A simplificação e desburocratização do processo de licenciamento ambiental, aprovada no Senado na semana passada com apenas 13 votos contrários, expôs a contradição do governo na pauta ambiental. Sem articulação no Congresso, a postura do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) diante do projeto de lei demonstra que a narrativa ambientalista não é sustentada no governo. Apesar das críticas de ambientalistas de que as novas regras podem levar à degradação ambiental e da oposição da ministra do Meio Ambiente Marina Silva, até mesmo ministros do governo se posicionaram apoiando as mudanças.
O projeto de lei do licenciamento ambiental cria regras para construção de empreendimentos que utilizam recursos naturais ou podem causar impacto ao meio ambiente, como rodovias, aeroportos, indústrias têxteis, entre outros.
“O que estamos fazendo agora é licenciar com mais clareza, eficiência e justiça, para destravar e estimular a nossa economia. Estamos encerrando a morosidade e garantindo a preservação ambiental”, destacou a senadora Tereza Cristina (PP-MS) que relatou o texto no Senado. Atualmente, de acordo com a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), 27 mil normas federais e estaduais regem o licenciamento. O texto evita sobreposições de competência e elimina entraves administrativos sem reduzir a proteção efetiva das áreas.
A aprovação da proposta no Senado deixou ambientalistas contrariados. A bancada ambientalista classificou o texto como um retrocesso por reduzir a importância de estudos de impacto ambiental das obras e atribuiu o ônus ao agronegócio. O deputado Nilto Tatto (PT-SP) reconheceu uma divisão no governo. “Quando se trata de pauta ambiental, parte da base ampliada do governo no Congresso Nacional não segue orientação do governo. Ou segue orientação de parte do governo, de setores do governo, porque esta base, principalmente ligada à FPA, estão muito mais interessados em desmontar a legislação ambiental”, à Gazeta do Povo.
O Observatório do Clima, que reúne ONGs ambientalistas, enfatizou a atuação da bancada do agronegócio. “Contribuíram para o resultado a visão arcaica e negacionista da bancada ruralista, a miopia de representantes do setor industrial que querem meio ambiente só na esfera discursiva e a lentidão e fraqueza do governo federal em suas reações no Legislativo”, pontuou a coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo.
Um dos ministros que defendeu a proposta foi o ministro da Agricultura e Pecuária, Carlos Fávaro. “Eu acho que é um projeto de lei, que, quando transformado em lei, vai dar ao Brasil uma grande capacidade, principalmente para licenciar obras de infraestrutura, o que vai garantir ao Brasil um crescimento sustentável. Porque crescimento econômico tem que estar aliado a crescimento em investimentos em infraestrutura”, declarou Fávaro a jornalistas na sexta-feira (23).
O projeto de lei sobre o licenciamento ambiental tramita no Congresso há 20 anos. Apresentado em 2004, o texto tinha sido aprovado na Câmara em 2021, no entanto, com as alterações propostas pelos senadores na semana passada, os deputados terão que apreciá-lo novamente. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) já articula com o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB) a urgência para votação na Câmara.
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Licenciamento ambiental expõe contradição do governo na pauta ambiental
Analistas avaliam que a aprovação levanta questionamentos sobre a coerência das ações do governo. Na avaliação da diretora da BMJ Associados, Ana Paula Abritta, a aprovação do licenciamento ambiental no Senado evidencia uma divisão clara dentro do governo e entre os setores da base aliada. “Para a ministra Marina Silva e os ambientalistas, essa aprovação configura uma derrota significativa, pois a proposta flexibiliza critérios ambientais, aumentando os riscos de danos ao meio ambiente em prol de interesses econômicos. Os setores agrícolas, de infraestrutura, energético e empresarial, enxergam como avanços para o desenvolvimento econômico sustentável”, disse.
O líder da bancada ambientalista da Câmara, deputado Nilto Tatto (PT-SP), no entanto, negou que Lula esteja sendo incoerente, mas admite que “parte do governo” apoia a proposta. “É a contradição que tem dentro do próprio governo, que é fruto daquilo que a gente tem no Congresso Nacional, onde você tenha uma maioria negacionista com relação às mudanças climáticas e que, portanto, acha que a legislação ambiental e o licenciamento ambiental travam o desenvolvimento”, disse Tatto à Gazeta do Povo.
O Observatório do Clima apelidou o texto de “mãe de todas as boiadas” e afirmou que ele implodirá o licenciamento ambiental no país e está repleto de inconstitucionalidades. “A extensão dos retrocessos identificados revela graves riscos, que vão desde questões socioambientais, como aumento da poluição e desmatamento, até ampliação de insegurança jurídica, o que tende a gerar uma enxurrada de judicializações”, diz uma carta entregue a Alcolumbre.
Marina Silva vinha tentando segurar a tramitação da proposta que já tinha sido aprovada na Câmara. “A ideia dela [Marina] era não votar nunca”, afirma o analista político João Henrique Hummel, diretor da consultoria política Action. No entanto, o Senado avançou e propôs alterações no texto. “O projeto é tão maldoso com a Marina Silva que não há nada que ela possa regulamentar”, apontou Hummel.
De acordo com o texto da proposta, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), órgão ligado ao Ministério do Meio Ambiente, também não poderá tomar decisões sobre o licenciamento ambiental. Hoje, é de competência deste conselho o estabelecimento de normas e critérios para o licenciamento de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras.
Impacto internacional e discurso ambiental sob tensão
Para os ambientalistas, a proposta cria o risco de fragilização dos mecanismos de proteção ambiental e o momento é tido como delicado, já que o Brasil está às vésperas de sediar a COP30, em novembro em Belém do Pará. No evento, o país se apresenta como referência em políticas ambientais e defesa da Amazônia. No entanto, caso Lula sancione o projeto sem vetos, o governo terá que sustentar a narrativa de desenvolvimento econômico sustentável, à custa do novo atrito com setores ambientais.
A senadora Tereza Cristina, relatora da proposta, no entanto, afirma que o marco legal irá harmonizar e simplificar o processo de licenciamento ambiental no país, promovendo desburocratização sem comprometer as garantias ambientais.
Questionado quanto à repercussão internacional da aprovação da proposta, o analista político João Henrique Hummel, pondera que não houve alteração na legislação ambiental, mas sim nos procedimentos. “O que muda é que eles não vão mais poder fazer política com os licenciamentos. Apesar de que ainda há algum poder nas mãos da ministra, o poder de criar regras e dificuldades, que podiam parar os licenciamentos, acabou”, avalia o analista.
Pressão por vetos deve esbarrar em força de Alcolumbre e governo pode não atender
A aprovação do texto no Senado contou com o apoio decisivo do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), aliado estratégico do Palácio do Planalto no Congresso. Ele apresentou uma emenda propondo uma licença especial para “atividades ou empreendimentos estratégicos” definidos pelo Conselho de Governo. A medida foi acatada sem resistência. O interesse de Alcolumbre é a exploração do petróleo na Foz do Amazonas, que depende de licenciamento ambiental para seguir. O projeto está atrasado em pelo menos dois anos e tem o potencial de beneficiar o estado de Alcolumbre, o Amapá, gerando desenvolvimento e riquezas.
Após a derrota no Senado, Marina já fala em trabalhar para vetar trechos do texto que não agradaram. Isso significa também que ela admite que não terá apoio na Câmara. “Para quem defende a democracia, o diálogo está sempre à frente. Depois, se não conseguirmos fazer essa reparação, obviamente aquilo que não é condizente com a proteção do meio ambiente será trabalhado no governo para que possamos reparar de acordo com os mecanismos que o Executivo dispõe”, disse a ministra, durante participação em evento na PUC-Rio, na quinta-feira (22).
Nos bastidores, interlocutores ligados ao setor produtivo apontam que Lula pode não atender aos apelos de Marina e de ambientalistas. “Se o presidente Lula vai conseguir vetar, inclusive artigos inconstitucionais, passa por outra avaliação, evidentemente, por causa do que boa parte da base do governo está trabalhando pela aprovação desse retrocesso ambiental”, disse o deputado Nilto Tatto. O entendimento é que os vetos poderiam ser recebidos por Alcolumbre como uma afronta.
Além disso, Marina também já sinalizou que deve buscar amparo no Supremo Tribunal Federal (STF), apontando inconstitucionalidades no texto aprovado no Senado. O Ministério do Meio Ambiente disse por meio de nota que o texto aprovado no Senado “afronta diretamente a Constituição Federal, que no artigo 225 garante aos cidadãos brasileiros o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”.
Se seguir por este caminho, mais uma vez, Marina deve medir forças com Alcolumbre, que também tem poder de influência junto aos ministros do STF.
Marina fica no cargo, mas isolada
Marina está isolada no governo e sem apoio no Congresso, segundo analistas. Nem mesmo parlamentares do PT têm respaldado a atuação da ministra. Uma evidência disso é que Marina foi convocada duas vezes a prestar esclarecimentos na Comissão de Agricultura da Câmara, em apenas um mês.
As convocações são indicativos da força dos ministros. Enquanto a convocação é um ato mais formal, que impõe a obrigação de comparecimento, sob pena de punição por descumprimento, o convite é uma solicitação de presença e a recusa não gera sanções.
Assim, se há articulação dos ministros, as convocações são transformadas em convite por acordo entre os parlamentares.
Uma convocação do ministro do Desenvolvimento Agrário Paulo Teixeira, por exemplo, foi transformada em convite na mesma reunião em que Marina foi convocada pela primeira vez. Petistas interviram, para beneficiar Teixeira, mas não agiram da mesma forma com Marina.
Durante a votação da convocação, o deputado Padre João (PT-MG) se limitou a lamentar a convocação. “Eu lamento não termos construído um entendimento com a ministra, os autores e o Presidente para que a participação da Ministra Marina Silva nesta Comissão seja, de fato, por convite”, disse o deputado que seguiu sua fala lamentando a morte do Papa Francisco.