Cientistas têm investigado há décadas uma misteriosa mancha de água fria no Atlântico Norte. Localizada a sudeste da Groenlândia, essa área ficou mais fria entre 1901 e 2021 do que no final do século 19, enquanto o resto dos oceanos se aquecia com o aumento global das temperaturas.
O fenômeno, apelidado de “buraco de aquecimento”, intriga os pesquisadores. Algumas teorias sugerem que a água gelada do derretimento do Ártico pode ser a causa. Outras apontam para a poluição dos navios, que refletiria parte da luz solar de volta ao espaço.
No entanto, um número crescente de estudos aponta para um motivo ainda mais preocupante: o enfraquecimento das correntes marítimas do Atlântico. Se confirmado, esse processo poderia afetar o clima do planeta inteiro, e não apenas a região próxima à Groenlândia.
Enfraquecimentos anteriores nessa região do Atlântico já afetaram o clima
As correntes marítimas, incluindo a famosa Corrente do Golfo, formam um grande sistema chamado Circulação Meridional do Atlântico (AMOC). Esse sistema é responsável por transportar calor dos trópicos para o norte, aquecendo especialmente a Europa Ocidental.
A AMOC já enfraqueceu em épocas passadas, segundo registros em sedimentos antigos. E quando isso ocorreu, as mudanças no clima foram abruptas. A preocupação atual é que as sociedades modernas teriam dificuldade para se adaptar à velocidade dessas transformações.
Em entrevista ao site Live Science, Robert Marsh, professor de oceanografia e clima da Universidade de Southampton, no Reino Unido, alerta que correntes mais fracas podem provocar invernos congelantes na Europa, elevar o nível do mar na costa leste dos EUA e provocar secas severas perto do equador.
Ainda existe debate entre os cientistas sobre se a AMOC já começou a enfraquecer e se pode colapsar totalmente. No entanto, há consenso de que “estamos interferindo no sistema”, como destaca Marsh.
A AMOC é parte da maior “correia transportadora” do planeta, chamada circulação termohalina. Esse sistema move a água de um lado ao outro dos oceanos, levando calor de regiões quentes para áreas mais frias.
A água quente que sai da África do Sul viaja para o norte absorvendo ainda mais calor enquanto cruza os trópicos. Quando chega próximo à Groenlândia, libera esse calor na atmosfera, ajudando a manter o norte da Europa muito mais quente do que seria naturalmente.
Segundo a pesquisadora Maya Ben-Yami, da Universidade Técnica de Munique, a AMOC eleva as temperaturas médias da Noruega em cerca de 10 a 15 graus Celsius. Sem ela, o inverno seria muito mais rigoroso nessas áreas.
Para voltar para o sul, a água precisa afundar no Atlântico Norte, formando correntes profundas. Esse afundamento só acontece se ela for salgada e densa. Mas o derretimento do gelo na Groenlândia e no Ártico está diluindo a água, dificultando esse processo.
O “buraco de aquecimento” aparece justamente onde a AMOC costuma liberar calor para a atmosfera. O fato de a água nessa área estar mais fria do que o esperado é um forte indício de que a corrente está enfraquecendo.
Análise da evolução da AMOC pode ser inconclusiva
Com o aquecimento global derretendo ainda mais gelo, mais água doce entra no oceano. Isso pode acelerar o enfraquecimento da AMOC em um ciclo perigoso, onde correntes mais fracas trazem menos água salgada, e isso enfraquece ainda mais o sistema.
David Thornalley, cientista da University College de Londres, na Inglaterra, explica que, quando a AMOC está forte, ela “puxa” água salgada para o Atlântico Norte. Se enfraquece, atrai menos água salgada, o que gera um círculo vicioso de enfraquecimento.
Apesar dos sinais, há divergências sobre o que exatamente o buraco de aquecimento significa. Um dos problemas é a falta de medições diretas da AMOC antes de 2004. Para períodos anteriores, os cientistas precisam usar “impressões digitais” climáticas para estimar a força das correntes.
Essas impressões, como padrões de temperatura e salinidade, podem dar resultados diferentes. Por isso, os estudos sobre a evolução da AMOC nem sempre chegam às mesmas conclusões.
Por exemplo, uma pesquisa de 2018 indicou que a AMOC já estaria enfraquecendo. Em contrapartida, um estudo publicado em janeiro deste ano sugeriu que as correntes se mantiveram estáveis nos últimos 60 anos. Muitos especialistas criticaram a metodologia do estudo mais recente.
Independentemente desses conflitos, a maioria dos pesquisadores acredita que a AMOC enfraquecerá no futuro. E que isso terá grandes efeitos no clima global.
Se a circulação diminuir bastante, países como Noruega, Suécia e Reino Unido podem enfrentar invernos mais frios. A gravidade do resfriamento vai depender do quanto a força da AMOC diminuir nas próximas décadas.
Modelos climáticos simulam diferentes cenários. Alguns preveem uma redução de 10% na força da AMOC, enquanto outros apontam para um enfraquecimento de quase 50%. Segundo Marsh, uma queda de 10% seria sentida, mas poderia ser administrada. Já uma redução de 50% teria impactos profundos, afetando a agricultura e vários setores econômicos, alertou o especialista.

Correntes do Oceano Atlântico podem colapsar totalmente?
Um colapso total da AMOC, embora muito temido, é considerado improvável. Um estudo publicado em fevereiro apontou que ventos e outros fatores constantes ainda manteriam algum movimento nas águas.
Marsh acredita que um “colapso” completo, com 100% de paralisação das correntes, não é plausível. Mas ressalta que o sistema não precisa parar totalmente para provocar enormes mudanças na vida humana.
Se a AMOC continuar enfraquecendo, os efeitos serão variados e complexos. Em primeiro lugar, o resfriamento no Atlântico Norte poderia alterar a formação de tempestades e a distribuição dos ventos.
Curiosamente, isso não faria a costa leste dos EUA ficar mais fria de forma direta. O clima dessa região é mais influenciado pelo vórtice polar do Ártico, uma corrente de ventos que segura o ar gelado ao redor do Polo Norte.
No entanto, mudanças na AMOC poderiam afetar o próprio vórtice polar. Se ele se deformar, como já foi observado recentemente, massas de ar gelado podem invadir o meio-oeste e o sul dos EUA, especialmente durante o inverno.

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Nível do mar pode subir mais rápido
Outro impacto direto seria no nível do mar. Hoje, o nível do mar no Atlântico Norte é cerca de 70 centímetros mais baixo do que seria se a AMOC estivesse mais fraca. Se a corrente continuar diminuindo, o nível do mar pode subir ainda mais rápido. Isso aconteceria porque, além do derretimento das geleiras, a redistribuição da água do oceano mudaria, aumentando ainda mais a ameaça às cidades costeiras.
Nos trópicos e no equador, o impacto pode ser ainda mais dramático. Um Atlântico Norte mais frio mudaria o equilíbrio de energia do planeta e deslocaria a chamada Zona de Convergência Intertropical (ZCIT) para o sul.
A ZCIT é uma faixa de nuvens úmidas que traz chuvas vitais para regiões como América do Sul, África Ocidental e Ásia. Ela é responsável por definir as monções e as estações chuvosas e secas nessas partes do mundo.
Se a ZCIT se mover para o sul, como indicam estudos recentes, as monções seriam alteradas por pelo menos 100 anos. Áreas que hoje dependem de chuvas regulares para a agricultura poderiam enfrentar secas prolongadas.
Maya Ben-Yami, uma das pesquisadoras que estudou esse efeito, explica que essas mudanças podem devastar ecossistemas e modos de vida. Agricultores na África Subsaariana, por exemplo, dependem completamente das chuvas sazonais.
A floresta amazônica também sofreria. O impacto nas chuvas seria desigual: o norte da Amazônia poderia ficar muito mais seco, enquanto o sul receberia mais precipitação. Esses desequilíbrios climáticos poderiam levar a danos irreversíveis em uma das maiores reservas de biodiversidade do planeta, alterando o equilíbrio ambiental global.
Em resumo, o “buraco de aquecimento” do Atlântico Norte pode ser o prenúncio de mudanças profundas no clima mundial, afetando desde a agricultura na África até o nível do mar na América do Norte.
Embora os cientistas ainda debatam a velocidade dessas mudanças, a necessidade de acompanhar de perto o comportamento das correntes marítimas é urgente, tendo em vista que o futuro de muitas regiões do planeta pode depender disso.