Se Hollywood já era uma fábrica antes, com o advento do streaming essa característica foi amplificada a níveis nunca vistos antes. E, para essa fábrica funcionar, fórmulas precisam ser empregadas. Elas sempre existiram, claro, e, hoje em dia, uma das mais comuns é a que reúne os atores mais queridos do público conforme ditam os algoritmos de busca e de redes sociais (ainda que não necessariamente os melhores), emprega doses maciças de computação gráfica e, em um segundo momento, talvez até terceiro, lembra de escrever um roteiro de menor complexidade possível, de preferência baseado em material preexistente para dar menos trabalho e para também capitalizar em cima do público que leu ou pelo menos sabe da existência da obra original, entregando tudo para um diretor qualquer que saiba pelo menos apertar os botões certos do liquidificador para misturar bem todos os ingredientes e torná-los uma massa pastosa colorida, vistosa, mas quase que inevitavelmente insossa. The Electric State, mais novo blockbuster do Netflix, faz exatamente isso, gastando, no processo, como estão dizendo por aí, inacreditáveis 300 e tantos milhões de dólares como se fosse troco da feira.
O longa já diz a que veio, só que não, ao começar com um prólogo doloroso de ruim, com diálogos mais artificiais do que os robôs do filme e, depois do título, ganha uma espécie de resumo contextualizador inorgânico que seria mais honesto se fosse um letreiro à la Star Wars sobre esses anos 90 alternativos em que Walt Disney – sim, o Walter Elias Disney mesmo – foi indiretamente responsável pelo surgimento de robôs que, claro, acabaram em pé de guerra com os humanos e que só foram derrotados graças à invenção de um capacete de realidade virtual que inicialmente permitia o controle à distância de drones guerreiros, e, depois, passou a ser toda a dopamina que a humanidade precisava para justamente evitar viver a vida real, em uma daquelas críticas às redes sociais e ambientes virtuais que, de tão banal e óbvia, perde todo o vigor e que é ainda reiterada B-E-M D-I-D-A-T-I-C-A-M-E-N-T-E ao final para até o espectador mais avoado conseguir entender. Seja como for, é nesse universo noventista retrofuturista em que os robôs sobreviventes foram banidos para uma terra de ninguém no meio-oeste dos EUA que encontramos Michelle Greene (Millie Bobby Brown), uma jovem que perdeu seus pais e seu irmão geninho Christopher (Woody Norman) em um acidente de carro e que vive em um lar adotivo que a trata como lixo até o momento em que é visitada por um robô chamado Cosmo (Alan Tudyk) que, para a surpresa de absolutamente ninguém que não tiver dormido nos segundos iniciais (o que pode acontecer facilmente, vale dizer), afirma ser uma espécie de avatar de seu irmão morto. Começa, então, uma jornada por uma região desértica distópica que logo conta com o ex-soldado e agora contrabandista John D. Keats (Chris Pratt) e seu fiel parceiro robótico Herman (Anthony Mackie) para encontrar o garoto, se ele ainda estiver vivo.
Como os robôs carniceiros que perambulam as terras devastadas do longa, o roteiro de Christopher Markus e Stephen McFeely é um eterno reaproveitamento de peças sobressalentes arrancadas de outras obras e soldadas de qualquer jeito em um conjunto narrativo pseudo-concatenado que em tese deveria formar um conjunto coeso sobre o conflito da humanidade contra a inteligência artificial, mas tudo o que realmente fica quando os créditos finais começam a rolar é que The Electric State não passa de um filme-drone, ou seja, executa as funções de uma programação burocrática e específica pelos Irmãos Russo que, como seus parceiros roteiristas, mais uma vez mostram que eles não conseguem nem de longe repetir o que fizeram quando surgiram capitaneando obras de orçamento infinito para a Marvel Studios. Tudo o que assistimos é espetáculo, não tenham dúvida, mas é aquele tipo de espetáculo cansado, repetitivo, que não oferece absolutamente nada abaixo da superfície a não ser as já citadas críticas rasas e verbalizadas em detalhes sobre o mal do isolamento em mundos digitais, e que progride ao longo de suas mais de duas horas na base de sequências de ação entre seres metálicos diferentões e do emprego de canções famosas das mais diversas naturezas enxertadas no longa para fazer o espectador tirar os olhos do celular por alguns segundos (confesso que abri um sorrisão ao ouvir Mother, de Danzig, somente para notar que o uso da canção foi tão completamente desprovido de contexto que minha vontade foi de colocar no mudo).
Millie Bobby Brown, atriz que um dia achei que tinha real potencial, mas que continua a cumprir sua pena de prisão perpétua aparentemente sem direito à condicional no Netflix, não consegue sair do padrão estabelecido para ela, padrão esse que tem se resumido a gritar, bater e a fazer caras e bocas em obras que, no geral, irritantemente tendem a fazer de tudo para subutilizá-la. Curiosamente, esse tipo de atuação definida pela obra que revelou Brown ao mundo afeta igualmente Chris Pratt (que deve ter ficado com inveja do penteado de Brown e pediu o mesmo para ele), Giancarlo Esposito e, claro, Stanley Tucci, esse último igual até mesmo quando escreve livros. Carisma só leva atores até determinado ponto e esses três aí, inegavelmente portadores de muito carisma, já passaram há muito dele, basicamente relaxando e escolhendo os mesmos papeis constantemente ou, talvez menos injustamente, só recebendo ofertas para papeis que são clones daqueles que os notabilizaram. Nem vale falar muito de Ke Huy Quan, que ressurgiu do nada, ganhou um Oscar e, agora, todo mundo realmente acha que ele é ator de verdade, sendo que ele não passa de mais um que vive de glórias passadas – no caso dele, de décadas atrás – repetindo seu Short Round e Data, só que agora adulto e, consequentemente, sem graça ou charme algum. E não é que eu desgoste deles, vejam bem, mas sim que essa característica de um elenco principal em um filme que é simplesmente a mesma coisa que já vimos antes com uma nova roupagem vem apenas adicionar mais problemas em cima de outros, especialmente considerando que os Irmãos Russo estão longe de serem diretores de atores, mas sim de pancadaria generalizada apenas, de preferência com poucos humanos.
Dentre a infinidade de fantásticos robôs, andróides e inteligências artificiais em geral que Hollywood já colocou nas telonas e telinhas, de Robby e HAL 9000 a T-800 e Gigante de Ferro, passando por Klaatu, Maria, Atom e R2-D2, é quase inconcebível como nenhuma das centenas de criaturas mecanizadas de The Electric State, inclusive e especialmente Cosmo e Herman, e subsidiariamente, talvez, Mr. Peanut (Woody Harrelson), merece sequer consideração para ocupar espaço nesse panteão. E olha que a equipe responsável pelo design de robôs muito claramente tentou pensar fora da caixinha, o que sem dúvida vale pontos positivos para a produção, mas a necessidade de abarrotar o longa com uma grande variedade deles tirou o espaço para que um sequer conseguisse ser desenvolvido decentemente e, com isso destacar-se. É o velho “quanto mais melhor” fazendo com que tudo se perca em um lodaçal de mesmice. Ou seja, o fenômeno da escolha programática de elenco composto de atores que vivem quase sempre o mesmo papel repete-se na forma como as criaturas não orgânicas são retratadas, cada um contribuindo para impedir que o longa decole como poderia decolar considerando o criativo e belíssimo material fonte do sueco Simon Stålenhag, que, no streaming, já ganhara uma adaptação excelente de outra obra sua, Tales from the Loop.
Entre criaturas metálicas concebidas exemplarmente, computação gráfica geralmente de boa qualidade e uma batalha final bem coreografada e com lampejos de cuidado narrativo, além de um final sóbrio (levemente estragado nos segundos finais), The Electric State não é puro ferro-velho como certamente meus comentários deram a entender que é. No entanto, mesmo considerando seus aspectos positivos, a megaprodução do Netflix é muito mais um exemplo de inacreditável desperdício de oportunidade artística do que do bom uso do investimento de plataformas de streaming. Quando o som de todo o metal vergando-se finalmente acaba, o que fica é aquela inafastável sensação de termos assistido uma diversãozinha chinfrim do tipo que podemos ter todas as horas de todos os dias navegando online com nossos pequenos objetos digitais viciantes que distribuem dopamina em volume infinitamente maior do que a fábrica de Hollywood consegue.
The Electric State (EUA, 14 de março de 2025)
Direção: Anthony Russo, Joe Russo (Irmãos Russo)
Roteiro: Christopher Markus, Stephen McFeely (baseado em romance de Simon Stålenhag)
Elenco: Millie Bobby Brown, Chris Pratt, Ke Huy Quan, Stanley Tucci, Woody Norman, Giancarlo Esposito, Jason Alexander, Martin Klebba, Marin Hinkle, Michael Trucco, Woody Harrelson, Anthony Mackie, Brian Cox, Jenny Slate, Alan Tudyk, Hank Azaria, Colman Domingo, Rob Gronkowski, Billy Gardell, Susan Leslie, Jordan Black
Duração: 128 min.