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segunda-feira, fevereiro 3, 2025

O ex-cirurgião acusado de abusar de 299 crianças anestesiadas e que agora enfrenta julgamento na França – BBC News Brasil

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Crédito, AFP

Legenda da foto, Ilustração do tribunal mostra Joel Le Scouarnec em seu primeiro julgamento em 2020

  • Author, Laura Gozzi
  • Role, BBC News

Um ex-cirurgião acusado de abusar de centenas de pacientes jovens, muitas vezes enquanto estavam sob anestesia, deve ser julgado neste mês no maior julgamento de abuso infantil da história da França.

Joel Le Scouarnec, de 73 anos, é acusado de agredir ou estuprar 299 crianças — a maioria delas, ex-pacientes — entre 1989 e 2014, principalmente na Bretanha.

Ele admitiu algumas acusações, mas não todas.

O julgamento em Vannes, no noroeste de França, acontece na sequência de uma meticulosa investigação policial que durou vários anos.

É provável que o caso levante questões incômodas sobre se Le Scouarnec foi protegido pelos colegas e pela administração dos hospitais que o empregavam, apesar de um alerta do FBI, a polícia federal americana, às autoridades francesas de que ele havia consultado sites de abuso infantil, o que resultou apenas em uma pena suspensa.

Uma série impressionante de oportunidades para impedir que o ex-cirurgião tivesse contato com crianças parece ter sido desperdiçada ou rejeitada.

Alega-se que membros da sua própria família também sabiam da pedofilia de Le Scouarnec, mas não conseguiram impedi-lo.

“Foi a omertà (código de silêncio da máfia italiana para demonstrar lealdade) da família que permitiu que o abuso continuasse por décadas”, disse à BBC um advogado envolvido no caso.

Le Scouarnec, que já foi um respeitado cirurgião de uma pequena cidade, está preso desde 2017, quando foi detido sob suspeita de estuprar suas sobrinhas, agora na casa dos 30 anos, assim como uma menina de seis anos e um jovem paciente. Em 2020, ele foi condenado a 15 anos de prisão.

Após efetuar a prisão, a polícia revistou a casa dele e encontrou bonecas sexuais do tamanho de crianças, mais de 300 mil imagens de abuso infantil e milhares de páginas de diários meticulosamente compilados, nos quais Le Scouarnec teria registrado as agressões que cometeu contra seus pacientes ao longo de 25 anos.

Ele negou ter agredido ou estuprado crianças, argumentando que seus diários apenas detalhavam suas “fantasias”.

Em várias ocasiões, porém, ele também escreveu: “Sou um pedófilo”.

Le Scouarnec enfrenta mais de 100 acusações de estupro e mais de 150 acusações de agressão sexual.

A juíza Isabelle Fachaux, de máscara, durante o julgamento do cirurgião francês aposentado Joel Le Scouarnec em 2020, ao lado de um oficial de justiça.

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, O primeiro julgamento de Le Scouarnec, em 2020, aconteceu durante a pandemia de covid-19

Alguns de seus ex-pacientes, que agora são adultos, disseram que se lembravam do cirurgião tocá-los sob o pretexto de exames médicos, às vezes até mesmo quando seus pais ou outros médicos estavam na sala.

Mas como um grande número de suas supostas vítimas estava sob o efeito de anestésicos quando se alega que as agressões ocorreram, elas não se lembravam dos acontecimentos, e ficaram chocadas ao serem contatadas pela polícia e informadas de que seus nomes — junto a descrições explícitas dos abusos — supostamente constavam nos diários de Le Scouarnec.

Le Scouarnec se sentia “todo-poderoso” e gostava da sensação de “flertar com o perigo” por meio de “transgressões calculadas”, declarou o jornal francês Le Monde, citando a ordem judicial contra o ex-cirurgião.

Algumas das supostas vítimas disseram que as revelações perturbadoras as ajudaram a entender sintomas inexplicáveis de trauma que as haviam oprimido durante toda a vida.

A advogada Francesca Satta, que representa várias supostas vítimas, disse à BBC que entre os seus clientes estão “as famílias de dois homens que se lembravam, e que acabaram tirando a própria vida”.

Olivia Mons, da associação France Victimes, conversou com várias das supostas vítimas e afirmou que muitas só tinham lembranças vagas de acontecimentos que nunca conseguiram “encontrar palavras para explicar”.

Quando o caso do cirurgião veio à tona, “proporcionou a elas o início de uma explicação”, explicou Mons.

Mas, segundo ela, a maioria das supostas vítimas eram pessoas que não se lembravam de terem sido estupradas ou agredidas, e que levavam uma vida normal até serem contatadas pela polícia. “Hoje, muitas destas pessoas estão compreensivelmente muito abaladas”, acrescentou Mons.

Uma mulher disse à imprensa francesa que, quando a polícia mostrou a ela um registro com seu nome no diário de Le Scouarnec, as lembranças vieram à tona instantaneamente.

“Tive flashbacks de alguém entrando no meu quarto do hospital, levantando os lençóis, e dizendo que iria verificar se tudo havia corrido bem”, ela relatou.

Francesca Satta

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Francesca Satta, advogada de algumas das supostas vítimas de Le Scouarnec, disse que ele havia desfrutado da ‘impunidade do silêncio’ por muito tempo

Margaux Castex, advogada de uma das supostas vítimas, disse à BBC que seu cliente está “traumatizado com o fato de ter confiado em um profissional da área médica, e isso tem sido difícil de ser superado”.

“Ele gostaria de nunca ter sido informado do que aconteceu”, afirmou Castex.

Outra mulher chamada Marie, agora na casa dos 30 anos, contou que a polícia foi até sua casa, e revelou que seu nome constava nos diários de um cirurgião que foi acusado de abuso infantil.

“Eles leram o que ele havia escrito sobre mim, e eu queria ler de novo, por conta própria, mas era impossível”, disse ela à rede France Bleu. “Você consegue imaginar ler pornografia pesada e saber que se trata de você, quando era criança?”

Marie contou que consultou especialistas em saúde mental durante anos por causa de “problemas” que tinha em relação aos homens — e que os médicos se perguntavam se ela havia sofrido um trauma na infância.

“Tenho que acreditar que minha memória me protegeu disso. Mas o exame [policial] trouxe tudo à tona novamente — imagens, sensações e memórias voltaram para mim dia após dia”, ela disse. “Hoje, eu sinto isso como se tivesse acabado de acontecer.”

Marie acrescentou que, quando mostraram a ela uma foto de Le Scouarnec, “tudo voltou à minha mente…. Lembrei do seu olhar gélido”.

Ela se perguntou como o cirurgião havia conseguido cometer seus supostos crimes sem ser notado por tanto tempo.

É uma questão assustadora que certamente será explorada exaustivamente durante o julgamento.

‘Erros institucionais e judiciais’

No primeiro processo judicial, houve alegações de que vários membros da família de Le Scouarnec estavam cientes, desde meados da década de 1980, de seu comportamento perturbador em relação a crianças, mas não intervieram.

A ex-mulher dele negou saber o que o marido — e pai de seus três filhos —supostamente fez até ele ser preso.

Le Scouarnec — um profissional de saúde apaixonado por ópera e literatura — foi por muito tempo o orgulho da sua família de classe média. Ele foi um respeitado médico de uma pequena cidade por muitos anos, o que pode ter proporcionado a ele um grau significativo de proteção no ambiente de trabalho.

“Um enorme grau de disfunção permitiu que Le Scouarnec cometesse seus atos”, disse o advogado Frederic Benoist à BBC.

Benoist representa o grupo de defesa de proteção à criança La Voix de L’Enfant, que está pressionando para destacar o que chama de “erros institucionais e judiciais cruciais” que permitiram que Le Scouarnec supostamente continuasse abusando de crianças por décadas.

Arquivos do processo do primeiro julgamento de Le Scouarnec em 2020

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Arquivos do processo do primeiro julgamento de Le Scouarnec em 2020

No início dos anos 2000, um alerta do FBI às autoridades francesas de que Le Scouarnec estava acessando sites de abuso infantil resultou apenas em uma pena suspensa de quatro meses, sem obrigação de seguir tratamento médico ou psicológico.

Benoist disse que os promotores nunca compartilharam essas informações com as autoridades médicas, e que não houve consequências para Le Scouarnec, que continuou exercendo sua função de cirurgião, muitas vezes operando crianças e realizando acompanhamento pós-operatório.

Quando um colega — que já nutria suspeitas contra Le Scouarnec — leu sobre as acusações contra ele na imprensa local em 2006, pediu que a associação regional de medicina tomasse providências.

Com exceção de um médico — que se absteve —, todos votaram que Le Scouarnec não havia violado o código de ética médica, que afirma que os médicos “devem, em todas as circunstâncias, ser confiáveis e agir com integridade e devoção ao dever”. Nenhuma sanção foi imposta.

“Temos, portanto, provas de que todos estes colegas sabiam, e nenhum deles fez nada”, afirmou Benoist. “Houve muitas circunstâncias que significavam que ele poderia ter sido detido; ele não foi, e as consequências são trágicas.”

A BBC entrou em contato com a associação regional de medicina e com os promotores para comentar o assunto.

Le Scouarnec acabou sendo preso quando a vítima de seis anos contou aos pais que ele a havia agredido. Naquela época, ele estava vivendo recluso em uma grande casa abandonada, cercado por bonecas do tamanho de crianças.

Momento de acerto de contas

Driguez, a advogada das sobrinhas dele, se sentou em frente a Le Scouarnec durante o julgamento de 2020 na cidade de Saintes, no sudoeste do país. “As respostas dele foram frias e calculadas”, ela disse. “Ele é extremamente inteligente, mas não demonstrou nenhum tipo de empatia.”

O julgamento revelou mais alegações de abuso infantil dentro da família de Le Scouarnec, segundo Driguez, mas o ex-cirurgião nunca teve nenhuma reação em particular e, na maioria das vezes, olhava para o chão.

Em determinado momento, foram apresentados ao tribunal vídeos chocantes de Le Scouarnec e suas bonecas. “Todo mundo estava olhando para a tela, mas eu estava olhando para ele”, contou Driguez. “Até aquele momento, ele sempre manteve o olhar baixo. Mas, naquele momento, ele olhou para cima, olhando atentamente para o vídeo. Os olhos dele estavam brilhando.”

Enquanto a cidade de Vannes se prepara para sediar o julgamento, três salas de aula em um antigo prédio universitário nas proximidades foram disponibilizadas para acomodar as centenas de supostas vítimas, seus representantes legais e familiares. O julgamento começa em 24 de fevereiro, e deve durar até junho.

A permissão para a entrada da imprensa e do público vai depender de todas as supostas vítimas abrirem mão de seu direito a um julgamento fechado.

Muitos advogados acreditam que o julgamento poderia ser um momento de acerto de contas com as autoridades que não tomaram providências contra Le Scouarnec, assim como um momento importante para as vítimas expressarem seu trauma.

Satta destacou que, embora muitas pessoas envolvidas neste caso não se lembrem do que aconteceu com elas, elas ainda são vítimas, acrescentando que o ex-cirurgião desfrutou da “impunidade do silêncio” por muito tempo.

“O julgamento vai ser um momento para as vítimas se manifestarem”, concordou Benoist. “Seria terrível, a meu ver, se ele fosse realizado a portas fechadas.”

[Fonte Original]

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