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sábado, maio 17, 2025

Tati Bernardi: de boba da corte a escritora trágica – Revista Cult

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Qual é a relação entre o bobo da corte e o Belo? Em A boba da corte (Todavia, 2025), Tati Bernardi a revela em várias partes. Sua xana latejando diante de um garoto bem-nascido da Zona Oeste é só um exemplo. Enquanto ele se exibe, ela deseja se arrastar até lamber suas botas no meio do restaurante. Qualquer acrobacia de seu sagaz repertório de graças servirá para ser vista pelo imperturbável alvo até conquistá-lo pela irreverência de seus gestos e palavras.

Vênus é a deusa do amor e da beleza. Rege o desejo, o sexo, a fertilidade e a vitória. Associada a diversas formas de amor, a deusa emana sua beleza de maneira quase blasé: olhos vagos ao infinito e corpo à mostra, sem que seu desejo fique escancarado; Vênus insta o desejo, não encarna a sede e a fome que o movem.

Sim, os gêneros estão trocados na cena descrita: Tati, a boba da corte, Vênus, o macho intelectual a ostentar suas viagens culturais, sua formação acadêmica, sua proficiência em línguas estrangeiras, seus parentes artistas. Macho ou fêmea, este não é o ponto aqui – não inteiramente. O tesão da escritora está nos objetos que ele sabiamente exibe como se estivesse falando do pão comprado na manhã daquele dia. Objetos que, como ele, outras figuras de uma determinada elite paulistana intelectualizada e herdeira apresentam como commodities de um mercado fechado de entendidos. Forjam desdém por tais objetos que colocam na vitrine como virtude ou mérito para que a procedência privilegiada de retê-los não fique em evidência.

Nem os moços exibidos, nem as esnobes figuras da tal classe são, de fato, o que realmente fisga o desejo da escritora; ela está muito mais atenta ao Belo que perpassa a inteligência, o saber, a arte – isto é, o furo – de tais objetos. Em algum lugar indecifrável, o dinheiro amarra os objetos furados. Onde exatamente? Eis o que a intriga na elite paulistana: a afetação de um certo desinteresse pela grana herdada ou a mentira de uma certa crítica ao papel que ela desempenha em suas vidas tão recheadas da necessidade de possuí-la e de despendê-la.

Seja como for, o Belo que captura a autora de A boba da corte é um ideal vazio, uma forma. O desejo se enlaça ao Belo para atravessar dignamente os percalços que ele impõe, as fraquezas que ele deixa à mostra, as necessidades sedentas e irrefreáveis de seus caprichos, as inconfessáveis defesas por ele armadas. Se ainda pode haver a enfatizada distinção psicanalítica entre sublimação e sintoma, ela estaria apenas no compromisso que o percurso de sublimar assume com o Belo. Embora seja uma forma ideal, ele ganha uma dimensão histórica nos diferentes gêneros artísticos e intelectuais, nas estruturas políticas sempre atualizadas no horizonte do bem-comum e nos laços amorosos construídos em meio às oscilações voluntariosas do desejo.

O bobo da corte é alguém que, por vezes, está no centro do palácio para distrair reis e nobres com sua graça, sua música, suas acrobacias. Assume seu papel crítico com certa liberdade. De forma mimética, coloca em evidência os trejeitos e segredos dos poderosos, sem o perigo de ofendê-los ou confrontá-los. Essa permissividade é dada em troca de um riso extraído do tédio e da melancolia que se alastram pelas convenções e etiquetas e pelo enfado dos papéis sociais entre os grandes. A sagacidade e a perspicácia artísticas do bobo da corte são subvalorizadas para que o Belo se mantenha ilusoriamente em aliança com os dominantes. Embora perceba tropeços dos de cima, o poder não deixa de ser fetiche para o bobo da corte, que, ainda deslumbrado, se presta a entreter as ilustres figuras. Entretanto, o Belo e a graça estão de mãos dadas com o bobo, sem que ele se dê conta de suas próprias destrezas artísticas.

O Belo, suposto nas figuras de certa elite paulistana e enaltecido por Tati Bernardi, ruiu subitamente após uma mensagem recebida no meio de uma festa em seu apartamento de Higienópolis – não revelo detalhes para não dar spoiler. Em estado de vertigem, ela percebe ali seu lugar de classe. Ali ela se dá conta do engodo de uma elite ilustrada. Ali, talvez, ela tenha mudado de posição. De qualquer maneira, não desistiu do Belo que a move em torno de sua escrita literária – a prova é este seu maravilhoso livro.

Retomo o vínculo entre o bobo da corte e a Vênus, deusa do Belo, para terminar esta breve resenha. Quem observou muito bem a relação entre ambos foi o iconoclasta poeta Charles Baudelaire, que coloca belos ideais no chão em que se pisa ou até se cospe. Em “O bobo da corte e a Vênus”, ele escreve:

Que dia admirável! O vasto parque se desvanece sob o olhar brilhante do sol, como a juventude sob o domínio do Amor. O êxtase universal das coisas não se exprime por qualquer ruído; até as próprias águas estão como que adormecidas. Bem diferentes das festas humanas, aqui há uma orgia silenciosa. Dir-se-ia que uma luz sempre crescente faz cada vez mais cintilar os objetos; que as flores excitadas incendeiam-se do desejo de se rivalizarem com o azul do céu, pela energia de suas cores e que o calor tornando visíveis os perfumes os faz subir ao astro como fumaças.

Em meio a essa “alegria universal” do Belo, o poeta percebe “um ser aflito”. Ele está “aos pés de uma Vênus colossal” e é “um desses loucos artificiais, um desses bufões voluntários, encarregados de fazerem rir os reis quando o Remorso ou o Tédio os obcecam”. Com o “costume brilhante e ridículo, trazendo uma cabeleira de chifres e guizos, encolhido contra a pedestal, eleva seus olhos lacrimejantes para a Deusa imortal”. Clamando pelo reconhecimento da deusa extasiante, o ser aflito diz:

Eu sou o último e o mais solitário dos humanos, privado de amor, de amizade e bem inferior nisso ao mais imperfeito dos animais. Entretanto, sou feito, eu também, para compreender e sentir a imortal Beleza. Ah! Deusa! Tenha piedade de minha tristeza e de meu delírio!

Implacável, a Vênus apenas lança seu olhar de longe “para não sei quê, com seus olhos de mármore.”. Sua única tarefa é enlaçar desejos pelo Belo, nada mais. Desvendado o embuste de uma determinada classe que lhe parecia atraente, espero agora que, instigada mais uma vez pela bela Vênus, Tati encontre outras ilusões e desilusões e que elas lhe permitam escrever outras obras literárias igualmente preciosas.

Alessandra Affortunati Martins é psicanalista e doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP. Autora de “Sublimação e Unheimliche” (Pearson, 2017), “A abstração e o sensível: três ensaios sobre o Moisés de Freud” (E-galáxia, 2020) e organizadora de “Freud e o patriarcado” (Hedra, 2020).



[Fonte Original]

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