“A questão não é se o Brasil vai ser vítima de tarifas, mas quando.”
“É muito provável que mais adiante o Brasil seja alvo das tarifas americanas”, diz o economista Otaviano Canuto, ex-vice-presidente do Banco Mundial e pesquisador do Policy Center for the New South.
“Não na próxima semana, quando provavelmente será a vez da Europa, mas mais adiante muito provavelmente.”
A alíquota de 10% sobre mercadorias chinesas entrou em vigor nesta terça-feira (4/2). Já a taxação de 25% contra produtos mexicanos e canadenses foi suspensa por um mês após negociações entre os governos.
Ao anunciar as tarifas, Donald Trump apontou para a “grande ameaça” representada por imigrantes ilegais e drogas ilícitas que, segundo ele, entram nos Estados Unidos pela fronteira com México e Canadá ou são importadas da China.
Os governos mexicana e canadense negaram as acusações do republicano, mas posteriormente se comprometeram a intensificar o combate à entrada de drogas ilegais nos EUA.
Mas analistas de todo o mundo acreditam que o presidente americano não deve parar sua sequência de aplicação de tarifas por aí. Trump já prometeu no passado impor tarifas à União Europeia (UE) e afirmou neste domingo (2/2) que seus planos seguem de pé.
E apesar de Washington ainda não ter feito qualquer anúncio concreto sobre novas tarifas contra o Brasil, Trump tem usado o governo brasileiro como exemplo de ‘grande taxador’ em seus discursos.
O republicano ainda incluiu a nação em um grupo dos que “querem mal” aos EUA, durante um discurso no final de janeiro.
“Coloque tarifas em países e pessoas estrangeiras que realmente nos querem mal”, disse Trump. “A China é um grande criador de tarifas. Índia, Brasil, tantos, tantos países. Então, não vamos deixar isso acontecer mais, porque vamos colocar a América em primeiro lugar, sempre colocar a América em primeiro lugar”, afirmou em um evento para correligionários na Flórida.
Por isso mesmo, diz Vinícius Vieira, professor de Economia e Relações Internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), “a questão não é se o Brasil vai ser vítima de tarifas, mas quando essas tarifas vão chegar”.
Fora das prioridades
Mas então por que o país foi poupado até agora?
A avaliação é que o Brasil não está no topo da lista na ordem de prioridades dos EUA.
Os economistas ouvidos pela reportagem apontam que o Brasil não tem acordo de livre comércio com os Estados Unidos e tem déficit na balança comercial com o país — ou seja, compra mais produtos dos americanos do que vende para eles.
Trump afirmou diversas vezes que enxerga o protecionismo como um mecanismo de correção para o que entende como uma injustiça na forma como o comércio global funciona, associando o déficit que os EUA têm na balança comercial, que chega a US$ 1 trilhão, com uma situação em que os países estariam se aproveitando dos americanos.
E apesar de ter mencionado a porosidade das fronteiras de México e Canadá para o fentanil como justificativa para o pacote inicial de tarifas, o republicano reiteradamente expressou incômodo com o fato de que os Estados Unidos compram mais desses países do que exportam para eles durante a campanha eleitoral.
O déficit comercial americano com Canadá e México vem de fato em uma crescente nos últimos anos, tendo chegado a US$ 76 bilhões (R$ 441 bilhões) em 2023, no caso do Canadá, e US$ 156 bilhões (R$ 905 bilhões), no caso do México.
Em 2024, a China obteve um recorde de quase US$ 1 trilhão em superávit comercial – termo usado quando um país exporta mais bens e serviços do que importa, resultando em um saldo positivo em sua balança comercial. Só com os Estados Unidos, o superávit chegou a algo em torno de US$ 270 bilhões (R$ 1,6 trilhões), segundo o Censo americano.
“Na visão do Trump e de outras pessoas no entorno dele o saldo comercial positivo desses países com os Estados Unidos é um presente americano”, diz Otaviano Canuto.
No caso do Brasil, observa o economista, esse raciocínio não se aplica, já que os Estados Unidos tiveram um superávit de US$ 253 milhões (R$ 1,3 bilhão) no comércio com o país em 2024.
O Brasil exportou US$ 40,330 bilhões e importou US$ 40,583 bilhões no ano passado, o que torna os EUA o segundo maior parceiro comercial do Brasil, o segundo maior destino das mercadorias brasileiras e a terceira maior fonte de importações.
“O déficit brasileiro com os Estados Unidos caiu muito ao longo dos últimos anos, com o Brasil comprando menos petróleo e exportando mais”, diz o ex-vice-presidente do Banco Mundial. “Mas é evidente que, pelo critério de redução de déficit comercial, o Brasil não seria tão prioritário como Canadá, México e China.”
A visão é compartilhada pela secretária de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic), Tatiana Prazeres.
“O Brasil, na contabilidade do próprio governo americano, somando-se bens e serviços, responde pelo sexto superávit comercial dos Estados Unidos. A questão do superávit ou déficit comercial é algo que parece chamar a atenção do próximo governo dos Estados Unidos e, nesse quesito, o fato de que os americanos acumulam superávit com o Brasil deveria ser levado em conta”, disse em entrevista à Agência Brasil.
Vinícius Vieira, professor de Economia e Relações Internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), também acredita que o Brasil simplesmente não está no topo das prioridades do novo governo americano.
“O Brasil não mobiliza tanto a base trumpista quanto a China ou o México”, diz. “Na verdade, com poucas exceções, o Brasil nunca foi uma prioridade para qualquer governo americano, inclusive dentro da América Latina”, diz.
Mas isso não significa que a nossa vez não chegará.
Tarifas em troca de concessões
“Não há chance de que o BRICS substitua o dólar dos EUA no comércio internacional, ou em qualquer outro lugar, e qualquer país que tentar deve dizer olá para as tarifas e adeus para a América”, declarou o presidente republicano no final de janeiro.
Não existe plano de curto prazo para adoção de uma moeda única entre os membros, apesar dos países do bloco terem criado instrumentos para fazer transações comerciais em moeda chinesa e o banco dos BRICS ter concedido empréstimos em moedas alternativas ao dólar.
Por isso mesmo, a professora da Faculdade de Economia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Daiane Santos acredita que o Brasil não seria alvo nesse primeiro momento. “A questão da moeda única dos BRICS é algo que se estuda há muito tempo e acho que seja pouco provável que aconteça [no curto prazo]”, afirma.
Livio Ribeiro, pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre-FGV) e sócio da BRCG Consultoria, pondera, por outro lado, que o fato de Trump já ter mostrado que as tarifas também podem ser usadas como instrumento geopolítico, para fazer pressão política, e não puramente econômico, eleva o nível de incerteza.
Justamente pelo fato de o Brasil ser menos expressivo do ponto de vista econômico, ele conjectura, poderia haver um cenário em que poderia ser usado como “exemplo” para outros países, considerados mais relevantes pelos EUA.
Desde que venceu as eleições americanas em novembro de 2024, Trump e seu time de assessores vêm se alternando entre duas estratégias envolvendo tarifas.
A primeira delas é de natureza mais prática e leva em consideração apenas a necessidade de compensar o déficit na balança comercial e encolher a dívida pública de US$ 36 trilhões que os Estados Unidos mantém atualmente.
A outra é o uso das tarifas como manobra de negociação para temas importantes para o governo.
“Ou seja, pôr tarifa para forçar o outro lado a conceder alguma coisa”, explica Otaviano Canuto. Para o economista, a suspensão das taxas contra México e Canadá por um mês em troca da promessa do reforço da fronteira se encaixa no segundo método.
O episódio envolvendo a Colômbia e a deportação de imigrantes ilegais nos EUA com o uso de aviões militares é outro exemplo do mesmo processo.
Trump anunciou sanções contra a Colômbia após o presidente do país, Gustavo Petro, questionar a nova política de imigração americana e se recusar a autorizar o pouso de dois aviões transportando cidadãos colombianos deportados.
Como resposta, Trump disse que iria impor imediatamente uma tarifa de 25% sobre todas as importações colombianas e aumentá-la para 50% em uma semana. Washington também ameaçou impor sanções bancárias e financeiras, além de aplicar uma proibição de viagens e revogar vistos de funcionários do governo colombiano.
Horas depois do impasse, porém, Colômbia e Estados Unidos anunciaram que Bogotá aceitaria todos os voos com imigrantes deportados — e que os Estados Unidos não adotariam as sanções.
Mas e no caso do Brasil, qual seria a contrapartida exigida pelos EUA em uma imposição estratégica de sanções?
“Não me parece que exista uma agenda paralela que Trump poderia estabelecer como objetivo em contrapartida de tarifas, com exceção da busca de uma moeda alternativa ao dólar”, diz Canuto, que também ex-diretor executivo do Fundo Monetário Internacional (FMI).
“Mas exigir que o Brasil abandone os programas de troca de divisas de dólares pelo uso de moedas locais no acordo com a China não é factível”, complementa.
Se Donald Trump decidir por taxar os produtos brasileiros no país, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já disse que manterá uma relação de “reciprocidade” e taxará as importações americanas.
“É muito simples, se ele taxar os produtos brasileiros, haverá reciprocidade do Brasil em taxar os produtos que são exportados para os Estados Unidos. Simples”, disse Lula.
Aço e alumínio
Os economistas ouvidos pela BBC Brasil afirmam, porém, que o ‘tarifaço’ americano poderia chegar ao Brasil como contrapartida pelas taxas aplicadas pelo próprio governo brasileiro para produtos importados.
Nesse caso, diz Vinícius Viera, da FAAP, o país pode ser alvo de algum tipo de pacote de tarifas destinado às economias emergentes ou que mire indústrias específicas – mais especificamente setores como aço e alumínio.
O especialista em Relações Internacionais relembra o primeiro mandato de Trump, quando o governo do republicano aplicou uma tarifa adicional de 25% sobre as importações de aço e de 10% sobre as de alumínio em 2018. Pouco depois, Washington suspendeu temporariamente as tarifas para alguns países específicos e, passados mais alguns meses, negociou um esquema de cotas para as exportações brasileiras desses produtos.
Ainda na primeira passagem de Trump pela Casa Branca, o republicano acusou Brasil e Argentina de desvalorizarem “maciçamente” suas moedas e ameaçou reinstalar as tarifas de importação sobre o aço e o alumínio de ambos os países, apenas para voltar atrás menos de 20 dias depois.
Além disso, a principal região produtora de aço nos Estados Unidos é o chamado Cinturão do Aço (Rust Belt), um dos redutos de votos de Donald Trump.
Vieira lembra ainda que o atual vice-presidente americano, J. D. Vance, passou sua infância e tem uma base de apoio forte nos Apalaches, uma região que se estende do sudeste do Canadá até o sul dos Estados Unidos e onde parte do Cinturão está localizado.
Por tudo isso, o setor de aço e alumínio brasileiro é o candidato número um a receber tarifas, dizem os especialistas.
“O fato é que o lobby pró-protecionismo contra o aço brasileiro continua firme e forte aqui em Washington, operando inclusive durante o período Biden”, afirma Otaviano Canuto, que atua no Policy Center for the New South e vive na capital americana.
Os produtos semiacabados de ferro e aço são os segundo mais vendidos pelo Brasil para os Estados Unidos, atrás apenas do petróleo bruto, e representaram 14% das exportações brasileiras para os EUA em 2024.
Ao mesmo tempo, o Brasil é um dos principais países de origem do ferro e aço importados pelos americanos, ao lado de Canadá, México, Coreia do Sul e outros.
Outro importante produto brasileiro para os EUA são as aeronaves, que representaram 6,7% das exportações do Brasil para território americano em 2024, com destaque para a Embraer.
Segundo Otaviano Canuto, a aplicação de tarifas gerais contra as importações brasileiras teria impacto especial no setor da aviação dos EUA justamente por conta da importância desses bens comprados do Brasil.
“Não existem alternativas óbvias, nem domésticas, nem fora dos Estados Unidos, para os aviões brasileiros de porte médio usados para voos regionais”, diz. “Por isso acho muito provável que se houver uma tarifa, esse setor seja poupado ou atingido por taxas menos agravantes.”
*Com reportagem de Camilla Veras Mota, da BBC News Brasil em São Paulo