19.5 C
Brasília
quarta-feira, abril 30, 2025

Crítica | O Eternauta (1957-1959) – Plano Crítico

- Advertisement -spot_imgspot_img
- Advertisement -spot_imgspot_img

O Eternauta é, sem dúvida alguma, um dos maiores clássicos dos quadrinhos da América Latina, uma obra que, como tantas outras nos mais diversos países da região que sofreram com as turbulências políticas endógenas e exógenas, fala sobre a opressão, a injustiça e interferência estrangeira com uma roupagem inteligente, que passa sua mensagem e faz sua crítica com alegorias logo abaixo da superfície enganosamente simples. Da lavra do argentinos Héctor Germán Oesterheld (roteiro) e Francisco Solano López (arte), a HQ em preto e branco e estruturada no formato de tiras de jornal (ou seja, horizontal, panorama ou paisagem, podem escolher) foi publicada entre 1957 e 1959 no suplemento hebdomadário do Hora Cero, uma importante revista que compilava quadrinhos na Argentina, ganhando uma nova versão por Oesterheld (mas com Alberto Breccia na arte) em 1969 e uma continuação com a dupla original em 1976, ano em que, infelizmente, o roteirista “desapareceu” nas mãos dos militares que assumiram o poder na época.

Escrita em meio à chamada Revolução Libertadora que depôs o presidente Juan Domingo Péron e instaurou um regime militar autoritário no país, marcando o início de uma gangorra política que demorou muitas décadas a se estabilizar e fazer a democracia na Argenina, O Eternauta é uma resposta de Oesterheld e López ao clima de paranoia que se instaurou no país e um libelo que conclama seus compatriotas a lutarem pela liberdade. Apesar da censura no país, ela ainda não era forte e organizada o suficiente e a obra passou incólume pelos órgãos que, em tese, tinham a função de impedir sua publicação dado o subtexto (que tem pouco de “sub” se o leitor for minimamente consciente, ainda que o remake de 1969 tenha feito todos os esforços possíveis para eliminar de vez qualquer sutileza nesse sentido) “subversivo”, anti-status quo. O que começa com uma narrativa aterradora e claustrofóbica, mas intimista, que o próprio Oesterheld paraleliza com o romance Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, logo ganha proporções mais amplas em que uma invasão alienígena espertamente faz as vezes de uma “guerra por procuração” que tanto marcou as tensões geopolíticas mundiais durante a Guerra Fria e que, claro, refletem exatamente o que estava acontecendo eu seu país.

Usando o artifício de enquadramento na narrativa, em que um senhor, sozinho em sua casa, recebe a visita de um homem que se materializa à sua frente e faz afirmações intrigantes, como “supor que está na Terra” e “que está na metade do século XX” e que, ao ser indagado sobre quem é, afirma que é  um “Eternauta”, começando, então, a contar sua história. E essa história começa é a de Juan Salvo que, em 1957, como fazia sempre, jogava truco no sótão de sua casa com seus amigos e vizinhos, o professor de física Favalli, o bancário Lucas Herbert e o aposentado Polsky, com sua esposa Elena e sua filha Martita no andar de baixo. Eles ouvem no rádio sobre mais uma explosão atômica dos testes americanos no Pacífico, mas não dão muita bola, continuando a jogar até serem interrompidos com um barulho violento do lado de fora, seguido de um estranho e absoluto silêncio que os leva à janela somente para descobrirem que uma nevasca fosforecente começara e que havia pessoas mortas na rua, momento em que eles fazem conexão com a radioatividade da explosão atômica. Como fazia muito frio, a casa estava hermeticamente fechada e nenhum de seus habitantes foi atingindo pela neve mortal, mas eles logo percebem que há algo mais do que radioatividade, levando-os a entrar no “modo sobrevivência”, algo convenientemente facilitado por eles terem o hábito, naquele sótão, de construir coisas como um contador geiger e fazer experiências variadas, o que significa que há muitas ferramentas por ali e que o grupo é hábil de variadas maneiras.

Sufocando o reflexo de sair de casa para investigar, os amigos começam a deduzir coisas com base no que observam pelas janelas fechadas, levando-os a retrofitar uma roupa de mergulho que Salvo, então, usa para ousar andar do lado de fora e fazer as primeiras expedições em uma Buenos Aires morta, com a indumentária mostrando o rosto do protagonista atrás da máscara tornando-se um verdadeiro símbolo argentino contra a opressão das ditaduras pelas quais o país passava e continuaria passando. Esse isolamento do pequeno grupo e as revelações e deduções a conta-gotas que se seguem, com um inimigo invisível à espreita, criam à perfeição uma atmosfera crescente de medo que favorece o mergulho mais do que completo na narrativa, com o problema dela sendo que Oesterheld aproveita muito pouco essa estrutura inicial, já mudando a narrativa para algo como resistência armada aos invasores pela página 83 e dedicando todas as quase 300 restantes a essa pegada mais bélica. Em um formato semanal, há evidente espaço para uma abordagem mais detalhado e seja a ser decepcionante que Oesterheld descarte o isolamento do núcleo inicial tão rapidamente, trocando-o por algo mais aberto e, sendo sincero, mais comum, ainda que obviamente não sem interessantíssimos mistérios sendo apresentados e alguns – não todos! – solucionados.

E, com essa decisão que entendo como uma forma de construir mais diretamente a alegoria que é todo o subtexto e objetivo da obra, O Eternauta acaba tornando-se mais extenso do que precisava ser, com diversas situações que são mais reinterpretações do que fora feito poucas páginas atrás do que elementos narrativos que contribuem para história avançar. E isso, claro, leva à algumas “barrigas narrativas” que fazem todo o épico estacionar, com foco demasiado e artificial em diálogos expositivos que cansam. Tenho perfeita consciência, porém, de que isso é quase que da natureza de obras originalmente publicadas de forma serializada diária ou semanal, sejam elas literárias ou de quadrinhos, especialmente quando apenas uma história única é contada ao longo de anos, como é o caso aqui. A repetição acaba sendo um recurso natural que familiariza o leitor e resgata linhas narrativas que estavam adormecidas, quase que como lembretes embutidos. O problema é que o conjunto de O Eternauta, quando analisado assim, sofre com essa pegada, especialmente porque Oesterheld, como disse, descarta muito rapidamente demais o aspecto do isolamento de Juan Salvo, família e amigos em sua casa nos subúrbios de Buenos Aires, algo que poderia muito facilmente ter dado bem mais frutos do que deu, criando um equilíbrio bem-vindo com todo o lado bélico da história.

O que ajuda a tornar a experiência de leitura do conjunto completo de O Eternauta mais fluida e prazerosa é, sem dúvida alguma, a magnífica arte de López, especialmente no que se refere aos rostos expressivos que ele se esmera em desenhar, algo muito raro de se ver nos dias de hoje. Toda a abordagem do artista é realista, mesmo quando elementos mais… digamos… exotéricos são introduzidos, o que aproxima os personagens e ambientações do leitor, universalizando-os, mas são os rostos que encantam de verdade, cada um não só muito diferente do outro, incluindo aí o tamanho e formato dos corpos, além de seus figurinos, como transmitindo sentimentos genuínos, como surpresa, medo, alegria, tristeza, depressão, dentre outros. Desde o senhor que recebe a visita inesperada na primeira página até o retorno a esse momento no final, passando por todos os personagens e acontecimentos com eles ao longo da narrativa, o que torna O Eternauta efetivamente valioso no quesito arte é como López revela-se um mestre em capturar sentimentos e emoções. E não faz nenhum mal que o artista transplante esse realismo para as ambientações variadas que começam na casa de Salvo e imediações e acabam no interior da Argentina, com um passeio detalhado pela capital e também para as criaturas não-humanas que ele cria com a absoluta certeza de estar fazendo algo que se encaixa fluidamente na narrativa.

O Eternauta é, sem dúvida alguma, uma obra fortemente política de grande valor para a Argentina e países vizinhos cuja mensagem infelizmente ecoa até os dias de hoje. Usando uma invasão alienígena para alegorizar a Guerra Fria e a luta contra a opressão, Héctor Germán Oesterheld e Franciso Solano López triunfaram ao conseguirem traduzir o que a Argentina passava naquele momento, mas sem em momento algum datar a experiência, transformando Juan Salvo, no processo, em um verdadeiro e potente símbolo eterno que transcende a mídia em que surgiu e até mesmo seu país de origem.

Obs: A edição integral de O Eternauta da Pipoca & Nanquim é um espetáculo à parte, que não só mantém a horizontalidade das tiras originais, como oferece uma capa dura em que o visor de Salvo abre para vermos seu rosto na página de trás, além de uma sobrecapa que permite que a HQ seja guardada na vertical na prateleira.

O Eternauta (El Eternauta – Argentina, 1957 a 1959)
Roteiro: Héctor Germán Oesterheld (Héctor G. Oesterheld)
Arte: Francisco Solano López
Editora original: Editorial Frontera (suplemento semanal Hora Cero)
Data original de publicação: semanalmente, entre 04 de setembro de 1957 e 1959
Editora no Brasil (encadernado lido para a presente crítica): Pipoca e Nanquim
Data de publicação no Brasil (do encadernado lido): 1º de novembro de 2024
Tradução: Letícia Ribeiro Carvalho
Páginas: 372



[Fonte Original]

- Advertisement -spot_imgspot_img

Destaques

- Advertisement -spot_img

Últimas Notícias

- Advertisement -spot_img