Não demorou muito para vermos as verdadeiras intenções de Elektra virem à tona. Cantei a bola sobre isso nas edições anteriores e aqui no início de Fim do Inferno, vemos que a assassina sempre quis a ajuda do Demolidor para conseguir roubar alguns bilhões. Ainda não ficou exatamente claro os objetivos da personagem com esse dinheiro – ela é interrompida antes de explicar -, mas não tenho dúvida de que é problema à vista, com Foggy incorporando o leitor quando Matt começa a falar das suas “mudanças”, de como está no “controle” e tentando racionalizar que não irá repetir os erros do passado. Balela. Zdarsky retrata uma versão do personagem que desesperadamente quer evitar ciclos que já aconteceram, mas não tem jeito, afinal, algum dia heróis da Marvel e da DC vão mudar?
Isso é uma pergunta para outra discussão, mas o que é cabível de discutir aqui é se Zdarsky continua trazendo algum tempero diferente para receitas antigas. Eu continuo achando que sim, com destaque para o dilema da morte do bandido, que segue acompanhando o protagonista como um fantasma. A cena de Matt com a mãe da vítima é extremamente bonita, se ainda levemente difícil de enxergar acontecendo – talvez seja o pessimismo falando alto, mas não vejo uma mãe aceitando com tanta facilidade. De qualquer forma, é um momento comovente e que encapsula os temas cristãos que acompanham a jornada do Demolidor, que via de regra só passa por provações dignas de Jó, mas que aqui finalmente pode ver um pouquinho do lado positivo com um perdão que tira um caminhão das costas da culpa católica do herói.
Dito isso, Matt não deixa de continuar se culpando e de questionar cada novo passo como essa versão “não-Demolidor” (algo bem refletido em sua forma de combate cheio de receios), o que está em linha com a personalidade sempre torturante do personagem. Até penso que o texto de Zdarky pesa a mão em alguns diálogos e balões de conflitos internos – uma ou outra edição achei a composição de Matt um pouco chatinha e até arrogante em determinados momentos, como em sua conversa com Elizabeth sobre a “vontade de Deus” -, mas no contexto geral do arco, temos mais um trabalho dramático de qualidade, que sabe como puxar os botões principais do Demolidor e como encaminhá-lo de volta a um manto que tanto quer rejeitar (a trajetória tecida lembra bastante jornadas de autodescoberta, aliás). Antes disso, penso que precisamos falar sobre a construção da trama desse quarto arco, que de certa maneira me surpreendeu, com um enredo centrado quase que integralmente em Hell’s Kitchen.
Confesso que estava esperando algo longe do bairro mais perigoso de Nova York, principalmente depois do núcleo de Fisk sendo humilhado por uma classe de poder acima do que ele já viu e da investigação de Matt sobre as ordens da retirada de policiamento na região. O começo do arco inclusive segue esse tom, com o roubo do protagonista com a Elektra, valendo destacar a arte de Jorge Fornés, que mais uma vez traz um aspecto procedural e investigativo, com uso inteligente de espaços e de diagramação para enfatizar a qualidade visual de invasão, algo que ele carrega para a tônica policial do restante de seu trabalho no arco, antes de Marco Checchetto assumir as duas últimas edições. É nessa mudança de tom, com foco na subtrama de Cole e enfatização na guerra das gangues que me pegou de surpresa, considerando as insinuações do arco anterior de uma trama mais diferente com os antagonistas bilionários e corporativos de alto escalão.
Eles ainda aparecem em momentos esparsos e seus dedos estão em todos os problemas do arco, mas o direcionamento é em Hell’s Kitchen. Nesse sentido, a narrativa em torno da disputa territorial é engajante, com boa participação de Hammerhead, Owl e da família Libris. Algumas reviravoltas e traições são convencionais e previsíveis, como a morte de Tommy, mas o texto de Zdarsky é funcional na medida certa para deixar tudo interessante de ler e acompanhar. A convergência entre os diversos núcleos é orgânica, da linha narrativa de Cole e a delegacia corrupta até a participação de Fisk num team-up curioso, com o destaque sendo a forma como Zdarsky traz Matt de volta à máscara vermelha, enxergando como as pessoas da sua casa tomaram o manto como símbolo e, claro, sua culpa (sempre inevitável) em razão de ter abandonado elas e repassada o fardo do Demolidor.
Tenho sentimentos mistos, porém, com o conflito gerado (a destruição de Hell’s Kitchen) como clímax do início do arco e como meio de chegar nessa conclusão. A balbúrdia diverte, sem dúvida alguma, com Checchetto inspiradíssimo nos diversos exageros da luta, mas tudo soou para mim como uma reunião forçada de figuras do cânone (tá todo mundo ali; Fisk, Mercenário, Foggy, Mary…) com algumas resoluções fáceis, como o bloqueamento de redes sociais (não comprei isso de jeito nenhum) ou a fuga do Mercenário. Talvez esteja pensando demais, mas tenho a impressão que Zdarsky poderia ter chegado no mesmo ponto se encostando mais na narrativa de crime do que no seu típico combate genérico. Ou talvez o autor só quisesse dar uma dose de adrenalina, o que certamente funciona por esse lado, em uma reta final frenética e divertida de ler.
Gosto de Fim do Inferno um pouco menos do que Atravessando o Inferno – esses títulos hahaha -, mas coisa ligeira mesmo, talvez por conta de alguns blocos autocontidos no volume anterior que chamaram mais minha atenção. De maneira geral, porém, noto uma consistência no material de Zdarsky, que diferente de Charles Soule no quinto volume, tem um encaminhamento claro do arco do Demolidor, para onde quer levá-lo dramaticamente, como quer repassar pelos hits do cânone e o que quer agregar à mitologia do Herói Sem Medo, dando bastante destaque nesse volume para Hell’s Kitchen. Só espero que vejamos mais do sistema nos próximos arcos.
Demolidor: Fim do Inferno (Daredevil: Through Hell & Inferno) — EUA, abril de 2020 a agosto de 2020
Contendo: Daredevil – Vol.6 #16 a 20
No Brasil: Demolidor 3ª Série – n°4 (Panini, abril de 2021)
Roteiro: Chip Zdarsky
Arte: Jorge Fornés, Marco Checchetto
Cores: Nolan Woodard, Mattia Iacono
Letras: Clayton Cowles
Editoria: Devin Lewis, Nick Lowe, C.B. Cebulski, Danny Khazem
Editora: Marvel Comics
116 páginas