16.5 C
Brasília
sábado, junho 7, 2025

A cerca – Revista Cult

- Advertisement -spot_imgspot_img
- Advertisement -spot_imgspot_img

 

“Desde os seis anos que me lembro de ‘ser’ escritora, assim, como se só fosse, dispensada de decisão ou caminho”, escreve, em entrevista à Cult, a portuguesa Rute Simões Ribeiro.

Autora de O homem sem mim e A breve história da menina eterna, ambos lançados no Brasil pela Editora Nós, Rute — que escreveu seu primeiro romance aos doze anos (“péssimo, naturalmente”, ela classifica) — suspendeu toda a escrita até seus trinta anos. “A vida tomou-me”, diz.

Durante esse tempo, em 2000, Rute licenciou-se em Direito na Universidade de Coimbra. “Aí me formei, acima de tudo, consciente da relação entre o meu lugar e o lugar do outro, ambos pertencentes ao todo”, diz ela. Após um período na área de administração hospitalar, decidiu ingressar em um doutorado em saúde pública, experiência que lhe valeu o gosto pela “escrita longa e paciente”, afirma.

A escritora conta que sua incursão pela literatura se deu “numa madrugada de grande tristeza pelo fim do meu casamento”, quando começou o livro que seria finalista do prêmio LeYa em 2015, Ensaio sobre o dever: (Ou a manifestação da vontade), publicado de forma independente, originalmente com o título Os cegos e os surdos.

Ecoando influências de José Saramago, o livro desenvolve-se em torno de uma decisão a que os cidadãos do mundo inteiro são chamados a tomar: cada um deverá eleger apenas um de seus cinco sentidos para ser seu único. Nas palavras da autora: “e se tivéssemos de escolher um só sentido? Tive de o escrever para o saber. A partir daí, nunca mais deixei de escrever sobre novas hipóteses”.

Foi Borges quem escreveu que “cada escritor cria seus precursores. Seu labor modifica nossa concepção do passado como há de modificar o futuro”. Assim parece pensar Rute, que conscientemente elege Saramago, Vergílio Ferreira, Clarice Lispector, Virginia Woolf e Marguerite Yourcenar como precursores de sua prosa.

No entanto, em suas palavras, é a humanidade que a influencia antes de qualquer autor. “Penso que estudo o mundo enquanto escrevo” — diz ela — “às vezes, talvez escreva para exibir o que é preciso ver, mas sempre preocupada com o gesto estético, com o exercício da linguagem em si mesma. Escrevo pelo significado, pela relevância, pela estética. Mas também pode ser pelo comum motivo de me divertir muitíssimo enquanto escrevo.”

É um pouco dessa verve que pode-se ver em “A cerca”, conto da escritora que inaugura uma seção de inéditos no site da Cult, que pode ser lido abaixo:

 

Era uma vez um homem. E a sua cerca. Perguntaram uma vez ao homem o que pensava ele da sua cerca.

Não me ocupo dela, disse, sempre ali a vi, de tal modo que não a contesto.

 

E o que há para lá da cerca?, questionou o inquiridor.

Nunca me interroguei sobre matéria do outro lado. Considero a não ingerência mútua suficiente à coexistência.

 

E há benefício disso? Não fará falta ao outro lado o homem deste?

De modo a contribuir para os assuntos do outro teria de os aprender. Mas não há tempo.

 

O que faz com o tempo?

Existo.

 

Delimitado, porém.

Dado que me satisfaço com as ofertas deste lado e nada cobiço do outro, não me julgo delimitado. Não são limites, mas tão-só traços que nos separam no espaço.

 

Admitirá a segregação?

Só assim seria se os do outro lado pertencessem moralmente a este, ou eu ao outro.

 

O diálogo foi interrompido. Ouve-se o choro de alguém do outro lado da cerca.

Ouviu isto?, perguntou o entrevistador.

Ouvi, mas não há nada a fazer. Deste lado da cerca, não há espaço.

 

Mas está sozinho.

Sim, mas necessito do que sobeje para me expandir.

 

Como encontra satisfação na expansão se os do outro lado da cerca o solicitam para o essencial? Para a desnecessidade de choro, portanto.

Detemo-nos todos condicionados à contingência do espaço originário.

 

E assim deverá manter-se?

Nunca vi o outro lado da cerca, não sei o que poderá vir de lá nem como tratá-lo deste.

 

O senhor teria provavelmente de se conceder à mudança deste lado da cerca, modificar o estado adquirido, incluir o que lhe fosse distinto.

Certamente. Não tenho, porém, conveniência nisso.

 

É a conveniência um direito? Não será tempo de modificar as premissas do direito ao espaço? Quem estabeleceu as regras?

Talvez quem tenha construído a cerca.

 

Postas as necessidades atuais, não consideraria apagar os traços ao espaço? Isto é, senhor, ultrapassar a cerca, abrir-lhe uma porta?

Isso transtorna-me. Deste lado, conheço tudo, aceito este espaço até à cerca como aquilo que é a verdade. Se abrir uma porta, terei de aceitar verdades que haja do outro lado. E se forem incompatíveis?

 

As verdades, senhor? Nesse caso, talvez estejam inexatamente categorizadas.

E como estabelecer a diferença?

 

Consideraria, ao invés, solucionar o problema na comunhão?

De que trata a comunhão?

 

Talvez de compreender, precisamente, que há perguntas a fazer, que existe todo um outro relevante, não obstante desconhecido, matéria do outro lado igual à deste.

O homem olhou para cima. Ficou curioso. Pôs-se em bicos de pés e tentou-se.

Olá, disse sem elevar a voz.

 

O choro deixou de se ouvir. Veio silêncio. Como se fosse corpo. Uma mão pequena do lado de lá alcança o topo da cerca. Depois, um nariz. O homem do lado de cá espanta-se.

O que é?, pergunta assustado ao inquiridor.

 

Não tema, permita conclusão.

Do corpo veio a perna. Apoiando-se nos braços dobrados, com uma perna de cada lado e o tronco apertado contra o cimo da cerca, uma criança olha atenta para o homem deste lado. O homem estende a mão, mas não alcança a criança.

O que faço?

 

Senhor, dê um passo em frente. Talvez mais perto melhor o compreenda.

O homem prepara o pé e lança-o em frente. Não é suficiente. A criança faz-se numa gargalhada. O homem sorri e acrescenta sem medo passos à distância. Estica os braços e auxilia a criança na descida. Ampara-a no colo.

É leve, diz encantado. De que lado és tu?

 

A criança olha-o e estuda-o. Diz-lhe qualquer coisa ao ouvido. O homem olha para o inquiridor.

Ela diz que a cerca está no meio. É uma surpresa. Julguei-me todo deste lado.

 

Não delimita. Antes interfere, portanto.

Que solução agora?

 

O inquiridor sorri e sai em silêncio.

O homem e a criança desmancham a cerca.

 

Apresentação da autora por Victor Kutz



[Fonte Original]

- Advertisement -spot_imgspot_img

Destaques

- Advertisement -spot_img

Últimas Notícias

- Advertisement -spot_img