A coleção Círculo de Poemas, que nasceu em 2022 de uma parceria entre as editoras Fósforo e Luna Parque, vem dando espaço e destaque a um gênero que, como costumeiramente se afirma, não tem mercado nem leitor. Passados quase três anos, a regularidade das publicações parece comprovar justamente o contrário. Com títulos que, nesta fase do projeto, atraem tanto leitores experientes quanto iniciantes, a coleção vai ajudando a criar no nosso país o hábito da leitura de poesia, um tipo de escrita que, como diz o poeta mato-grossense Manoel de Barros, permite “usar algumas palavras que ainda não têm idioma”, mas que podem significar muito. O destaque do Círculo de Poemas tem sido justamente palavras “sem idioma”, em verso e prosa, convidando o leitor a ir além das mensagens previsíveis.
No poema “Matéria”, de Manoel de Barros, de evidente atualidade, lê-se que “O osso da ostra/ A noite da ostra/ Eis um material de poesia”. Dessa matéria nebulosa, também parecem provir os versos de Quimera, novo livro da suíço-brasileira Prisca Agustoni, que o Círculo de Poemas acaba de publicar. Não é a estreia de Agustoni na coleção, pois Rastros, com versos que conversam com pinturas rupestres, já havia sido publicado em 2022.
Embora o poeta mato-grossense não faça parte da lista de autores citados em Quimera, sua maneira de olhar a mata e os bichos é similar à de Agustoni, principalmente nos momentos em que a voz lírica parece entrar em simbiose com a natureza. Em Quimérica, a voz poética diz que “uma pequena árvore cresce/ nas zonas úmidas/ e sombrias de mim,/ está colada às pernas/ e atravessa o meridiano/ do meu corpo, subindo/ lentamente por dentro,/ ramificando-se/ na coluna vertebral/ assim como eu/ antes/ escalava seu tronco;/ meus braços,/ os ramos do seu torso vegetal./ partilho com ela/ a vertigem da subida/ e a destreza da infância./ juntos somos/ essa invasão recíproca/ e vivente, uma arraigada/ saudade da terra”.
Em A nova ordem ecológica: A árvore, o animal e o homem, o filósofo francês Luc Ferry afirma que, nos anos 1500 no Ocidente, os seres da natureza eram vistos como “pessoas jurídicas”; para os modernos, no entanto, eles são “letra morta”. A natureza “[…] não nos fala mais, pois deixamos há muito tempo, desde Descartes, de lhe atribuir uma alma e de acreditá-la habitada por forças ocultas”.
Na literatura brasileira, os seres da natureza sempre tiveram “alma”, mesmo antes do boom dos estudos relacionados à noção contemporânea de perspectivismo ameríndio, os quais vão de encontro às teorias de Descartes ao afirmar, grosso modo, que tudo o que existe também sente e pensa. Esse outro pensamento, o dos seres da natureza, já é uma tradição antiga na nossa literatura, e a lista de autores que beberam nessa noção é extensa.
Em Água viva, de Clarice Lispector, de 1973, a narradora escreve: “Tenho a estranha impressão de que não pertenço ao gênero humano”. Ela é quase capturada pela perspectiva do outro: “A transcendência dentro de mim é o ‘it’ vivo e mole e tem o pensamento que uma ostra tem”. Mas retoma sua humanidade por intermédio da escrita, valendo-se então de comparações: “Como se arrancasse das profundezas da terra as nodosas raízes de árvore descomunal, é assim que te escrevo, e essas raízes como se fossem poderosos tentáculos como volumosos corpos nus de fortes mulheres envolvidas em serpentes em carnais desejos de realização […]”. Ressalte-se que a densidade das palavras corresponde ao sentimento extremado que a narradora deseja expressar.
Prisca Agustoni parece dialogar com Lispector quando escreve que deseja “ser floresta/ apesar da rigidez dos ossos// e verdejar o mundo/ nem que seja na linguagem”. Mas alerta: “Não sei nomear os seres da mata, eles moram em outra língua”. O ritmo da sua língua, no entanto, é menos nervoso do que o de Lispector; diria mesmo que a voz poética de Agustoni é serena, tranquila.
Aos poucos, lendo o livro, notamos que essa voz se sente “refém da mata que cerca a casa/ com seu arsenal de folhas e sombras”. Porém, se “o verde chama”, a natureza, nessa relação recíproca, não se deixa capturar totalmente por essa “língua vegetal”, que é mais anunciada do que mostrada nos versos em si. Contudo, a voz poética anseia recriar “o mundo na escrita, conciso e total como o de // uma manga no esplendor da tarde”.
Os versos, por fim, deixam para trás a natureza e se refugiam, como se registrassem um impasse no nível dos sentimentos, “numa floresta de tijolos onde me afasto dos barulhos dos outros”.
Num segundo momento do livro, sob o título “Monólogo do taxidermista (no museu de ciência natural)”, a voz nos leva confortavelmente ao museu: “Gosto de trabalhar no silêncio/ sepulcral do museu”. Não se trata, como poderia parecer, de alienação. Nesse espaço, que se contrapõe à mata, a voz vive “como numa arca,/ imensa orca ancestral:// todas as criaturas ajuntam-se/ nela/ são um único corpo-mosaico”. A união com o todo não é uma experiência mística, não é uma epifania pessoal, tal como havia sido anunciado na parte anterior do livro, mas se dá por meio da linguagem da ciência, da ordem racional, que propõe um caos sem caos.
O olhar poético se volta, então, para o micro, dando as costas para o macro, o exterior: “O corpo, visto desde dentro, é magnífico”. Assim, enquanto na primeira parte de Quimera tudo é vivo e exuberante, agora a morte ganha protagonismo, pois é a grande antagonista a ser enfrentada. Estamos na parte épica, por assim dizer, do livro: “Trabalho com animais mortos.// Quero vencer o arremate:/ extrair das garras da morte/ pela violência do corte/ toda a fúria e a doçura/ da espécie”.
A taxidermista extrai algo dessas carcaças, algo que a vele, como se a arte e a ciência, unidas, pudessem eternizá-las: “preciso restaurar/ os vestígios da doçura/ e alguma língua/ nesses corpos ocos”. A personagem então se identifica com “o deus da ficção/ e dos seres extintos, afinal a sua tarefa sempre foi essa:// devolver às criaturas/ sopro, viço, asa/ pele rediviva”.
O que começou como curiosidade se torna obsessão: “Preciso recriar/ a íntima organização da paisagem/ e da matéria”. Consta dos versos seguintes a “receita” de como chegar a essa organização dos seres e das coisas inanimados, porém, no meio do caminho, ela mesma se confunde com eles, o que remete às páginas iniciais do livro e acaba por inaugurar “um modo de estar” com eles: “nossa irmandade:// a gramática dos extintos”.
Na última parte de Quimera, a voz lírica desperta, ou imagina fazê-lo, todos os seres ao seu redor, reais e fabulosos, trazendo à tona símbolos femininos, entre figuras míticas de mulher. Então os versos catalogam tais arquétipos, retomando a linguagem da ciência e da ordem. Aqui Agustoni faz par com outra poeta, Maria Esther Maciel, que trabalha com verbetes e listas incomuns, relendo, sob o ângulo do poético e do absurdo, a noção de ordem racional que separa sujeito e objeto.
Como sucede na famosa enciclopédia chinesa sonhada por Jorge Luis Borges, o que parece organizado não passa, no fundo, de uma quimera.
Dirce Waltrick do Amarante é autora, entre outros, de Cem encontros ilustrados (Iluminuras) e Minha pequena Irlanda (Rafael Copetti Editor).