A primeira entrevista de Elon Musk desde que assumiu o Departamento de Eficiência Governamental (Doge) foi toda esquisita — mas o que não é esquisito naquela criatura? Sete executivos de paletó escuro, todos brancos, todos homens, em nada assemelhados à garotada nerd dos primórdios do Vale do Silício, o acompanhavam no estúdio. Foram apresentados como time raiz que reduzirá o déficit federal dos Estados Unidos, na motosserra, em apenas 130 dias. Musk tem pressa. Por seu status de “funcionário especial” da Casa Branca (não eleito nem sabatinado pelo Senado), ele não poderia exercer a função atual por mais de 130 dias por ano. Daí sua meta declarada de cortar a enormidade de US$ 4 bilhões por dia trabalhado.
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— Isso é uma revolução — garantiu.
O caso de Musk é único na constelação do poder mundial. A menos que cometa erros estratosféricos, ele pode continuar a tocar suas fantasias, vontades e fortuna, seja colado à Casa Branca, seja em órbita solo. O mesmo não se aplica ao restante do governo Trump, tomado coletivamente por um afã irracional em agradar ao chefe. Difícil achar exemplo mais revelador dessa irracionalidade do que uma instrução de dias atrás no Departamento de Defesa americano. Entre as palavras-chave que serviriam de filtro para a depuração de termos proibidos no novo vocabulário oficial, constava “história”.
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A instrução posteriormente anulada tinha ocorrido por erro de programação. Mas o desejo de erradicar a História, de silenciar historiadores e apagar um passado incômodo, em nome da construção de um futuro moldável, bem que viria a calhar. Os tempos atuais têm sido convidativos à concentração de poderes. Ao longo das duas últimas décadas, países como Turquia, Hungria e Índia já vêm demonstrando a erosão do sistema democrático amparado apenas em eleições, sem liberdades civis plenas. Esse “autoritarismo competitivo”, para usar expressão do New York Times, dificilmente se sustenta quando surge uma ameaça de mudança. A recente prisão de Ekrem Imamoglu, ex-prefeito de Istambul e líder da oposição ao homem forte da Turquia, Recep Erdogan, acabou com o “competitivo”. Venceu o autoritarismo puro, sem adjetivo.
Para explicar os rumos dos Estados Unidos a partir da posse de Donald Trump, talvez seja oportuno não mais falar em troca de governo, e sim em troca de sistema de governo. Algo como troca de regime. Em ensaio recente, o pesquisador em governança pública Jonathan Rauch, da Brookings Institution, se alia aos autores de “The assault on the State: how the global attack on modern government endangers our future”, e ao pensamento de Weber, para designar o governo Trump como “patrimonialista”.
No entender de Rauch, a antítese do patrimonialismo não é a democracia, e sim a burocracia — ou, mais precisamente, a camisa de força dos procedimentos burocráticos. Quando governantes autoritários ou totalitários chegam ao topo, consolidam o poder criando estruturas burocráticas fortes, a seu serviço, e as legitimam por meio de códigos e Constituições. O patrimonialista, ao contrário, tem aversão por formalismos e desconfia da lealdade da máquina pública, vê com suspeição as instituições do Estado, o execrado deep state. A expertise de funcionários graduados, o conhecimento de intelectuais independentes, a existência de uma imprensa inquisitiva, nada disso tem valor para quem só sabe liderar convertidos. O Congresso, o Judiciário, os Ministérios só são acionados quando forem de alguma utilidade pessoal.
Para alento dessa linha de pensamento, os regimes patrimonialistas não conseguem competir militar ou economicamente com Estados alicerçados em burocracias sólidas. Longe da “revolução” idealizada por Musk, acabam resultando numa forma de governo eviscerada pela incompetência e corroída pela corrupção. A ver como isso termina.
Por ora, a notícia civilizada e civilizatória dos tempos atuais veio da Terra Brasilis. Quem melhor escreveu sobre este momento nacional de orgulho e serenidade, de respeito à História, foi a jornalista Flávia Oliveira, neste mesmo espaço:
—Num país que leva impunidade como selo, anistia como marca, jeitinho no DNA, não é trivial que uma Turma de cinco ministros do Supremo Tribunal Federal acolha, por unanimidade, a denúncia contra um ex-presidente da República, três generais e ex-ministros, um almirante. Por atentarem contra a democracia (…) Ainda que a sina, adiante, se imponha, a ação penal se prolongue, o julgamento dê em nada, e as penas sejam atenuadas — são tantos os (des)caminhos possíveis —, a quarta-feira, 26 de março de 2025, seguirá histórica. Cinco dias antes do aniversário de 61 anos do golpe militar que empurrou o Brasil para o arbítrio e a brutalidade por duas décadas, altas patentes caminham para o banco dos réus por, novamente, tentar atentar contra a institucionalidade.