“Acabei de sair de um ensaio de quatro horas com o coro da Capela Sistina, que vai cantar no funeral do Papa Francisco neste sábado. Já havíamos ensaiado a missa do funeral desde quando o Papa foi internado, assim como outras coisas, esperando executá-las o mais tarde possível. Mas aconteceu e não podíamos prever que seria na segunda-feira após o Domingo de Páscoa. No funeral, vamos ter o canto gregoriano e em, algumas partes, polifonias compostas pelo maestro Giuseppe Liberto, que comandou a Capela Sistina entre 1997 e 2010. Também vamos cantar uma música do Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525 – 1594), que foi membro do coro e compositor do Renascimento. Eu que escolho esse equilíbrio no repertório das celebrações papais. Às vezes, a ficha cai. Eu penso: ‘meu Deus, que responsabilidade tudo isso’.
Nas celebrações, fazemos canto gregoriano, polifonia em latim e muita coisa em italiano. Todos os três papas que tive contato – João Paulo II, Bento XVI e Francisco – apreciavam esse tipo de música. Como gosto pessoal, eu sei que o Papa Bento XVI gostava muito de Mozart, que não faz parte da tradição italiana e, por isso, nós quase não cantamos nas missas. Já o Papa Francisco gostava muito de Johann Sebastian Bach e Richard Wagner, que também não costumamos cantar.
Esse é o terceiro funeral de Papa que eu participo. Quando o Papa morre, são realizadas nove missas nos dias seguintes. No primeiro, do João Paulo II, eu cantei o Salmo de Meditação. No segundo, do Bento XVI, eu já era maestro do coro, assim como agora, no de Francisco. O tempo passa muito rápido. Parece que foi ontem que cantei o Salmo no funeral de João Paulo II.
Desde quando Francisco foi internado, nós já estávamos ensaiando algumas coisas. Era impossível prever quando teríamos o triste dever de cantar em seu funeral. Mas muita coisa fica para último momento também, pois as celebrações da Igreja seguem o ano litúrgico. O Papa Francisco morreu na segunda-feira depois do Domingo de Páscoa. Então, toda a liturgia desta semana é ligada a esse evento específico.
A minha relação com Francisco era mediada pelo mestre das celebrações litúrgicas. Mas encontrávamos com ele algumas vezes durante o ano. O Papa fazia muita questão, sobretudo nas celebrações, de cumprimentar o coro e dizer uma palavra de encorajamento aos meninos cantores. Certo dia, estávamos gravando um disco na Capela Sistina e ele apareceu de surpresa para dar um apoio. Sempre demonstrou muito carinho.
Veja a quantidade de gente que está na fila para dar o último adeus a Francisco. Ele tocou o coração de todo o mundo com sua simplicidade e proximidade, principalmente dos marginalizados e excluídos. A mensagem dele chegou ao coração das pessoas, inclusive daquelas que não são da Igreja, mas que reconheceram nele esse amor por Jesus.
Eu trabalho na Capela Sistina desde 1998, quando entrei como maestro dos meninos cantores. À época, o acordo era apenas de 3 anos e eu deveria trabalhar até o Jubileu de 2000. Mas as coisas foram acontecendo e eu fui ficando. Em 2019, quando o maestro titular foi embora – acho que os superiores do Vaticano me conheciam e gostavam do trabalho que eu fazia com os meninos – me pediram para comandar o coro da Capela Sistina. Em 22 de novembro de 2020, Dia de Santa Cecília, a padroeira dos músicos, o Papa Francisco fez a gentileza de decretar minha nomeação neste dia especial.
Minha rotina como maestro da Capela Sistina é a seguinte: pela manhã, eu preparo as partituras, faço pesquisas de repertório e componho; ao meio-dia, as crianças ensaiam; à tarde, ficamos ensaiando com o coro durante três horas; à noite, preparo os livretos que são distribuídos para os fiéis e faço reuniões com os mestres das celebrações.
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Os caminhos de Deus são misteriosos. Nunca imaginei que moraria em Roma. Em 1998, o bispo de São Paulo pediu para eu vir à Roma e estudar uma coisa que não tinha nada a ver com música – vim aprender Direito Canônico, pois tinha feito Direito no Brasil.
Porém, como sempre estudei música, pediram para eu ficar ajudando no coro das crianças até 2000. E estou aqui até hoje. Veja como o tempo passa, e o que a gente planeja durante tantos anos, na verdade, não acontece. E as coisas que acontecem são maravilhosas.
O coro do Vaticano é muito antigo, remonta do século VII. É um coro que não só acompanhou toda a evolução da música sagrada, mas criou esse estilo. Desde o canto da Monodia dos primeiros séculos, até o canto velho-romano que depois deu origem ao canto gregoriano, passando pelas primeiras formas de polifonia, o coro da Capela Sistina foi o protagonista na criação da música sacra ocidental.
Temos um repertório de música tradicional que é muito ligado à nossa existência, pois são canções compostas pelos nossos próprios membros. Os maiores compositores do Renascimento fizeram parte do nosso coro, como Josquin des Prez (1455 – 1521), Giovanni Pierluigi da Palestrina e Guillaume Dufay (1397 – 1474).
A liturgia também tem textos que são cantados. A Igreja Católica, por exemplo, tem o canto oficial, que é o gregoriano. O maestro pode até escolher a melodia, mas o texto já é previsto e são imutáveis.
Cantar nas celebrações do Papa é uma coisa complicada. Existem muitos fatores: tem a procissão, o cerimonial, os celebrantes, os leitores, quem canta o Salmo… Tudo isso tem que ser cronometrado e ocorrer em harmonia. Precisamos de muita concentração e responsabilidade.
Em 1998, eu só pensava em estudar em Roma e voltar ao Brasil para ajudar meu bispo. Agora, em 2025, cá estou. Tenho muitas saudades do Brasil. Sinto falta da minha família, dos amigos e do pessoal da faculdade. Sempre que posso, eu os visito”.
*Marcos Pavan, em depoimento ao repórter Leonardo Marchetti