hamlet, uma peça anterior à de Shakespeare que teria servido como uma das principais inspirações para a tragédia que conhecemos. O termo Ur-Hamlet refere-se a uma obra presumivelmente escrita por Thomas Kyd (muitos acreditam que possa ter sido uma primeira versão feita pelo próprio Shakespeare) por volta da década de 1580, cujo enredo girava em torno de um príncipe dinamarquês que buscava vingar o assassinato de seu pai, como em “Hamlet”. Embora não possamos afirmar com certeza o quanto a peça oficial deriva diretamente dessa obra anterior, a existência do Ur-Hamlet aponta para uma tradição de narrativas vingativas no teatro elisabetano, uma tradição da qual Shakespeare se apropria e, como sempre, eleva a níveis incomparáveis.

O que sabemos do Ur-Hamlet vem, em grande parte, de referências de contemporâneos de Shakespeare, como o dramaturgo Thomas Nashe e o editor Philip Henslowe. Nashe menciona uma peça sobre Hamlet em sua obra “Prefácio a Menafonte”, escrita em 1589, e Henslowe também faz referência a uma tragédia chamada “Hamlet” em seus registros teatrais de 1594. Essas menções indicam que uma versão da história de Hamlet já circulava em Londres antes de Shakespeare escrever sua peça definitiva, sugerindo que a narrativa de vingança e o próprio personagem Hamlet já tinham apelo popular no teatro inglês.

No entanto, o que diferencia o “Hamlet” de Shakespeare do possível Ur-Hamlet de Kyd é a profundidade filosófica e psicológica que o dramaturgo elisabetano injeta em sua versão. Enquanto o Ur-Hamlet provavelmente se concentrava mais nas convenções do teatro de vingança, com foco na ação e no espetáculo — possivelmente incluindo a aparição de um fantasma e a loucura fingida do herói —, Shakespeare transformou esse esqueleto narrativo em um tratado existencial sobre o ser, o tempo e a moralidade. A dúvida, a hesitação e a reflexão introspectiva de Hamlet são inovações que transcendem a fórmula do drama de vingança e que nos fazem lembrar que, mesmo quando Shakespeare trabalha com material de segunda mão, ele o faz de uma maneira que revoluciona a estrutura e o conteúdo dramático.

Outro ponto relevante ao tratarmos do Ur-Hamlet é a presença do fantasma, um elemento central em ambas as peças. Embora os fantasmas fossem uma característica comum nas tragédias de vingança da época — como na própria obra de Kyd, “A Tragédia Espanhola” —, Shakespeare usa o espectro do rei Hamlet de maneira mais complexa e multifacetada. Ele não é apenas o motor da vingança, mas uma figura que personifica o passado não resolvido, o peso da memória e o legado da culpa. O fantasma, com sua presença assombrosa, sugere uma interseção entre o mundo dos vivos e dos mortos que, em “Hamlet”, ganha uma ressonância simbólica muito mais ampla do que a simples demanda por vingança.

Seja como for, Shakespeare se apropria dessas fontes e as transforma com sua capacidade de sondar as profundezas da psique humana. Enquanto o Ur-Hamlet e as crônicas de Saxo oferecem o esqueleto da trama, é o gênio de Shakespeare que infunde a peça com as questões filosóficas que fizeram de “Hamlet” uma das obras mais estudadas e interpretadas da história da literatura. A familiaridade com essas fontes, no entanto, nos ajuda a entender que Shakespeare trabalhava dentro de uma tradição e que a originalidade de seu “Hamlet” reside não tanto na criação de um enredo novo, mas na maneira como ele transforma um conto popular de vingança em uma meditação universal sobre a condição humana.

A gênese de “Hamlet” é uma confluência de tradições literárias e teatrais. Desde o Ur-Hamlet, possivelmente de Kyd, até as sagas nórdicas e os dramas de vingança que eram populares no teatro elisabetano, Shakespeare canaliza esses elementos, mas transcende suas fontes ao criar um personagem e uma peça que dialogam com as questões eternas da vida, da morte e da moralidade. E é precisamente essa habilidade de elevar o material pré-existente ao reino do sublime que faz de “Hamlet” não apenas uma obra de Shakespeare, mas uma das maiores realizações artísticas da humanidade.

O perguntar-se a si mesmo é o que mais aproxima Hamlet de todos nós. As perguntas retóricas desempenham um papel central no desenvolvimento do personagem, especialmente no que diz respeito à sua introspecção e ao seu constante questionamento da realidade que o cerca. Esse recurso linguístico, que permeia toda a peça, não é apenas um artifício retórico, mas uma expressão da mente inquieta de Hamlet, que está sempre em busca de respostas para os dilemas existenciais que enfrenta. Em vez de agir de maneira decisiva e rápida, como os heróis típicos das tragédias de vingança, Hamlet se detém em um processo de autoavaliação e reflexão, manifestado nas inúmeras perguntas que faz, tanto para si quanto para os outros. As perguntas retóricas, portanto, tornam-se uma estratégia de desenvolvimento do personagem, revelando sua hesitação, dúvida e profunda complexidade psicológica.

A mais famosa dessas perguntas é, sem dúvida, o célebre “Ser ou não ser, eis a questão”, que condensa de maneira exemplar o dilema central da peça. Aqui, Hamlet não se dirige a ninguém em particular, nem espera uma resposta externa; ele está dialogando consigo mesmo, debatendo a essência da vida e da morte, o sofrimento humano e a incerteza do que vem depois. A própria formulação da questão já sugere que Hamlet está preso em um ciclo de perguntas sem respostas definitivas. Essa hesitação intelectual é o que o diferencia de outros personagens do teatro shakespeariano, que frequentemente agem de maneira impulsiva ou resoluta. Em Hamlet, no entanto, a ação é constantemente adiada, pois cada pergunta abre um novo campo de dúvida e incerteza, reforçando o caráter filosófico da obra.

O fato de a palavra “questão” ser mencionada 17 vezes na peça não é acidental e revela o tema central do questionamento, da dúvida e da busca por significados. Cada vez que essa palavra surge, ela carrega um peso que vai além do literal. Em muitos momentos, a “questão” não se refere a algo externo, mas à própria condição humana — uma questão que não pode ser resolvida de maneira fácil ou simples. O uso reiterado do termo por Hamlet sugere que ele vê a vida como um enigma, uma série de perguntas complexas para as quais não há respostas claras. Nesse sentido, a palavra “questão” se torna um símbolo da tragédia pessoal e existencial de Hamlet, alguém que é incapaz de aceitar as respostas simples ou as soluções imediatas oferecidas pelos outros.

Além do famoso monólogo do terceiro ato, encontramos Hamlet recorrendo a perguntas retóricas em vários outros momentos cruciais da peça. Sua interrogação à própria mãe, “Tens olhos?”, quando confronta Gertrudes sobre seu casamento com Cláudio, é um exemplo da maneira como essas perguntas funcionam para expressar indignação, choque e confusão moral. Hamlet não busca uma resposta literal aqui; ele está expressando sua incredulidade diante da traição que enxerga na atitude da mãe. A pergunta, portanto, serve como um espelho do tormento interno de Hamlet, revelando suas profundas dúvidas sobre as pessoas que o cercam e sobre a moralidade de suas ações.

As perguntas retóricas também são usadas como uma forma de interação com outros personagens, mas de maneira que expõe tanto a própria angústia de Hamlet quanto sua visão crítica do mundo ao seu redor. Em sua conversa com Rosencrantz e Guildenstern, por exemplo, Hamlet os confronta com perguntas sobre a natureza da amizade e da traição, sabendo que eles foram enviados para espioná-lo. “Pode-se ser fiel sem ser verdadeiro?”, ele pergunta, mais uma vez revelando sua desconfiança e sua capacidade de questionar até mesmo as relações mais próximas. Esse uso das perguntas retóricas não só aprofunda a tensão dramática, mas também constrói Hamlet como um personagem que está em constante busca por um sentido mais profundo naquilo que lhe é apresentado.

Além disso, as perguntas retóricas em “Hamlet” servem para expor a tensão entre a aparência e a realidade, um dos temas centrais da peça. Hamlet está sempre questionando o que é verdadeiro e o que é falso, quem é sincero e quem está dissimulando. Suas perguntas são, muitas vezes, direcionadas a desvendar as motivações ocultas dos personagens ao seu redor, como na cena em que questiona a lealdade de Ofélia ou na sua interação com o próprio Fantasma, cujas intenções ele também suspeita. Cada uma dessas perguntas leva o público a considerar a complexidade dos eventos que se desenrolam e a refletir sobre o fato de que, em “Hamlet”, nada é o que parece ser à primeira vista.

Esse uso constante de perguntas retóricas e o foco na “questão” reforçam o caráter reflexivo e filosófico da peça. A tragédia de Hamlet não é simplesmente uma história de vingança; é, acima de tudo, um drama intelectual, uma meditação sobre o ser, o tempo, a verdade e a ilusão. As perguntas que Hamlet faz, e o próprio ato de questionar, são tão centrais à peça quanto os eventos dramáticos que ocorrem nela. Elas nos envolvem em um processo contínuo de reflexão, de busca por significados que, tal como Hamlet, nunca conseguimos alcançar completamente. Isso é parte do gênio de Shakespeare: transformar a dúvida e a incerteza em elementos dramáticos, fazendo com que o público se veja refletido nas hesitações e angústias de seu personagem mais icônico.

Um dos pontos que reforçam a hipótese levantada por James Joyce em “Ulysses”, de que “Hamlet” contém elementos autobiográficos, é o fato documentado de que o próprio William Shakespeare desempenhou o papel do Fantasma do pai de Hamlet na primeira apresentação da peça. Essa escolha de Shakespeare para interpretar uma figura paterna que retorna do além, atormentada por seu assassinato e ansiando por justiça, não pode ser vista como mera coincidência. Muitos estudiosos argumentam que esse ato carrega um simbolismo profundo, especialmente se considerarmos o contexto biográfico de Shakespeare, marcado pela perda de seu filho, Hamnet, em 1596.

Hamlet
Desde a sua primeira aparição no palco, a obra tem capturado a imaginação da humanidade como poucas na literatura ocidental

A presença de Shakespeare no palco como o Fantasma não só o conecta diretamente à peça de uma maneira visceral, mas também levanta questões sobre sua própria relação com a paternidade, a mortalidade e a memória. Para Joyce, a performance de Shakespeare como o Fantasma sugere uma fusão entre o dramaturgo e sua criação: Shakespeare, ao encarnar o pai de Hamlet, parece projetar suas próprias dores e medos em cena, refletindo seu luto pela morte de Hamnet e, talvez, um sentimento de culpa ou de impotência diante do destino. Joyce desenvolve essa ideia em “Ulysses”, quando Stephen Dedalus especula que Shakespeare canalizou sua dor pessoal e suas ansiedades em “Hamlet”, criando assim uma obra profundamente autobiográfica.

O Fantasma do pai de Hamlet é uma figura central na trama da peça, e sua aparição inicial desencadeia todo o conflito dramático subsequente. Ele não é um espírito comum; é uma presença atormentada, assombrada pelo desejo de vingança, mas também pela angústia de ter sido esquecido. O Fantasma implora ao filho que se lembre dele e que honre sua memória, o que pode ser lido como uma metáfora para a própria busca de Shakespeare por imortalizar-se e transcender a morte por meio de sua obra. A escolha de Shakespeare em representar pessoalmente essa figura intensifica a conexão entre autor e personagem, criando uma camada adicional de complexidade tanto para o Fantasma quanto para Hamlet, que agora carrega traços do próprio dramaturgo.

Além disso, o papel do Fantasma é fundamental na exploração dos temas de luto, lembrança e obrigação filial. Ao desempenhar esse papel, Shakespeare talvez estivesse não apenas dirigindo essas questões ao público, mas também a si mesmo. A figura do pai que exige vingança pode ser vista como uma representação simbólica do próprio luto de Shakespeare pela perda de Hamnet, uma forma de processar e representar sua dor. Através do Fantasma, Shakespeare parece trazer à tona suas próprias preocupações sobre a mortalidade e a continuidade, confrontando-se com as perdas pessoais que marcaram sua vida.

Outro aspecto que valida essa hipótese é a maneira como o Fantasma está ligado ao conceito de memória, um tema que ressoa tanto em “Hamlet” quanto na vida de Shakespeare. O apelo do Fantasma para que Hamlet “lembre-se” dele pode ser visto como um desejo de Shakespeare de ser lembrado através de sua obra, uma tentativa de superar a mortalidade por meio da criação artística. A angústia do Fantasma em relação ao esquecimento reflete, em certo sentido, a angústia de qualquer autor diante da possibilidade de cair no esquecimento. Ao interpretar esse papel, Shakespeare parece enfrentar diretamente essa ansiedade, incorporando-a de forma dramática e poderosa.

O fato de Shakespeare ter representado o Fantasma na primeira apresentação de “Hamlet” reforça a noção de que ele, conscientemente ou não, infundiu elementos de sua vida pessoal na peça. Esse ato de autoprojeção no personagem paterno, somado à trama de vingança, luto e memória, cria um vínculo profundo entre autor e obra. Assim, a visão de Joyce de que “Hamlet” é uma obra autobiográfica ganha substância, sugerindo que Shakespeare, ao escrever e interpretar o Fantasma, estava processando seus próprios sentimentos de perda e questionamentos sobre a vida, a morte e a memória — sentimentos que são, em última instância, universais e atemporais.

Um dos aspectos mais fascinantes da obra de Shakespeare é a coexistência de dois personagens que, apesar de aparentemente antagônicos em suas naturezas e funções dramáticas, são imensamente complexos e profundos: Hamlet e Falstaff. Enquanto Hamlet é o personagem por excelência da dúvida filosófica, do questionamento existencial e da melancolia, Falstaff, por sua vez, é o espírito vivaz e irreverente, dotado de uma sabedoria terrena e uma vitalidade cômica que transborda em cada uma de suas aparições. A ideia de que, na mente de Shakespeare, poderia ter havido um “duelo” entre esses dois gigantes de sua criação dramática é um pensamento intrigante, que sugere o quanto o bardo explorava as múltiplas facetas do caráter humano em suas obras.

Falstaff, com sua presença vibrante em peças como “Henrique 4º” e “As Alegres Comadres de Windsor”, é frequentemente visto como o oposto de Hamlet em termos de temperamento e visão de mundo. Enquanto Hamlet se consome em dúvidas metafísicas e debates internos sobre o significado da vida e da morte, Falstaff vive no presente, desprezando honras e títulos e adotando uma filosofia hedonista de aproveitar a vida sem se preocupar com as convenções sociais ou as consequências morais. A inteligência sagaz de Falstaff é, no entanto, de uma ordem diferente: ele é engenhoso, rápido no raciocínio e astuto em manipular aqueles ao seu redor para garantir sua própria sobrevivência. Se Hamlet é o pensador profundo, buscando o sentido em cada ação, Falstaff é o sobrevivente prático, imerso na materialidade da vida.

Essa dicotomia entre os dois personagens sugere que, na mente de Shakespeare, existia um embate entre duas visões de mundo que, apesar de opostas, são igualmente humanas. Hamlet, ao representar a intelectualidade e a introspecção, encarna o dilema da inação, da incapacidade de reconciliar pensamento e ação. Ele está ciente de sua incapacidade de se mover em direção a uma solução prática para seus problemas. Falstaff, por outro lado, não é atormentado por dilemas existenciais, mas sim pelo desejo de satisfazer seus prazeres imediatos e evitar qualquer tipo de sacrifício moral ou físico. Enquanto Hamlet vive para questionar, Falstaff vive para escapar.

Esse “duelo” entre Hamlet e Falstaff não é apenas um confronto de personalidades, mas de perspectivas sobre a vida. A própria estrutura dramática das peças que os apresentam enfatiza essa tensão. Hamlet pertence à tragédia, um gênero que exige seriedade, peso e um destino inevitável que conduz o herói à sua queda. Falstaff, por sua vez, domina a comédia e a história, onde a leveza e a capacidade de subverter a seriedade da vida o tornam quase imortal no mundo fictício de Shakespeare. Em “Henrique 5º”, quando finalmente Falstaff morre, é como se uma parte da leveza da criação shakespeariana também desaparecesse, deixando um vácuo que apenas a introspecção hamletiana pode preencher.

No entanto, há algo de profundamente semelhante entre esses dois personagens. Ambos são eloquentes e astutos, mas sua eloquência serve a propósitos distintos. Hamlet usa a palavra como arma de introspecção e crítica filosófica; Falstaff a usa como ferramenta para evadir responsabilidades e moldar a realidade a seu favor. Ambos, no entanto, vivem cercados de uma autoconsciência aguda — Hamlet, de sua incapacidade de agir; Falstaff, de sua irrelevância no grande esquema das coisas. Se Hamlet é consumido por seu senso de dever e o fardo da vingança, Falstaff é consumido por seu desprezo pelo dever e pela honra, que considera ilusões frívolas.

Críticos como Harold Bloom observaram que Hamlet e Falstaff são as criações mais formidáveis de Shakespeare, não apenas pelo que representam individualmente, mas pelo que dizem sobre a mente criativa de seu autor. Em “A Invenção do Humano”, Bloom sugere que Shakespeare usou Falstaff e Hamlet como representações de duas forças opostas dentro de si mesmo: a da sabedoria cínica e prática do dia a dia e a da profundidade intelectual e melancólica que olha para além das aparências. É como se Shakespeare estivesse, ao criar esses dois personagens, refletindo sobre seu próprio dilema como observador da condição humana, ora tentando desvendar seus mistérios mais profundos, ora debochando deles.

Se existe um duelo entre Hamlet e Falstaff na mente de Shakespeare, talvez seja porque eles representam, de maneiras distintas, a completude do ser humano. Hamlet, com suas questões sobre a existência e a transcendência, parece buscar um significado maior para a vida, uma resposta definitiva para o que significa ser. Falstaff, com seu riso irreverente e suas escapadas engenhosas, nos lembra que, no fim das contas, a vida pode ser vivida também sem respostas, na simples experiência do presente. Shakespeare, ao conceber ambos, nos oferece um espelho da alma humana em suas contradições mais profundas — entre pensamento e ação, entre honra e desonra, entre ser e não ser.

Um confronto intelectual entre Hamlet e Falstaff seria um embate entre dois titãs da inteligência, mas distintos em essência. Falstaff, com sua habilidade cômica, torna-se o alvo de suas próprias piadas. Em contraste, o humor sombrio de Hamlet se volta contra a mortalidade e nossas pretensões. Enquanto Falstaff nos incita à leveza, Hamlet nos convida a uma metamorfose de entendimento. Falstaff é um catalisador de significados, enquanto Hamlet, em sua inclinação niilista e repleto de conceitos abstratos, obstrui o fluxo de significantes, salvo em esferas transcendentais.

A energia verbal de Hamlet é, em si, uma força avassaladora, que transcende o próprio teatro e toca as profundezas da consciência humana. Sua linguagem, densa e carregada de significado, reverbera não apenas no palco, mas em cada um de nós, espectadores e leitores. Hamlet fala para além de si mesmo; suas palavras parecem ter uma vida própria, nos envolvendo e nos tornando cúmplices de suas dúvidas, de seus anseios e de sua busca incessante por sentido. O discurso hamletiano não é mero instrumento de expressão dramática; é uma espécie de energia primordial, que emana da tragédia e se estende para o nosso mundo, nos desafiando a confrontar nossas próprias inquietações.

Ao ouvirmos Hamlet, somos atingidos por algo que vai além do simples prazer estético. Somos convocados a ouvir aquilo que não ousamos articular. Em sua verborragia, ele desvela as perguntas que carregamos em silêncio, aquelas que evitamos formular para nós mesmos por medo das respostas ou, pior, da ausência delas. Cada palavra de Hamlet parece ser impregnada de um poder capaz de perfurar as camadas superficiais da existência e atingir o âmago de nossas preocupações mais profundas. Ele nos ultrapassa porque suas questões, seus dilemas, são universais — falam de vida, morte, identidade e propósito —, mas o faz de maneira tão singular que, ao sermos absorvidos por seu discurso, não podemos deixar de nos reconhecer, ainda que por instantes fugazes, em sua inquietude.

De certa forma, Hamlet nos transforma em personagens de nossas próprias histórias. Ao refletirmos sobre suas palavras, começamos a nos ver como ele se vê: seres em uma constante busca por respostas, por entendimento. Em seus monólogos, especialmente o mais famoso de todos, ele nos empurra para uma dimensão onde não há como escapar das grandes questões da vida. Ele é, ao mesmo tempo, o ator e o espectador de sua própria tragédia, e nos coloca na mesma posição. Assim como ele é dilacerado pela dúvida, somos, por meio de suas palavras, lançados na arena de nossas próprias dúvidas, forçados a encarar a complexidade da vida sem a segurança das certezas fáceis.

A grandeza de Hamlet, portanto, reside não apenas em sua profundidade psicológica, mas em sua capacidade de nos abrir para nós mesmos. Ele nos obriga a enxergar a vida como algo fluido, repleto de perguntas sem respostas definitivas, mas, ainda assim, essencialmente humanas. Quando ouvimos Hamlet, estamos ouvindo uma parte de nossa própria alma que, sem ele, poderia ter permanecido em silêncio. Ele nos dá a coragem de fazer perguntas que jamais faríamos por conta própria, mas que, uma vez feitas, não podemos mais ignorar. Ao final, descobrimos que Hamlet não é apenas um personagem, mas uma voz que nos acompanha, uma presença constante que nos desafia a pensar, a sentir e a nos questionar, infinitamente.

[Fonte Original]

- Advertisement -spot_imgspot_img

Destaques

- Advertisement -spot_img

Últimas Notícias

- Advertisement -spot_img