Ao longo das décadas, o cinema tem flertado com o imaginário demoníaco em múltiplas formas, mas raras vezes o fez com tanta sofisticação, coragem e lucidez como em “Advogado do Diabo”. Esta não é apenas uma história sobre ambição e tentação; é uma radiografia incômoda — e extraordinariamente articulada — do modo como o mal se infiltra em nossas vidas: não com chifres e enxofre, mas com charme, eloquência e promessas revestidas de ouro. O personagem de Al Pacino, figura central da narrativa, é a encarnação de um diabo contemporâneo, perspicaz e sedutor, que transita com naturalidade entre os poderosos. Sua performance transcende o papel, tornando-se uma síntese viva de todas as versões já feitas de Satã desde “Fausto”, de Marlowe e Goethe — mas com a diferença crucial de que aqui, o diabo não está em desvantagem.
O roteiro é meticulosamente construído para tensionar o espectador entre o deslumbramento e o desconforto. Cada diálogo é uma armadilha retórica que, como serpente, sussurra verdades distorcidas com a precisão de um discurso jurídico. Em meio a isso, Keanu Reeves entrega uma atuação surpreendentemente sólida, mesmo diante da avalanche interpretativa de Pacino. Ele interpreta um jovem advogado da Flórida, cuja trajetória meteórica de 63 absolvições o leva a uma firma de advocacia em Nova York — onde a ascensão profissional caminha lado a lado com a erosão ética. A descoberta de que há muito mais em jogo do que processos judiciais não vem como um susto gratuito, mas como o ápice de uma construção narrativa que evoca o próprio Gênesis: “Ora, a serpente era o mais astuto de todos os animais do campo que o Senhor Deus tinha feito”.
O mais perturbador em “Advogado do Diabo” é perceber que tudo que choca — a nudez, a violência, a deterioração psicológica dos personagens — não está ali para escandalizar gratuitamente, mas para evidenciar como o mal opera: com paciência, estratégia e sedução. Charlize Theron, em papel secundário mas absolutamente impactante, encarna com intensidade a ruína afetiva que acompanha a escalada do protagonista. É nesse colapso íntimo e gradual que o filme encontra sua força maior: a denúncia de que o verdadeiro pacto com o demônio raramente se faz num cruzamento à meia-noite, mas sim nas pequenas concessões diárias à vaidade, à ambição e ao orgulho.
Embora engenhosamente aberto a múltiplas leituras, o filme não cede ao moralismo simplório. Pelo contrário: flerta com o niilismo ao sugerir que até mesmo os alertas divinos podem ser cooptados como iscas por um mal ainda mais astuto. “Vaidade é meu pecado predileto”, diz o personagem de Pacino com um sorriso cortante — e é nesse ponto que o filme se torna quase profético, antecipando um mundo onde a imagem, o sucesso e o ego substituem com facilidade qualquer ideal ético ou espiritual. Para quem vê além das aparências, “Advogado do Diabo” é menos um thriller sobrenatural e mais um espelho filosófico de nosso tempo.
Assistido no cinema ou em casa, pela primeira ou quinta vez, o impacto permanece inalterado. Há filmes que envelhecem, há outros que sobrevivem ao tempo — mas este permanece urgente. Num mercado dominado por blockbusters vistosos e enredos descartáveis, essa obra-prima passou quase despercebida em seu lançamento, ofuscada por gigantes como “Titanic”. Mas aqueles que a descobriram jamais a esqueceram. Sua atualidade não se mede por bilheterias, mas pela inquietação que deixa. Porque o mal, como nos lembra o filme, não se impõe: ele convida. E quase sempre, aceitamos o convite de bom grado.
Filme:
Advogado do Diabo
Diretor:
Taylor Hackford
Ano:
1997
Gênero:
Drama/Fantasia/Mistério/Thriller
Avaliação:
10/10
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Helena Oliveira
★★★★★★★★★★