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- Author, Rute Pina
- Role, Da BBC News Brasil, em São Paulo
No dia 21 de março de 1999, Aline Scátola lembra de ter lutado contra o sono para acompanhar a cerimônia do Oscar. Ela era uma menina de 11 anos em Tupã, cidade de 60 mil habitantes no interior de São Paulo, e estava ansiosa com a possibilidade de o filme Central do Brasil levar uma estatueta.
O longa-metragem brasileiro concorria em duas categorias, Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Atriz, com Fernanda Montenegro. “Lembro que o filme era o tema das conversas em todo lugar, no jornal, na televisão, na escola”, diz hoje a tradutora, aos 37 anos. “Foi um acontecimento.”
Distante de Tupã, em Los Angeles, outra criança também lutava contra o sono. Vinícius de Oliveira, com 13 anos na época, era o protagonista do filme e acompanhou uma série de eventos para a campanha de divulgação de Central do Brasil, além da cerimônia de premiação.
“Fizemos viagens nos Estados Unidos para mostrar o filme em alguns estados, eu participava de alguns jantares. Mas eu jantava e dormia na mesa. Era sempre bastante tarde, e as pessoas estavam falando em inglês e de assuntos que eu não entendia”, relembra.
“Eu não tinha percepção ainda de que o Oscar era uma coisa muito grande para o Brasil. Que era algo que a gente almejava e, que se ganhasse, seria como se fosse final de Copa do Mundo. Não tinha essa noção ainda.”
Até aquele momento, Central do Brasil havia percorrido um caminho de ineditismos, com sucesso de público e de crítica.
A obra levou milhões de brasileiros ao cinema e venceu, algo inédito para o cinema brasileiro, o Urso de Ouro na 48ª edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim e o Globo de Ouro, como Melhor Filme de Língua Estrangeira.

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Dirigido por Walter Salles, o filme ainda ressoa entre espectadores e críticos mais de 25 anos depois de seu lançamento mais emblemáticas do país.
Por trás das telas, os bastidores da produção foram cheios de desafios em um momento que marcava a retomada do cinema brasileiro, após o governo de Fernando Collor (1990-1992) —que estancou a produção de filmes brasileiros com o fechamento da Embrafilme, a Fundação do Cinema Brasileiro e o Concine, principais órgãos de fomento e fiscalização do setor.
Novamente, no dia 2 de março, o país se unifica no mesmo sentimento de 1999, agora em torno do filme Ainda Estou Aqui, também dirigido por Salles e que disputa três categorias no Oscar, com chances de levar uma estatueta de Melhor Filme Internacional, Melhor Filme e Melhor Atriz.
Em entrevista à BBC News Brasil, Walter Salles afirma que, passados 25 anos de Central do Brasil, mantém o mesmo desejo de narrar uma história em que a trajetória dos personagens se confunde a trajetória coletiva do país.
“O que muda com a maturidade é uma certa percepção de que é possível dizer mais com menos. Com atuações mais contidas, com uma direção que não deseja ser percebida. De alguma forma, isso talvez permita que a distância entre o espectador e os personagens diminua, ou mesmo deixe de existir.”
O início do projeto
Central do Brasil foi o terceiro longa-metragem de Salles, após reconhecimento por Terra Estrangeira.
“Acordei um dia com a ideia do filme e a arquitetura básica. Única vez que isso aconteceu comigo, aliás. Escrevi umas vinte páginas aquele dia com uma arquitetura de início, meio e fim”, relatou o diretor durante uma aula magna a estudantes da Universidade de São Paulo (USP) em 2013.
O enredo acompanha a história de Dora, uma ex-professora amargurada que escreve cartas para analfabetos na famosa estação de trem no Rio de Janeiro.
Um dia, Josué, de 9 anos, fica sozinho quando sua mãe morre em um acidente de ônibus. Dora reluta em cuidar do menino, mas viaja com ele pelo interior do Nordeste em busca de seu pai, que ele nunca conheceu.
O filme foi visto como uma metáfora para aquele período político do país. “Central do Brasil é o filme que melhor exprimiu o desejo de regeneração do país, surgido com o Plano Real e o fim da inflação. A história é a de uma corrupta que se regenera à medida que visita o país, ainda que a contragosto”, escreveu o crítico de cinema Inácio Araújo na Folha de S. Paulo.
Antes mesmo de finalizado, o roteiro ganhou o prêmio Sundance, uma premiação de fomento.

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Busca por um protagonista real
De um casting improvável a uma logística complexa de filmagens, a equipe enfrentou dificuldades para transformar a jornada de Dora e Josué em um retrato realista do Brasil.
Um dos maiores desafios da produção foi encontrar o ator que daria vida a Josué. Durante meses, a equipe percorreu o Brasil em busca de um garoto que trouxesse autenticidade ao papel.
“Foi quase um ano só para o casting se consolidar, sobretudo por causa da criança que iria interpretar o Josué. Foram mais de mil testes para conseguir achar o Vinícius, que daria vida ao personagem”, contou Salles aos estudantes da USP.
A produtora executiva Elisa Tolomelli trabalhou na produção de Central do Brasil.
“Eu era diretora comercial da RioFilme e lancei Terra Estrangeira. Foi aí que conheci o Walter. Depois, ele me mostrou o roteiro e pediu para eu produzir. Foi o meu primeiro filme como produtora executiva. Já tinha dirigido, distribuído, produzido, mas essa foi uma experiência muito especial”, relembrou à BBC News Brasil.
Ela conta que foram mais de 1,5 mil testes com diversos atores em todo o Brasil até encontrar Vinícius de Oliveira que, na época, engraxava sapatos no aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro.
“Passamos seis meses procurando. No final, tínhamos quatro meninos pré-selecionados, mas o Walter não estava convencido. Ele ia filmar com um deles porque o tempo estava acabando. Mas, no aeroporto, encontrou o Vinícius e perguntou se ele queria fazer um teste”, diz Tolomelli.
O encontro com Salles mudou a vida do menino.
“Ele me fez um primeiro convite para o teste e, a partir daí, começou um processo de preparação, faltava mais ou menos um mês para o início das filmagens. Como ninguém se conhecia, tudo aquilo era novo para mim”, conta o ator, hoje com 39 anos.
“Eu não tinha a menor noção de nada. Para falar a verdade, eu nem sabia direito o que era cinema. Nunca tinha ido a uma sala de cinema, nunca tinha vivido aquela experiência de estar num lugar escuro assistindo a um filme na tela grande. Aliás, mesmo nós, que estávamos fazendo o filme, não tínhamos noção do impacto que ele teria.”
O impacto da escolha foi imediato. Em entrevista à Folha de S. Paulo em junho de 1998, Salles afirmou que o encontro talvez tenha sido “sorte ou intuição”. “Se tivéssemos parado no meio do caminho, não teríamos encontrado Vinícius – e vice-versa”, afirmou.
“Estava à procura de um menino que soubesse o que era a luta pela sobrevivência, mas que não tivesse perdido a inocência neste processo.”
Filmagens e desafios logísticos
Rodado em diversas locações pelo Brasil, Central do Brasil exigiu uma logística complexa. As filmagens, envolvendo um set de filmagem com cerca de 80 profissionais, aconteceram em três estados: Rio de Janeiro, no interior da Bahia e no sertão de Pernambuco.
“Fazer um filme é um processo. Central do Brasil foi difícil em termos de estrutura. Viajei quase mil quilômetros com o Walter e a diretora de arte, Carla Caffé, procurando locações”, conta Tolomelli.
Wellington Pinto, que trabalhou na coordenação de produção do filme, conta que o processo de filmagem foi repleto de desafios, inclusive a captação de imagens em locações movimentadas, como a própria estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro.
“Filmar em um local tão caótico exigiu um planejamento meticuloso. Tínhamos que trabalhar com horários estratégicos e manter a segurança da equipe e dos atores”, relembra o produtor.
A cena inicial do filme, na movimentada estação de trem, também demandou um esforço coletivo, lembra Tolomelli.
“Sentamos eu e o Walter lá na Central várias vezes, em horários diferentes, para entender como funcionava. Não podíamos filmar no dia a dia, porque uma hora o trem vinha cheio, outra vazio. Então, organizamos toda a movimentação. Aquela multidão na cena? Tudo figurantes nossos, 450 pessoas”, explica a produtora.
Vinicius de Oliveira lembra que ficava impressionado com a estrutura do set de filmagem. “Toda aquela movimentação me fascinava. Eu gostava de observar o andamento das pessoas, ver o que estava acontecendo”, conta.
Ele revela que, ao contrário de muitos atores, não ficava no camarim estudando o texto ou concentrado para as cenas. “Na verdade, eu nem tinha roteiro. Me davam as falas na hora, e eu falava”, explica.
Sua primeira experiência com a atuação, com a veterana Fernanda Montenegro, acabou acontecendo naturalmente.
“Às vezes, eu não conseguia entregar o que precisava, e o Walter tinha que improvisar para me ajudar”, admite.
Uma das cenas mais marcantes para ele foi logo no início do filme, quando seu personagem volta à Central do Brasil após a morte da mãe para pedir que Dora escreva uma carta para o pai. “A gente sentou para fazer essa cena perto da hora do almoço, mas eu não conseguia me emocionar. Não estava saindo”, lembra.
Percebendo a dificuldade, Walter Salles interviu. “Ele olhou para mim e perguntou: ‘Você tá com fome, cara?’. E eu falei: ‘Tô'”, conta Vinicius. A solução foi simples: o diretor decidiu interromper as gravações para o almoço. “O problema era esse. Eu tava morrendo de fome e nem percebia que era isso que estava me atrapalhando”, diz, rindo.
“O Walter tem um rigor impressionante, uma cobrança muito grande consigo mesmo. Ele só sai para filmar quando sente que tudo está pronto”, analisa. “Foram aprendizados que levo até hoje para o meu trabalho.”
Repercussão e sucesso internacional
Antes de estrear no Brasil no dia 3 de abril de 1998, o filme foi exibido em festivais da Europa e Estados Unidos, colecionando elogios que serviram de porta de entrada para as premiações mundiais.
Após sua estreia no Festival de Sundance, em janeiro de 1998, Central do Brasil começou a ganhar reconhecimento internacional.
O grande momento veio no Festival de Berlim, onde o filme recebeu o Urso de Ouro de Melhor Filme e Fernanda Montenegro foi consagrada com o Urso de Prata de Melhor Atriz. A partir daí, a corrida ao Oscar começou a se desenhar.
“Quando o filme foi exibido em Sundance, teve 10 minutos de aplausos. E depois veio Berlim, onde a Fernanda ganhou o Urso de Prata. Foi uma avalanche. Mas, naquela época, não havia internet, redes sociais, campanhas massivas. O filme foi crescendo no boca a boca”, relembra Tolomelli.
Já chamado de hit de Sundance e do Festival de Berlim, o filme chamou a atenção de críticos em todo o mundo.
Em fevereiro de 1998, Todd McCarthy escreveu na Variety que o filme, “um sensível filme de arte à moda antiga”, tinha potencial para “atrair um público seleto e exigente internacionalmente”.
Para ele, a obra transmite uma mensagem “cautelosamente otimista” sobre as possibilidades para o futuro do Brasil, sugerindo que as profundas cicatrizes deixadas pelos problemas sociais do passado recente poderiam ser superadas por uma união criativa entre o Brasil antigo e o novo.
Ele fez críticas ao “estilo rigoroso” de Salles, que, na sua visão, “não permite que nenhuma espontaneidade se infiltre em seus quadros primorosamente compostos e em suas cenas dramaticamente concentradas”, mas rasgou elogios à performance de Fernanda Montenegro.
“Uma das principais atrizes do teatro e do cinema brasileiro há décadas, carrega o filme de forma extraordinária, retratando uma força bruta que aos poucos se desgasta até um estado de vulnerabilidade exposta.”
Janet Maslin, crítica do The New York Times, também elogiou a atuação de Montegro, a que ela chamou de “brilhante”. “Sua atuação aqui é incrivelmente bem dosada, à medida que Dora começa a se redescobrir de maneiras que jamais imaginaria.”
A jornalista americana diz que o verdadeiro encanto do filme de Salles está na forma como a história é contada.
“A experiência de Salles como documentarista também confere ao filme uma forte conexão com a paisagem rural empobrecida do Brasil, à medida que os protagonistas embarcam na estrada”, escreveu em novembro de 1998.
“É a elegante contenção do cineasta que faz com que esses sentimentos sejam tão profundamente sentidos. Salles dirige de forma simples e atenta, com um olhar que parece penetrar todos os personagens que Dora e Josué encontram pelo caminho.”
Rita Kempley, do The Washington Post, chamou Central do Brasil de “um road movie brasileiro profundamente comovente”,
Já a atuação de Fernanda Montenegro foi chamada de “imensamente expressiva” e “ternamente emocionante”. “Ela pode ter passado 50 anos nos palcos, mas é uma atriz que encara a câmera com nuances e sutileza.”
No Brasil, a produção conquistou público semana a semana. Quando foi lançado, metade dessas salas estava com Titanic em cartaz. Na semana seguinte, mais 250 começaram a exibir O Homem da Máscara de Ferro. Ou seja, 80% das salas brasileiras estavam ocupadas por dois filmes americanos.
Mas em seu primeiro fim de semana em cartaz, o filme Central do Brasil foi visto por cerca de 67 mil espectadores em todo o país. Ao entrar na 11ª semana de exibição, alcançou 1 milhão de ingressos vendidos.
Na entrevista à Folha em 1998, Salles disse que não esperava o sucesso de bilheteria do filme, que bateu 1 milhão de espectadores em dois meses.
“Antes de Central do Brasil ser filmado, cansei de ouvir que o público brasileiro não queria ver sua própria imagem no cinema, como se aquela refletida pela televisão fosse suficiente, representativa ou plural. Bem, foi exatamente o oposto que acabou acontecendo.”
Injustiça no Oscar?

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O Brasil já havia sido indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro algumas vezes, mas Central do Brasil foi a primeira produção nacional que teve uma campanha efetiva para a premiação. No entanto, o favoritismo de A Vida é Bela, de Roberto Benigni, acabou frustrando as chances brasileiras.
A presença de Fernanda Montenegro como candidata ao prêmio de Melhor Atriz trouxe ainda mais visibilidade ao longa. Mas ela perdeu a estatueta para a americana Gwyneth Paltrow, de Shakespeare Apaixonado.
“Tinha uma torcida pra Fernanda tremenda ali. Até hoje não vejo um filme com Gwyneth Paltrow. Ela passa assim na minha timeline, eu passo. São mais de 25 anos e eu nunca perdoei ela”, brinca Tolomelli, produtora executiva de Central do Brasil.
“Para chegar ao Oscar, não basta o filme ser bom. Existe toda uma campanha, uma estratégia para atingir os membros da Academia. Hoje, o Walter tem mais experiência nisso. Ainda Estou Aqui tem muito mais chances do que Central teve na época”, avalia, referindo-se ao novo longa de Salles, protagonizado por Fernanda Torres, filha de Montenegro.
Mais de duas décadas depois, ela avalia que Central do Brasil ainda é um marco. O filme, diz a produtora, ajudou a abrir portas para o cinema brasileiro no exterior e pavimentou o caminho para sucessos posteriores, como Cidade de Deus (2002).
“Depois dele, tivemos um período muito bom. Produzi Cidade de Deus, que também foi indicado ao Oscar. São filmes que marcaram a história do cinema brasileiro e ainda repercutem”, conta Tolomelli.
Para Vinícius de Oliveira, a experiência foi transformadora. Para ele e para o cinema.
“Esse filme mudou minha vida. Foi um aprendizado, uma experiência incrível. E mais do que isso, mostrou para o mundo o Brasil de verdade, com suas dificuldades, mas também com a beleza das relações humanas.”
Para ele, a produção representa a consolidação da retomada do cinema nacional. O país já vinha em um processo de reconstrução da indústria cinematográfica, e filmes anteriores haviam pavimentado esse caminho. Um ano antes, O Que É Isso, Companheiro?, estrelado por Fernanda Torres, já havia sido indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
“Com a chegada de Central do Brasil, esse movimento se concretizou. A partir dali, o cinema nacional ganhou ainda mais força, se consolidando como um aparato cultural fundamental para o país”, diz.