O último dia da 78ª edição do Festival de Cannes começou com a exibição de um dos filmes mais aguardados da competição. Resurrection, do chinês Bi Gan, foi incluído na relação dos concorrentes quando todo mundo achava que a lista já estava fechada – o curador da mostra, Thierry Frémaux, divulgou que o filme estaria pronto a tempo para ser exibido na briga pela Palma a apenas uma semana do início do evento. Coisa ruim o longa não haveria de ser.
De fato, Resurrection é um dos longas mais esteticamente elaborados de todo o festival. A trama é pouco clara, passando-se em um futuro indeterminado, quando as pessoas não mais podem – ou conseguem – ter sonhos. Quem insiste em fazer isso, corre o risco de morrer. Ainda assim, um homem ainda é capaz de se entregar a devaneios, hibernando longamente nos períodos em que não sonha. Assim, em seus instantes oníricos, acorda em momentos diversos ao longo do século 20, em épocas distintas da história da China.
O cineasta ficou conhecido por Longa jornada noite adentro, de 2018 – que apesar de ter o mesmo nome da famosa peça de Eugene O’Neill, nada tem a ver com o texto do dramaturgo. Ali, mostrava sua enorme ambição enquanto esteta, em uma trama complicada envolvendo um rapaz que sai à procura de uma mulher que desapareceu. O filme tinha sua parte final em um extenso plano-sequência, e mostrava personagens cantando karaokê enquanto cenas brutais de violência aconteciam logo ao lado.
Em Resurrection, Gan volta a incluir um enorme plano-sequência perto do fim, e mais uma vez insere um personagem soltando a voz ao som de uma canção melosa no karaokê, enquanto vários homens agridem um ao outro, no mesmo ambiente. Com isso, Gan não parece estar exatamente dando voz a uma necessidade expressiva, mas apenas procurando cimentar sua voz autoral, repetindo temas e estilo de modo a obter o respeito enquanto diretor com uma assinatura reconhecível.
Seu filme traz o cinema como metáfora da ilusão, da possibilidade de sonhar, em um mundo que exige o tempo todo sobriedade e espírito prático. Gan é um grande criador de imagens e um técnico excelente no manejo da câmera. Mas suas ideias não se transferem muito bem de sua mente para o roteiro. Seu cinema dá sempre, ao mesmo tempo, duas impressões contraditórias: ou a de que faz filmes apenas para si mesmo (e que, por isso, são tão pouco acessíveis) ou a de que faz filmes apenas para os outros (porque o que ele mostra sempre soa como algo para ser admirado, antes do que uma manifestação de algo interior). É um cineasta de enorme potencial, mas, por enquanto, ainda não encontrou uma sintaxe capaz de expressar o que ele de fato tem a dizer.
Grandes veteranos da competição em Cannes, os irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne compareceram pela décima ocasião na briga pela Palma de Ouro. Vencedores em 1999, por Rosetta, e em 2005, por A criança, eles mais uma vez apresentaram um filme com temática social e câmera tremida, com Jeunes mères.
O filme traz uma novidade na trajetória dos irmãos: não se concentra em apenas um personagem, como fizeram em seus longas anteriores. Desta vez o foco é em mulheres ainda muito jovens, que acabaram de ter filhos ou que estão nos últimos meses de gestação – elas vivem ou passaram por um centro de acolhimento de adolescentes e seus recém-nascidos.
Acompanhamos a história de Jessica, a poucos dias de ter seu bebê, que está prestes a se tornar mãe sendo que ela própria ainda hoje sente completa falta e necessidade do apoio da sua própria genitora. Perla é uma garota negra que teve um filho com outro adolescente, que perdeu o interesse por ela após o bebê nascer. Ariane quis abortar assim que soube que estava grávida, mas sua mãe alcoólatra a convence a ter o filho, tentando a todo preço restabelecer um lar com a filha e a neta, apesar da pobreza e do álcool. E Julie tem a chance de começar a vida com o namorado e a filha, em um novo apartamento, mas seu vício em heroína pode colocar tudo a perder.
Como de hábito, os Dardenne mostram o quanto a vida é complicada na Bélgica para pessoas que não nasceram endinheiradas, não têm emprego estável ou se envolveram com algum tipo de adição. Desta vez, também, a mira dos dois irmãos vai sobre o machismo, que faz com que pais adolescentes deixem toda a responsabilidade nas mãos da mãe, como se a obrigação de criar fosse apenas delas.
É mais uma vez os Dardenne mostrando sua faceta humanista, em um filme com imagens ásperas que se prestam a denunciar uma existência igualmente difícil, dura, por vezes insuportável. Mas o longa é mais um entre os mais recentes na carreira dos cineastas belgas que mostra que talvez tenham esgotado a fórmula que eles mesmos criaram: apesar da tentativa de inovação pela multiplicação de personagens, o estilo dardenniano já não causa tanto impacto como ocorria em seus filmes mais conhecidos. Ainda assim, sua mensagem é sempre importante, e se Jeunes mères não figura entre suas melhores obras, ao menos fala de um assunto para o qual a sociedade precisa dar mais atenção.
Encerrando a mostra competitiva deste ano, a americana Kelly Reichardt apresentou The mastermind. Josh O’Connor, que passou pelo tapete vermelho neste ano também por The history of sound, de Oliver Hermanus, protagoniza o longa, que se passa na década de 1970, narrando a história de um homem desempregado que decide roubar obras de arte para revendê-las. Mas seu primeiro grande assalto lhe traz problemas que ele não esperava que tivesse que enfrentar.
Reichardt nunca foi uma cineasta afeita a um estilo chamativo ou mirabolante, ao contrário. Aliás, a discrição com que costuma filmar, atingindo a essência de seus temas, em geral é o que encanta grande parte de seus admiradores. Desta vez, a diretora volta a investir em um longa de feitura simples, ainda que com elementos de cinema de gênero – no caso, os filmes de assalto. Mas The mastermind não traz nada de muito impactante ou que se diferencie do que já foi feito na área ou do que a própria Reichardt já realizou. É um filme que tem lá seus predicados, mas que não deixou grande marca em sua passagem pela Croisette.
Os vencedores do festival serão anunciados neste sábado.