Até outubro deve ser concluído em caráter terminativo um acordo global para a redução gradativa de combustíveis fósseis no transporte marítimo, com o objetivo de chegar à emissão zero de carbono por navios cargueiros até 2050. Uma minuta das novas regras foi aprovada em abril pela Organização Marítima Internacional (IMO, na sigla em inglês). A regulamentação deve beneficiar diretamente o agro brasileiro, que já é referência na produção de biocombustíveis, com um aumento na demanda internacional pelos produtos.
Essa vantagem representa uma vitória para o país, que enfrentou resistência durante a discussão do acordo quanto à substituição do bunker, combustível fóssil utilizado por navios, por biocombustíveis de primeira geração, como etanol e biodiesel.
O argumento contrário era de que o aumento da demanda pelos produtos poderia afetar a produção de alimentos, além de gerar impactos ambientais como desmatamentos.
Os opositores, sobretudo os europeus, vinham defendendo soluções baseadas em eletrificação ou combustíveis gerados a partir do hidrogênio, como o metanol – alternativas mais caras, sem escala e que demandariam bilhões de dólares em investimentos em infraestrutura e motorização de embarcações.
Uma delegação formada por representantes do setor de biocombustíveis brasileiros e pesquisadores apresentou uma revisão de mais de centenas de estudos para rebater críticas, especialmente por parte de europeus, a produtos de primeira geração, baseados em culturas como cana, milho e soja.
O trabalho foi coordenado pela pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do programa de Pesquisa em Bioenergia da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Glaucia Souza, e rebate uma das grandes resistências ao etanol e ao biodiesel: a de que a produção dos biocombustíveis concorreria com a de alimentos.
De acordo com o levantamento, entre 224 estudos, dois terços mostram que bicombustíveis elevam ou não têm impacto na disponibilidade de alimentos. Internamente, especialmente em regiões de baixa renda, a bioenergia geralmente amplia o acesso à comida.
“Preocupações sobre o aumento dos preços de alimentos em razão da bioenergia são vistos principalmente em países ricos. Nesses locais, cerca de 75% dos estudos notaram efeitos negativos”, diz trecho da apresentação.
No caso do Brasil, o aumento da demanda por milho na produção de etanol não reduziu a oferta do grão para alimentos ou ração animal nos mercados doméstico e internacional, segundo uma das pesquisas analisadas.
A produção de cana-de-açúcar alternada com o cultivo de amendoim e de soja reduz a necessidade do uso de fertilizantes, aumentando a biodiversidade local e promovendo ganho de renda na mesma área produtiva. No caso da soja, a alternância com o milho para geração de etanol também permite a produção combinada de alimentos, ração e energia.
Além disso, mostram as pesquisas, o aumento das receitas nas áreas rurais devido à produção de biocombustíveis levou à inovação no agronegócio brasileiro, à modernização da agricultura, ao desenvolvimento de melhores práticas de manejo, à melhoria da produtividade e da sustentabilidade.
Biocombustíveis ainda têm um histórico comprovado de melhoria nos indicadores socioeconômicos. Em 2023, o setor sucroalcooleiro brasileiro gerava 2,2 milhões de empregos diretos e indiretos. Muitos países que produzem biocombustíveis também produzem eletricidade nas usinas, que é injetada na rede, ampliando o acesso à energia em regiões rurais.
“Fica evidente o potencial das economias emergentes em países que não produzem, mas já têm cultivo e vocação para a agricultura, de produzir biocombustíveis”, declarou, em nota, Francisco Turra, presidente dos Conselhos de Administração da Associação dos Produtores de Biocombustíveis do Brasil (Aprobio).
Segundo ele, em países que hoje são protagonistas nesse setor, como na região da América Latina, é possível dobrar a produção de biocombustíveis e atender às demandas da transição energética. Trata-se de uma oportunidade para o Brasil, referência na produção de alimentos e de bicombustíveis, crescer ainda mais nessas áreas, de acordo com Turra.
No Brasil, a Raízen, em parceria com a finlandesa Wärtsilä, desenvolve pesquisas para aplicação de etanol como combustível marítimo. A substituição de combustíveis fósseis pelo derivado da cana pode reduzir as emissões de carbono em até 80% em uma rota padrão do Brasil para a Europa, de acordo com estudos preliminares da empresa.
Como ficou o acordo para redução de emissões no transporte marítimo
As metas do novo acordo ainda precisam de uma aprovação final pelos países-membros, prevista para ser votada em outubro deste ano, em reunião protocolar da IMO.
Na votação final havia duas linhas divergentes para a proposta final. A primeira, que acabou vencedora, para taxação de carbono para financiar a transição. A segunda previa um mecanismo de conformidade de flexibilidade, para reconhecer quem investe em combustíveis de baixo carbono, com uma taxação do não investimento dos países em produtos de menor emissão.
Defensor do mecanismo de flexibilidade, o Brasil era contrário a uma taxação por entender que o custo terá um peso maior sobre o frete de longa distância, com impactos econômicos sobre países emergentes, principalmente no sul global.
As metas ainda precisam de uma aprovação final pelos países-membros, prevista para ser votada em outubro deste ano, em reunião protocolar da IMO.
Com 108 países signatários, cobrindo 97% da frota de navios mercantes, a IMO aprovou o acordo em sua 83ª sessão, ocorrida no mês passado, em Londres. Na votação, 63 membros votaram a favor, 16 contra e 24 se abstiveram.
Os Estados Unidos, que saíram recentemente do Acordo de Paris, permanecem na organização, mas se retiraram das discussões com ameaças de retaliação. O Financial Times revelou documento que mostra que o governo de Donald Trump pretende adotar “medidas recíprocas” contra quaisquer taxas impostas aos seus navios caso as novas normas entrem em vigor.
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Quais os principais pontos do acordo
Entre os principais pontos do novo marco estão o padrão global de combustível, que exige redução progressiva da intensidade anual de combustível, medida pela emissão de gases por unidade de energia consumida ao longo de toda a cadeia de produção. Assim, não houve um recorte em rotas tecnológicas, de combustíveis ou motorização.
Será criado também o Fundo Net-Zero da IMO, que receberá contribuições financeiras provenientes das emissões excedentes, uma espécie de multa. Esses recursos serão utilizados para recompensar navios com baixa emissão, financiar inovação tecnológica, infraestrutura e iniciativas de transição em países em desenvolvimento.
Foram estabelecidos duas faixas de redução de emissões, com penalidades diferentes.
A primeira meta exige que as embarcações reduzam a emissão de CO2 em 4% até 2028, em comparação aos níveis de 2008. A exigência sobe para 8% até 2030. Quem descumprir a regra deverá pagar US$ 380 por tonelada acima do limite.
A segunda meta, mais rigorosa, é de redução de 17% até 2028 e 21% até 2030, com valor de US$ 100 por tonelada acima do permitido.
Ou seja, em 2028, se um navio diminuir as emissões abaixo de 4%, pagará o valor mais alto por tonelada. Com redução entre 4% e 17%, pagará um valor mais baixo pela tonelada de CO2. Acima de 17%, não será penalizado.
As multas são válidas apenas para o período de 2028 a 2030, com valores futuros a serem definidos posteriormente.
O acordo estabelece também um sistema de comercialização de “créditos” de emissão, chamado de “unidade corretiva”. Navios que emitirem acima dos limites terão que adquirir o saldo excedente de navios que atingirem redução de emissões acima do patamar obrigatório, como forma de compensação.
Uma empresa poderá ainda utilizar “créditos” excedentes que ela própria acumular de outra embarcação, além de adquirir unidades corretivas por meio de contribuições ao Fundo Net-Zero da IMO.
As medidas serão incorporadas ao Anexo VI da Convenção Internacional para Prevenção da Poluição por Navios (Marpol), que atualmente abrange 97% da frota comercial global por tonelagem.
Após a aprovação formal do acordo em outubro deste ano, diretrizes detalhadas devem ser definidas em 2025 para que as normas entrem em vigor em 2027, respeitando o período mínimo exigido pela Marpol.