O maestro Gustavo Dudamel já estreou dezenas de peças em sua carreira. Mas a partitura que ele estudava com entusiasmo numa tarde recente no Lincoln Center era diferente: uma peça de quase 125 anos do compositor francês Maurice Ravel, que só recentemente havia surgido em uma biblioteca de Paris.
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“Imagine descobrir, mais de 100 anos depois, uma pequena e bela joia”, disse Dudamel, o futuro diretor musical e artístico da Filarmônica de Nova York, em uma entrevista no David Geffen Hall. “É precioso.”
Na quinta-feira, Dudamel e a Filarmônica apresentarão a estreia mundial da peça de cinco minutos como parte de um programa que celebra o 150º aniversário de Ravel, um dos principais compositores do século 20, cujas obras incluem “Boléro”, “O Túmulo de Couperin” e “A Valsa”.
A peça recém-descoberta, “Sémiramis: Prelúdio e Dança”, foi escrita entre 1900 e 1902, quando Ravel estava no final dos 20 anos e em confronto com os administradores do Conservatório de Paris, onde estudava piano e composição.
A obra, de uma cantata inacabada sobre a rainha babilônica Sémiramis, revela um jovem músico ainda aprimorando sua voz e buscando inspiração em outros, como o compositor russo Rimsky-Korsakov.
“Sémiramis” não tem algumas das texturas luxuriantes e harmonias ricas pelas quais Ravel viria a ser conhecido — ele era um mestre em combinar impressionismo francês, melodias espanholas, barroco, jazz e outras influências musicais — embora haja indícios de seu estilo incomum.
O manuscrito, com mais de 40 páginas, inclui uma ária para tenor e orquestra, que a Filarmônica não irá apresentar; a Orquestra de Paris estreará essa seção, juntamente com o prelúdio e a dança, em dezembro sob a direção de Alain Altinoglu.
“Sémiramis” é um feito para a Filarmônica de Nova York, que se prepara para o início da gestão de Dudamel no outono de 2026. É raro descobrir obras inéditas de compositores importantes, e Ravel, que morreu em 1937 aos 62 anos, escreveu apenas cerca de 80 peças durante sua vida, menos do que muitos de seus contemporâneos.
Dudamel afirmou que a Filarmônica fará o possível para captar as intenções de Ravel. O manuscrito não contém marcação de tempo no início e parece haver algumas notas faltando, inclusive na linha da harpa.
“É mais pressão”, disse Dudamel. “A única coisa que posso esperar é que ele me envie uma mensagem secretamente através dos meus sonhos.”
A descoberta energizou os músicos da Filarmônica, que, sem gravações ou notas acadêmicas para consultar, têm se consultado entre si nos últimos dias sobre dinâmicas e fraseados.
“É um momento bem vulnerável para Ravel”, disse Julian Gonzalez, o chefe assistente de fagote. “Ele não estará nos ensaios. Não pode mudar nada. Vai depender de nós acertarmos.”
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“Sémiramis” estava guardada nos arquivos da Biblioteca Nacional da França desde 2000, quando a biblioteca a adquiriu em um leilão de recordações de Ravel. Mas o manuscrito só foi trazido à tona recentemente, quando pesquisadores procuravam novas obras para serem apresentadas em comemoração ao 150º aniversário de Ravel.
François Dru, o diretor editorial da editora Ravel Edition, encontrou uma imagem da partitura enquanto pesquisava nos arquivos digitais da biblioteca alguns anos atrás. Ele sabia o nome da peça porque ele apareceu em um catálogo das obras de Ravel; o manuscrito havia sido marcado como “não rastreado”.
“Foi muito fácil encontrar”, disse Dru. “Não foi nenhuma espécie de aventura ou mistério como o Indiana Jones desenterrando algo do chão. Fiquei um pouco surpreso que ninguém tenha notado.”
Dru mencionou a partitura para Gabryel Smith, o diretor dos arquivos da Filarmônica de Nova York, quando os dois se encontraram em uma exposição sobre os Balés Russos na Biblioteca e Museu Morgan no ano passado.
Mas antes de apresentá-la a Dudamel, a Filarmônica queria ter certeza de que “Sémiramis” era autêntica — o manuscrito estava sem assinatura e não havia referências a apresentações públicas. Era possível, embora improvável, que Ravel tivesse copiado o trabalho de outra pessoa como um exercício acadêmico.
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A verificação veio na forma de um diário do pianista espanhol Ricardo Viñes, amigo íntimo e colaborador de Ravel.
No diário, Viñes documentou meticulosamente os eventos no Conservatório de Paris e as interações com figuras renomadas como o flautista francês Paul Taffanel e o compositor Gabriel Fauré, professor e mentor de Ravel.
Viñes escreveu sobre a primeira leitura da peça, que ocorreu em 7 de abril de 1902, durante uma aula de orquestra no conservatório:
“De manhã fui ao conservatório para ouvir a cantata ‘Sémiramis’ de Ravel, que a orquestra leu, estudou e tocou sob a direção de Taffanel; é muito bonita e imbuída de um sabor oriental. Toda a família Ravel estava lá, assim como Fauré, Juliette Toutain, Février, Koechlin, etc!”
O manuscrito de “Sémiramis” possui características de Ravel. A notação musical cuidadosa corresponde à sua caligrafia, assim como a escrita à mão, até o “a” em “Dança”, que ele escreveu como a primeira letra do alfabeto grego. E o estilo musical, fortemente influenciado pelos mestres russos, é consistente com outras obras iniciais do compositor, incluindo suas peças “Shéhérazade”, inspiradas nas “Mil e Uma Noites”.
No início dos anos 1900, Ravel já estava se destacando como compositor, produzindo a adorada obra para piano “Pavane Pour une Infante Défunte” (1899) e outros clássicos. Apenas dois dias antes da leitura de “Sémiramis” no conservatório, Viñes havia dado a estreia de “Jogos aquáticos”, outra peça pianística apreciada.
Mas, apesar de seu sucesso, Ravel era um outsider no conservatório, frequentemente entrando em conflito com os professores de mentalidade mais tradicional. Ele repetidamente perdia prêmios, que eram essenciais para a sobrevivência no conservatório. Foi dispensado da escola várias vezes por não ganhar prêmios, apenas para retornar como ouvinte na classe de Fauré.
Nessa época, ele e seus amigos, incluindo Viñes, formaram os ‘Os Apaches’, uma sociedade de escritores, artistas e músicos. Eles se reuniam semanalmente, compartilhando arte e ideias, e se cumprimentavam assobiando a melodia inicial da Sinfonia No. 2 de Alexander Borodin.
Ravel, que nasceu na França em 1875, filho de uma mãe espanhola e um pai suíço, pode ter escrito “Sémiramis” com a esperança de que fosse sua peça vencedora de prêmios: a orquestração e o estilo são notavelmente conservadores. Mas ele parece ter abandonado a ideia de uma obra grandiosa, deixando para trás apenas o prelúdio, a dança e a ária.
Arbie Orenstein, um dos principais estudiosos de Ravel, encontrou pela primeira vez uma menção a “Sémiramis” nos anos 1970, quando fez pesquisas e entrevistas para sua biografia seminal, Ravel: Homem e Músico (1975). Ele encontrou manuscritos de outras obras inéditas de Ravel — incluindo seis que estrearam no centenário do compositor em 1975 — mas não conseguiu localizar “Sémiramis”.
Orenstein disse que a obra mostra a maestria precoce de Ravel na orquestração. “Ele já havia composto obras-primas, mas ainda estava encontrando seu caminho como estudante”, disse. “No caminho, ele já estava lá, de certa forma.”
Dudamel disse que, embora estrear “Sémiramis” fosse um desafio, também era uma oportunidade de moldar a música de Ravel de uma maneira inesperadamente íntima.
“A peça ainda é um mistério”, disse ele. “É como um livro vazio para a imaginação.”