Crédito, Getty Images
- Author, Luis Barrucho
- Role, BBC World Service
Por quase 160 anos, a 14ª Emenda da Constituição dos Estados Unidos garante a cidadania automática a qualquer pessoa nascida no país.
A ordem do presidente Trump buscava mudar a forma como ela é interpretada, e negar a cidadania aos filhos de imigrantes que estão no país ilegalmente ou com vistos temporários.
Mas um juiz federal dos EUA bloqueou nesta quinta-feira (06/02) a tentativa do republicano de encerrar este direito para crianças cujos pais estejam no país sem documentos ou temporariamente.
Em uma segunda decisão, o magistrado John Coughenour, de Seattle, suspendeu indefinidamente o decreto assinado pelo presidente.
Em 20 de janeiro, ele já havia suspendido temporariamente a aplicação da ordem, que deveria começar 30 dias após a assinatura.
O juiz afirmou que a decisão de Trump é inconstitucional e que o republicano tenta driblar a lei.
“Tornou-se cada vez mais claro que, para o nosso presidente, o Estado de Direito não passa de um obstáculo para seus objetivos. Para ele, o Estado de Direito é algo a ser contornado ou simplesmente ignorado”, disse.
A política se aplicaria somente a crianças nascidas a partir de 19 de fevereiro de 2025 — e não afeta as nascidas antes desta data.
Mas como isso se compara às leis para cidadania ao redor do mundo?
Direito à cidadania por nascimento
O direito à cidadania por nascimento, ou jus soli (direito por solo), não é a norma a nível global.
Os Estados Unidos são um dos cerca de 30 países — a maioria na América — que concedem cidadania automática a qualquer pessoa nascida dentro de suas fronteiras.
Em contrapartida, muitos países da Ásia, Europa e partes da África adotam o princípio de jus sanguinis (direito por sangue), em que as crianças herdam a nacionalidade dos pais, independentemente do local de nascimento.
Outros países têm uma combinação dos dois princípios, concedendo também a cidadania aos filhos de residentes permanentes.
![Mapa mostrando que a maioria dos países da América concede a cidadania por nascimento em solo nacional; grande parte da Ásia, da Europa Central e Oriental e do nordeste da África concede por descendência; grande parte do sul e oeste da África, muitos países da Europa Ocidental e a Austrália têm políticas mistas](https://ichef.bbci.co.uk/ace/ws/240/cpsprodpb/c985/live/12bdfe00-e4a6-11ef-a819-277e390a7a08.png.webp 240w, https://ichef.bbci.co.uk/ace/ws/320/cpsprodpb/c985/live/12bdfe00-e4a6-11ef-a819-277e390a7a08.png.webp 320w, https://ichef.bbci.co.uk/ace/ws/480/cpsprodpb/c985/live/12bdfe00-e4a6-11ef-a819-277e390a7a08.png.webp 480w, https://ichef.bbci.co.uk/ace/ws/624/cpsprodpb/c985/live/12bdfe00-e4a6-11ef-a819-277e390a7a08.png.webp 624w, https://ichef.bbci.co.uk/ace/ws/800/cpsprodpb/c985/live/12bdfe00-e4a6-11ef-a819-277e390a7a08.png.webp 800w)
John Skrentny, professor de sociologia da Universidade da Califórnia, em San Diego, acredita que, embora o direito à cidadania por nascimento ou jus soli seja comum em todo o continente americano, “cada estado-nação trilhou seu próprio caminho para isso”.
“Por exemplo, alguns envolveram escravizados e ex-escravizados, outros não. A história é complicada”, diz ele. Nos EUA, a 14ª Emenda foi adotada para resolver o status legal dos escravizados libertos.
No entanto, Skrentny argumenta que o que quase todos tinham em comum era “construir um estado-nação a partir de uma ex-colônia”.
“Eles tiveram que ser estratégicos em relação a quem incluir e a quem excluir, e como tornar o estado-nação governável”, explica. “Para muitos, o direito à cidadania por nascimento, baseado no fato de ter nascido no território, contribuiu para seus objetivos de construção do Estado.”
“Para alguns, isso incentivou a migração da Europa; para outros, garantiu que as populações indígenas e os ex-escravizados, assim como seus filhos, fossem incluídos como membros plenos, e não ficassem apátridas. Foi uma estratégia específica para uma época específica, e essa época pode ter passado.”
Mudanças nas políticas e aumento das restrições
Nos últimos anos, vários países reformularam suas leis de cidadania, restringindo ou revogando o direito à cidadania por nascimento devido a preocupações com a imigração, a identidade nacional e o chamado “turismo de nascimento“, em que as pessoas visitam um país para dar à luz.
A Índia, por exemplo, já concedeu cidadania automática a qualquer pessoa nascida em seu território. Mas, com o tempo, as preocupações com a imigração ilegal, principalmente de Bangladesh, levaram a restrições.
Desde dezembro de 2004, uma criança nascida na Índia só é cidadã se ambos os pais forem indianos, ou se um dos pais for cidadão, e o outro não for considerado um imigrante ilegal.
Muitas nações africanas, que historicamente seguiram o jus soli sob os sistemas jurídicos da era colonial, abandonaram a política depois de conquistar a independência. Atualmente, a maioria exige que pelo menos um dos pais seja cidadão ou residente permanente.
A cidadania é ainda mais restritiva na maioria dos países asiáticos, onde é determinada principalmente pela descendência, como observado em nações como China, Malásia e Singapura.
A Europa também passou por mudanças significativas. A Irlanda foi o último país da região a permitir o jus soli irrestrito. Ela aboliu a política após uma votação em junho de 2024, quando 79% dos eleitores aprovaram uma emenda constitucional que exigia que pelo menos um dos pais fosse cidadão, residente permanente ou residente temporário legal.
O governo disse que a mudança era necessária porque mulheres estrangeiras estavam viajando para a Irlanda para dar à luz, a fim de obter um passaporte da União Europeia para os filhos.
![Protesto contra uma decisão do tribunal constitucional da República Dominicana que redefiniu a cidadania para excluir os filhos de migrantes indocumentados, na sua maioria de ascendência haitiana](https://ichef.bbci.co.uk/ace/ws/240/cpsprodpb/5a66/live/54156970-df28-11ef-bc33-634e87000473.png.webp 240w, https://ichef.bbci.co.uk/ace/ws/320/cpsprodpb/5a66/live/54156970-df28-11ef-bc33-634e87000473.png.webp 320w, https://ichef.bbci.co.uk/ace/ws/480/cpsprodpb/5a66/live/54156970-df28-11ef-bc33-634e87000473.png.webp 480w, https://ichef.bbci.co.uk/ace/ws/562/cpsprodpb/5a66/live/54156970-df28-11ef-bc33-634e87000473.png.webp 562w)
Crédito, Reuters
Uma das mudanças mais graves ocorreu na República Dominicana, onde, em 2010, uma emenda constitucional redefiniu a cidadania para excluir os filhos de migrantes indocumentados.
Uma decisão da Suprema Corte de 2013 tornou a medida retroativa a 1929, tirando a nacionalidade dominicana de dezenas de milhares de pessoas, em sua maioria de ascendência haitiana. Grupos de direitos humanos alertaram que isso poderia deixar muitos apátridas, uma vez que eles também não tinham documentos haitianos.
A medida foi amplamente condenada por organizações humanitárias internacionais e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Como resultado do clamor público, a República Dominicana aprovou uma lei em 2014 que estabeleceu um sistema para conceder cidadania aos filhos de imigrantes nascidos na República Dominicana, favorecendo particularmente os descendentes de haitianos.
Skrentny vê as mudanças como parte de uma tendência global mais ampla.
“Estamos em uma era de migração em massa e facilidade de transporte, inclusive pelos oceanos. Agora, as pessoas também podem ser estratégicas em relação à cidadania. É por isso que estamos vendo esse debate nos EUA agora.”
Contestações legais
![Donald Trump](https://ichef.bbci.co.uk/ace/ws/240/cpsprodpb/362c/live/18dd5e00-dfda-11ef-9e55-bfd035967447.jpg.webp 240w, https://ichef.bbci.co.uk/ace/ws/320/cpsprodpb/362c/live/18dd5e00-dfda-11ef-9e55-bfd035967447.jpg.webp 320w, https://ichef.bbci.co.uk/ace/ws/480/cpsprodpb/362c/live/18dd5e00-dfda-11ef-9e55-bfd035967447.jpg.webp 480w, https://ichef.bbci.co.uk/ace/ws/624/cpsprodpb/362c/live/18dd5e00-dfda-11ef-9e55-bfd035967447.jpg.webp 624w, https://ichef.bbci.co.uk/ace/ws/800/cpsprodpb/362c/live/18dd5e00-dfda-11ef-9e55-bfd035967447.jpg.webp 800w)
Crédito, Reuters
Poucas horas depois da ordem executiva do presidente Trump, 22 Estados liderados pelos democratas, a cidade de San Francisco, o Distrito de Columbia e grupos de direitos civis processaram o governo federal, contestando a medida.
A ordem executiva sofreu um revés inicial quando, no quarto dia da presidência de Trump, o juiz do Tribunal Distrital dos EUA, John Coughenour, a bloqueou temporariamente, chamando-a de “flagrantemente inconstitucional”.
A maioria dos juristas concorda que Trump não pode acabar com o direito à cidadania por nascimento por meio de uma ordem executiva.
“Ele está fazendo algo que vai aborrecer muita gente, mas em última análise isso vai ser decidido pelos tribunais”, disse Saikrishna Prakash, especialista constitucional e professor da Faculdade de Direito da Universidade da Virgínia. “Isso não é algo que ele possa decidir sozinho.”
A ordem executiva de Trump pede uma reinterpretação de uma emenda existente à constituição. Para alterá-la, seria necessária uma maioria de dois terços dos votos em ambas as casas do Congresso, além da aprovação de três quartos dos Estados dos EUA.
A ordem presidencial está suspensa agora, enquanto se aguarda outros procedimentos legais, mas os advogados do governo federal afirmaram que planejam recorrer da decisão, e esperavam que o caso fosse parar na Suprema Corte dos EUA.