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sábado, junho 7, 2025

Cannes 2025, dia 2: “Two prosecutors”, “Dossier 137” e “Amrum” – Revista Cult

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O cineasta bielorrusso-ucraniano Sergei Loznitsa é muito conhecido por seus documentários, em que parte de registros históricos soviéticos feitos por outras pessoas, rearranjando essas imagens de arquivo em um fluxo em que tanto narra factualmente o que aconteceu no passado quanto aponta caminhos para reinterpretá-las hoje em dia.

Quando se lança em ficções, porém, seus filmes tendem a ser menos bem-sucedidos; depois que estreou no formato, com o excelente Minha felicidade, em 2010, rodou três outras com resultados em geral irregulares, ainda que sempre com uma câmera expressiva e um inegável talento para a criação de atmosferas carregadas – sufocantes, até.

Sua nova ficção, Two prosecutors, exibida na competição de Cannes, se passa em 1937, “apogeu do terror stalinista”, nas palavras do próprio cineasta. Ou seja: foi a época em que as autoridades policiais da União Soviética mais prenderam, torturaram e mataram pessoas consideradas “inimigas do Estado” – o que poderia ser absolutamente qualquer um, culpado ou inocente, desde que comprasse briga com alguém de hierarquia superior.

Para efeitos de contexto, é bom relembrar: depois de eliminar todos os reais inimigos do Estado soviético, no fim dos anos 1920 e no começo dos anos 1930, Stálin se deixou tomar por tal deslumbramento pelo poder – e por tal paranoia de perdê-lo – que começou a eliminar os próprios aliados que pudessem ameaçá-lo de alguma forma. Para isso, criou uma estrutura burocrática imensa e altamente truculenta, que exigia confissões mentirosas das vítimas para legitimar que fossem presas dentro da legalidade – e que agia a mando do líder supremo, mas atuando também, em casos menores, de acordo com suas próprias necessidades, em um período em que ser cidadão soviético exigia submissão total a quem tinha um pouco mais de poder.

É claro que, na época, muito pouca gente sabia disso, e não é de estranhar que, logo no começo de Two prosecutors, vemos um homem sendo encarregado de queimar uma série de bilhetes escritos por vítimas de violência estatal que escreviam desesperadamente para Stálin. Inocentemente, pediam que investigasse as polícias soviéticas, que estariam, a rigor, prendendo cidadãos às escondidas do Kremlin. Só décadas depois, quando Stálin estava morto, que Nikita Khrushchev pôs a boca no trombone e revelou ao mundo que não só o líder soviético sabia como também fora responsável pela tortura e morte de milhões de cidadãos.

Loznitsa revisita esse período manchado de sangue da história de seu país a partir da trama sobre um jovem procurador idealista que recebe um bilhete de um preso e decide visitá-lo na prisão. Ali, o detento lhe conta sobre as violências que sofre, o que faz o ingênuo advogado recorrer ao procurador-geral da União Soviética para denunciar os desmandos em um dos braços da polícia secreta do país.

O filme é bem mais contido e concentrado do que outras obras de ficção de Loznitsa. Mas ele continua afiado na criação de um universo absurdista, viabilizado pela sabedoria com que investe na estilização das atuações, na composição dos quadros e na manipulação temporal das cenas. Embora, aqui, isso talvez nem fosse necessário: a engrenagem burocrática na URSS stalinista era de tal forma absurda que mostrá-la em um registro puramente realista já seria o suficiente para transmitir essa noção.

Pela primeira vez, Loznitsa demonstra um real equilíbrio em sua narrativa, sem os instantes de explosão de violência ou de cenas propositalmente grotescas que, por vezes, comprometiam a eficiência narrativa de seus filmes anteriores. Seu novo longa também parece que vai ter uma explosão a qualquer momento, e ela acontece já próximo ao fim, mas sem a violência gráfica habitual; o modo como o diretor a apresenta desta vez é ainda mais apavorante do que os trechos mais brutais de suas ficções anteriores. Como um mestre, domina seu material, mantendo uma tensão generalizada em uma chave que remete tanto a Kafka quanto a Hitchcock. E, surpreendentemente, arrastado como é, o longa se revela ao final mas bem mais pulsante do que muitos filmes de ação.

Também tendo exageros policiais como tema, mas em uma realização em estilo completamente distinto, o franco-alemão Dominik Moll apresentou na disputa pela Palma Dossier 137, um eficiente drama investigativo inspirado em fatos ocorridos em Paris, em 2018, então no ápice das manifestações dos chamados “coletes amarelos” – movimento não partidário (e um bocado difuso – para não dizer “confuso” em suas intenções) em que pessoas protestavam por causas diversas, mas em geral demonstrando insatisfação com os preços e os serviços na França.

No longa, um grupo de policiais se irrita com alguns manifestantes e dá tiros em sua direção, sem motivo aparente, deixando um rapaz gravemente ferido e com sequelas. Nenhum policial assume a culpa, e cabe à investigadora Stéphanie Bertrand se debruçar sobre o caso, enfrentando, de um lado, a fúria da família do rapaz ferido e, do outro, o corporativismo dos agentes policiais, que pouco fazem para ajudá-la.

“Todo mundo odeia a polícia”, diz a certo ponto o filho de Stéphanie para a sua mãe, resumindo o sentimento geral da população diante de uma entidade que deveria defendê-la e, por isso, gerar sobretudo respeito e admiração na sociedade, e não o oposto. O filme é especialmente curioso para nós brasileiros vermos que esse tipo de problema não é apenas nosso; mesmo em um país como a França ele existe, e se a polícia de lá não chega a ser tão corrupta e brutal quanto a brasileira, ao menos também não é lá muito bem vista pela população.

Léa Drucker tem uma performance irretocável no papel da investigadora, sobretudo porque ela não quer se tornar maior do que o papel exige dela: ela está a serviço da personagem, e não o contrário. O filme é bem compassado, e mesmo que seja muito verborrágico e sem grande arrojo estético, ao menos tem a inteligência de cadenciar a investigação inserindo cenas do cotidiano de Stéphanie – em trechos em que ela adota um gatinho ou se estranha com a nova namorada do ex-marido, por exemplo. Isso dá certa leveza à história quando ela começa a ficar por demais descritiva, o que várias vezes acontece.

Fora da competição, Cannes exibiu ainda o novo longa do alemão Fatih Akin, Amrum, projeto que o cineasta herdou do ator e diretor Hark Bohm, que desistiu de realizar o longa, de caráter bastante pessoal, por conta de restrições físicas da idade (tem 85 anos).

A trama se passa em 1945, a poucos dias de Hitler ser derrotado, em uma ilha alemã que passa por dificuldades de abastecimento alimentar desde que a Inglaterra dominou o mar do Norte. Uma das poucas produtoras agrícolas da região torce para que a Alemanha perca logo a guerra, sofrendo, com isso, represálias dos habitantes que ainda apoiam o governo nazista. O foco é sobre o pequeno Nanning, filho de uma hitlerista apaixonada – o menino começa a entender melhor o que o rodeia em um tempo histórico especialmente cheio de percalços.

Akin tenta fazer um filme envolvente, afetuoso, mas a falta de uma conexão orgânica entre ele e o conteúdo se faz notar. Diferentemente do “Enzo” exibido ontem, que Robin Campillo herdou de Laurent Cantet antes de morrer – e conseguiu tornar um filme de fato dele próprio –, o Amrum de Akin parece desenraizado, solto. É um filme até certo ponto cativante, porque histórias de crianças, sobretudo em tempos de guerra, invariavelmente o são. Mas é uma obra claramente de encomenda, aquém da capacidade do cineasta.

 



[Fonte Original]

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