26.5 C
Brasília
quinta-feira, abril 24, 2025

“Parthenope”: imagem, mito e inconsciente no cinema de Sorrentino – Revista Cult

- Advertisement -spot_imgspot_img
- Advertisement -spot_imgspot_img

Em Parthenope (2024), novo filme de Paolo Sorrentino, o cineasta italiano retoma uma constante de sua filmografia: a tensão entre beleza e vazio, juventude e decadência, desejo e perda. Mas neste filme, algo se desloca. A figura feminina, tantas vezes marginal em suas obras anteriores, torna-se aqui centro irradiador de sentido — ou de ausência dele. Partênope é, ao mesmo tempo, personagem e mito, corpo e alegoria, presença e ausência. Com isso, Sorrentino compõe uma tapeçaria de imagens que evocam o tempo psíquico e arquetípico — o tempo do inconsciente, onde o mito encontra sua morada mais profunda.

Nomeada como a sereia grega que, segundo a lenda, teria fundado Nápoles ao morrer nas margens da cidade, Partênope não é uma heroína no sentido clássico. Ela é aquilo que o mito preserva: um enigma. Seu percurso se constrói como espelho de um tempo interior, marcado pela experiência do trauma, do luto e do desejo. Como em outros filmes do diretor — A grande beleza (2013), A juventude (2015), A mão de Deus (2021) —, a perda e a exuberância são eixos em torno dos quais gira o movimento da câmera. Mas agora, o luto é filtrado pelo olhar feminino, ainda que esse olhar permaneça, em grande parte, insondável.

A escolha de Sorrentino de construir a protagonista como imagem mais do que como sujeito evoca a estrutura da fantasia, diferente da mera objetificação da personagem, como a princípio pode parecer. No ensaio “Além do princípio do prazer”, Sigmund Freud identifica o retorno compulsivo a cenas primordiais como parte do esforço psíquico de simbolizar o trauma. O cinema de Sorrentino opera nessa chave: repete imagens — corpos, escadarias, paisagens napolitanas, figuras religiosas e devocionais — como se buscasse, por meio da estética, elaborar uma dor que não se deixa nomear. Nesse sentido, Partênope encarna o desejo de retorno ao instante anterior à perda, se é que isso existe.

Elizabeth Roudinesco, ao pensar na história da psicanálise e em seus vínculos com a cultura ocidental, afirma que o mito nunca desaparece por completo: ele retorna, travestido, em novas formas de expressão artística. O mito, escreve ela em Dicionário de Psicanálise, é o que “permite à cultura dar uma forma simbólica ao que escapa à razão”. É precisamente isso que Partênope representa no filme: uma tentativa de dar forma àquilo que não pode ser dito. Ela é menos uma mulher do que uma figura mitopoética — e, por isso mesmo, torna-se elo entre os mundos: o da infância e o da maturidade, da vida e da morte, da arte e da experiência vivida.

O silêncio da protagonista, longe de ser um vazio, é denso de sentidos. Em seu mutismo, ela escuta. Em sua quietude, observa. Em seu corpo, o tempo se escreve — não como sucessão de eventos, mas como marcação subjetiva da experiência. Se a linguagem verbal pertence ao universo do simbólico, o corpo e a imagem pertencem a algo que antecede à linguagem verbal, ao território do afeto e da fantasia.

Freud argumenta que a sexualidade e o desejo não se limitam à genitalidade ou à maturidade biológica, mas atravessam a vida em múltiplas formas, desde os primeiros anos. A juventude de Partênope, vista por muitos homens mais velhos como objeto de fascínio ou desejo, não é oferecida ao espectador apenas como objeto erótico. Ao contrário, há algo de funéreo em sua presença — como se sua juventude já estivesse marcada pela morte.

O mito da sereia, no qual a beleza canta e leva à perdição, reaparece aqui com nuances contemporâneas. A protagonista é desejada, mas não se oferece. Ela é contemplada, mas não se revela. E essa recusa à plena tradução a inscreve como imagem de resistência. Como nota Roudinesco, “a função da imagem no imaginário ocidental sempre oscilou entre o fascínio e a ameaça” — e Partênope encarna justamente esse entrelugar. Ela é a imagem que escapa, a mulher que não se deixa capturar. Como Nápoles, cidade que Sorrentino trata mais como personagem do que como cenário, ela é ao mesmo tempo luminosa e obscura.

O feminino, em Partênope, não é apenas uma categoria de gênero, mas um modo de relação com o mundo. A protagonista parece ouvir o mundo com uma sensibilidade diferente — captando não as palavras ditas, mas as ausências, os lapsos, os sentimentos não formulados. Como se possuísse um sentido apurado para o não dito. Há algo de perturbador em Partênope, como se ela carregasse consigo não apenas seus próprios segredos, mas os de todos que dela se aproximam.

Ao eleger uma figura feminina como ponto de condensação de tempo, memória e desejo, Sorrentino atualiza o mito sem esvaziá-lo. O que está em jogo em Partênope não é apenas a trajetória de uma mulher, mas o modo como o cinema — enquanto linguagem da imagem e da montagem — pode dar forma a experiências subjetivas, psíquicas, intangíveis. O filme é, ele mesmo, uma espécie de luto cinematográfico, um ritual para aquilo que foi perdido e que retorna em forma de beleza.

Fabiane Secches é psicanalista e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo. Escreve sobre literatura, cinema e psicanálise.

Parthenope: Os Amores de Nápoles (Parthenope)
2024, Itália/França
136 min
direção e roteiro: Paolo Sorrentino
elenco: Gary Oldman , Celeste Dalla Porta , Stefania Sandrelli , Isabella Ferrari , Luisa Ranieri
nos cinemas



[Fonte Original]

- Advertisement -spot_imgspot_img

Destaques

- Advertisement -spot_img

Últimas Notícias

- Advertisement -spot_img