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quinta-feira, abril 24, 2025

Caetano Galindo: O idioma é mudança – Revista Cult

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Caetano Galindo é um “eterno apaixonado pela língua portuguesa falada no Brasil” – e isso transparece em toda a sua obra. Além de professor do curso de letras na UFPR, dramaturgo, ficcionista, poeta e tradutor de calhamaços como Ulysses, de James Joyce, e Graça infinita, de David Foster Wallace, Galindo também se aventura na tarefa de popularizar conhecimentos acadêmicos da linguística. Na ponta da língua: o nosso português da cabeça aos pés (Companhia das letras, 2025) é seu segundo lançamento nessa direção. Dando um passo além daquilo que fez em Latim em pó (Companhia das letras, 2022), o autor busca não apenas puxar o fio da história que explica a etimologia de palavras de uso cotidiano, mas ajudar o leitor a tramar seu próprio caminho pelo idioma.

Em entrevista à Cult, Galindo fala sobre as intersecções entre seu trabalho de tradutor e de escritor, as mudanças que enxerga no português hoje e a possibilidade de uma nova gramática a partir da linguagem neutra. Apesar de pontuar que é proibido para a linguística histórica fazer previsões, sua leitura atenta do nosso português aponta novas direções para a língua no Brasil, identificando problemas sociais evidenciados pelo sistema de ensino e assinalando mudanças políticas no espaço geopolítico da lusofonia.

Na ponta da língua é a sua segunda obra dedicada a popularizar anos de pesquisa científica sobre a linguagem, cujas descobertas muitas vezes ficam confinadas à academia. O que te empolga e movimenta nessa direção? 

O que me empolga é a constatação de que dentro dos cursos de letras, na academia, existe um conjunto de informações profundamente interessantes, capazes de virar do avesso concepções que temos da história da nossa língua e do nosso lugar na história do idioma. Esses conhecimentos nem sempre transitam bem da academia para o público.

É bem verdade que hoje existe uma massa de influenciadores, no TikTok, Instagram, YouTube falando sobre isso. Mas tenho a impressão de que falta uma visada mais ampla, que dê espaço para o aprofundamento, exatamente como os bons e velhos livros ainda costumam fazer.

Ao longo da minha carreira, estive muitas vezes na posição de interagir com o público de fora da academia. Seja na imprensa, escrevendo ficção ou traduzindo literatura, e isso não sai de mim. De um lado, sou um professor, alguém que trabalha para formação de alunos de letras em uma universidade federal. De outro, tenho vontade de falar com o público maior.

É a sensação de dizer: “Gente, como vocês não sabiam disso? Vocês não acham maravilhoso?” Por isso, meu livro sobre Ulysses, de James Joyce, se chama Uma visita guiada ao Ulysses. Latim em pó leva o subtítulo “um passeio pela história”. Vem aqui comigo e deixa eu ir te apontando o que existe de maravilhoso ali, talvez oculto para quem não esteja atento ou não tenha as ferramentas para olhar para isso.

 

Na abertura do livro, você fala muito em curiosidade. Qual a importância dela para você? Acha que faltam curiosos na sociedade hoje? 

Eu acho que vivemos uma espécie de era de ouro da curiosidade, no sentido da obtenção de trivia: é muito fácil encontrar drops, informaçõezinhas, vídeos curtos que te digam uma coisa que você não sabia. O problema é que esses mesmos veículos, justamente por serem curtos e isolados, se prestam muito facilmente à veiculação de informações falsas – meias verdades, histórias mal contadas, que não se dão o trabalho de aprofundar no tema.

Mas muito raramente as informações são tão palatáveis assim. Normalmente, existem hipóteses, possibilidades, caminhos, contatos, interferências. Essas histórias não se prestam tão bem a esse formato da curiosidade no sentido da trivia. Isso faz com que vivamos uma crise da curiosidade no sentido mais amplo, da curiosidade que leva à dúvida, ao questionamento, à vontade de ir além e de confirmar.

 

Na ponta da língua se propõe a servir de manual para dar autonomia ao leitor curioso, que busca deduzir a história das palavras por conta própria. Como você faz isso? 

A ideia, já em Latim em pó, era não só falar da história de uma palavra ou da formação de uma parte do idioma, mas explicar como a linguística histórica estuda esses temas.

Se eu mostro ao leitor os diferentes momentos em que as palavras entraram na língua portuguesa e com que critérios elas entraram, como a ideologia linguística do século 16 era diferente da do século 14 em Portugal, eu faço entender mais claramente as lutas de poder por trás da língua, os mecanismos de formação do idioma e torno o leitor capaz de investigar a língua por conta própria

Ao invés de uma lista de etimologias, dou também mecanismos para o próprio leitor investigar. Estou apontando como se descobre, ensinando a desenvolver as ferramentas corretas para aquele tipo mais profundo de curiosidade: querer saber mais, ser capaz de desconfiar e de ficar de orelha em pé quando se vê uma informação simplificada.

 

Você também diferencia “história” de “verdade” na abertura do livro. Por que? 

Eu sou das ciências humanas, campo em que é preciso ter em mente que a verdade, enquanto associação dos fatos, é organizada em narrativas históricas que atendem às demandas e às necessidades de cada grupo, em cada período. A história do português que contávamos na década de 1960 é diferente da história que contamos hoje.

Latim em pó é uma história do português brasileiro que atende às necessidades da sociedade de hoje. Que se coloca em relação a descobertas, investigações e pesquisas que não existiam décadas atrás, que comprovaram ou argumentaram com muita força na direção de certas coisas que não eram muito claras antes, mas que se encaixam, como qualquer produto cultural, hoje.

Os livros se dirigem a um público que tem problemas, vontades e questionamentos específicos. Nesse sentido, existe uma diferença entre a narrativa histórica e a “verdade”, essa coisa muito complicada.

 

Assim como Latim em pó, esse é um livro sobre mudanças – na língua e na sociedade. Como e que mudanças você enxerga no nosso português brasileiro hoje? 

O português brasileiro, como qualquer idioma, está em permanente mudança. O idioma é mudança, não existe estabilidade. Qualquer retrato do idioma – uma gramática, um dicionário, um comentário linguístico – é uma fotografia de um momento necessariamente passado. Assim que a gramática fica pronta, ela já está ultrapassada, porque as coisas mudam permanentemente. Não existe qualquer esperança de estabilidade.

Mas o português brasileiro também está passando por mudanças específicas. Uma mudança muito grande, que é política, é a reorganização do espaço geopolítico da lusofonia: a ideia de que o Brasil, da década de 1980 para cá, com uma ênfase maior na virada do século, está tomando posse de seu lugar como proprietário culturalmente mais relevante do idioma. O Brasil está deixando de pensar-se à sombra de Portugal e abandonando a ideia de que são os portugueses que falam a língua legítima.

Os brasileiros estão tomando posse do seu idioma, aceitando o seu lugar e a verdade do português brasileiro, menos como viralatismo, erro e perversão do nobre padrão europeu que nós herdamos e mais como algo específico da nossa realidade.

Isso tem muito a ver com a democratização do acesso à mídia. Ou seja, em vez de ter um canal de televisão, alguns jornais, algumas editoras, agora temos o Instagram, o TikTok, o YouTube, onde todos podem aparecer. Todas as variedades do português podem se expor.

Acho isso algo maravilhoso, com um efeito muito específico no português do Brasil, que aponta na direção de alterações concretas de pronúncia e de gramática. Elas vão levar gerações para se estabelecer, mas já aparecem:  a prevalência do R retroflexo, o R caipira, na pronúncia urbana, mesmo em cidades onde ele não era presente poucas décadas atrás, provavelmente proveniente do contato com as línguas indígenas; uma tolerância maior a certas marcas típicas da oralidade brasileira, como a marcação simples do plural em sintagmas, em “as pessoa, os cara”, provavelmente uma influência do aprendizado do português pelos africanos escravizados que vieram para o Brasil.

Essas coisas ainda são estigmatizadas, vistas como erro, e a gramática tradicional vai manter essa classificação por muito tempo. Mas essas mudanças já começam a ter uma penetração maior, mais clara e legítima, na fala formal extensa. Não a fala dos discursos acadêmicos, mas a fala em registro, por exemplo, de entrevista. Isso começa a apontar direções novas para a mudança linguística no Brasil.

 

O uso da linguagem neutra é uma briga política que coloca em evidência a linguagem hoje. É possível pensar em uma nova gramática a partir disso? Lembro de uma fala de Barthes em que, falando sobre as diferentes línguas que existem dentro de uma só, ele diz “que uma língua, qualquer que seja, não reprima outra”. Acha que faz sentido pensar uma “linguagem neutra” como se pensa o bajubá ou os dialetos regionais, como parte do português? 

A briga da linguagem neutra é uma briga pela briga: queremos que ela aconteça. Porque o efeito dela é a visibilidade e a ampliação da pauta em torno de conceitos de gênero. Cada vez que um deputado reacionário inventa uma lei para proibir o uso de linguagem neutra, ele está concedendo uma vitória à discussão. É uma discussão sobre a necessidade de que ela exista, de que se continue falando disso.

Poucas vezes, na história da língua portuguesa do Brasil, vimos um assunto dominar tanto o interesse do público dentro e fora da academia. É praticamente impossível que alguém da linguística vá a um evento público e não receba uma pergunta sobre linguagem neutra. Acho maravilhoso que isso esteja acontecendo. É um daqueles momentos em que a história do idioma responde a questões da História com H maiúsculo.

Quanto a levar uma mudança de gramática, eu penso que a grande maioria dos defensores da linguagem inclusiva não estão mirando isso. Até porque isso seria uma quimera – não é assim que se realiza esse tipo de operação. Elas são muito lentas e dependem desse estranho movimento magmático da língua. A gramática da língua portuguesa – seja no sentido do livro que dita as regras para escola, seja no dos conjunto de regras internalizadas pelos falantes que geram as frases legítimas da língua – não vai se alterar.

O que ela pode gerar é uma espécie de dialeto. Quando se fala em dialeto, se pensa em um conjunto, ou seja, algo que tenha regras de pronúncia, de formação de frases e de vocabulário diferentes. O Bajubá, por exemplo, não é exatamente um dialeto do português, mas um vocabulário. Portanto é uma gíria, em certo sentido.

A linguagem neutra já está se transformando numa espécie de sinalizador: a pessoa que abre um discurso agradecendo a todes, que diz bem-vindes a quem está na plateia, está sinalizando uma posição política. Ela está levantando uma bandeira, dizendo: “Eu estou desse lado, represento isso e sinalizo essa posição”. Nesse sentido, isso é mais do que válido e interessante.

O que precisamos, em um mundo no qual o presidente de um país decide proibir palavras em projetos e documentos oficiais, é o direito de que uma linguagem não reprima a outra. As linguagens – dos concursos, do legislativo, do judiciário, da academia, da rua, dos estádios, do grupo LGBTQIAPN+ – são formas de se utilizar o português, que sinalizam pertencimentos e marcam exclusões.

Todas elas fazem a mesma coisa para grupos diferentes. O problema é que os grupos de menor prestígio acabam vendo as suas variedades sendo excluídas, enquanto os grupos de maior prestígio – econômico e político, não tem nada a ver com a qualidade da língua falada – veem a sua fala considerada de outra maneira.

 

De que forma seu trabalho como tradutor influencia seu entendimento do português? 

O trabalho como tradutor gera a necessidade do olhar externo. Eu digo para os alunos que é como quando você começa a sair autonomamente de sua família e jantar com os amigos, arranjar uma namorada: você percebe que uma série de hábitos considerados normais são marcas de sua família, e que em outros lugares é diferente.

Quando você começa a colocar o seu idioma em choque, em contato com outros – e a tradução é um lugar privilegiadíssimo para fazer isso – você começa a perceber o que existe de singular no seu idioma. Isso vai do encantamento até o pasmo.

Em Latim em pó – em um capítulo que a editora chegou a mencionar a possibilidade de cortar e eu insisti que ficasse – eu menciono que, ao traduzir prosa de ficção para o português, você toma uma consciência muito mais aguda do tremendo abismo que existe entre a variedade escolar do português brasileiro e a variedade efetiva, usada pelas pessoas, mesmo em situação formal.

Isso não funciona assim em outras línguas, especialmente no inglês, que é a língua fonte com que eu mais trabalho. Isso representa um problema social: como continuamos a insistir em fazer as nossas crianças decorarem e obedecerem “regras” que são completamente aleatórias, descoladas da realidade?

A famosa regra do “não comece frase com pronome átono”: começamos frases com pronome átono há séculos em português, no uso real de bons escritores, inclusive. Porque a escola insiste em manter esse descolamento da realidade? Isso fica muito claro quando se traduz. Há uma dificuldade de escrever um livro que não ofenda a oralidade; ou de escrever oralidade sem ofender a gramática.

O tradutor percebe como é difícil encontrar esse meio de caminho. O escritor brasileiro original tem a escolha de não usar essas construções, dançar em volta delas. O tradutor, não. Se o original fez aquilo, você tem que tentar fazer também. A tradução é um lugar privilegiado para conhecer os problemas, as características e as maravilhas do seu idioma.

 

Seu trabalho criativo, como dramaturgo e romancista, também é marcado pelas brincadeiras com a linguagem. Como seu conhecimento da linguística e da etimologia influenciam essa sua obra? 

O que unifica essas minhas atuações em áreas muito diferentes é o fato de que sou um eterno apaixonado pela língua portuguesa falada no Brasil. Me divirto, gosto de brincar com ela, de mexer nas dobrinhas, levantar as pedras, ver o que tem embaixo, brincar com a sonoridade, com os sentidos, conhecer a história, as trajetórias, estudar um vocabulário amplo, antigo e raro e também o vocabulário de hoje, da geração da minha filha e mais jovem que ela. Sou fascinado, boquiaberto diante da maravilha e da potencialidade da língua que falamos. Qualquer coisa que envolva manusear a língua portuguesa me dá prazer e me encanta.



[Fonte Original]

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