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domingo, junho 1, 2025

Cannes, dia 4: Christian Petzold, Richard Linklater e Chie Hayakawa – Revista Cult

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O alemão Christian Petzold tem uma obra robusta o suficiente para participar (com chances de vitória) da disputa de qualquer grande prêmio do calendário cinematográfico. Estranhamente, porém, teve seu novo longa, Miroirs No. 3, deixado de fora da briga pela Palma de Ouro, participando do evento paralelo Quinzena dos Cineastas, em geral voltado para talentos ainda não solidamente estabelecidos.

Quando se vê o filme, a escolha até começa a fazer um pouco mais de sentido, porque se trata de um projeto abertamente mais contido em termos de ambição do diretor, conhecido por obras de maior envergadura, como Phoenix, de 2014, e Em trânsito, de 2018. É a história de Laura, uma jovem pianista que sofre um acidente de automóvel e é socorrida por uma mulher desconhecida, Betty, que a acolhe em sua própria casa.

Desde que chega ao lar temporário, Laura se agarra à mulher que a acudiu, como se fosse uma criança em busca de colo materno – o que Betty lhe oferece com satisfação. Logo descobrimos que ela tinha uma filha da mesma idade, que se matou, então Laura, de certa forma, cumpre o papel de substituta. A trama é basicamente isso, e não há na realização de Petzold um desejo de fazer cinema de gênero ou de tratar essa premissa de modo estetizado, em que o formalismo preencha as lacunas que a falta de substância do enredo apresenta.

Mas o filme não é tão banal quanto possa parecer. Ou talvez o seja em termos de estrutura, mas Miroirs No. 3 tem um fascínio muito próprio em sua pequenez. É como se estivéssemos diante de um mundo encantado, fabular, que dita suas próprias leis.

As duas protagonistas mal precisam trocar muitas falas: existe entre elas uma ligação que ultrapassa as palavras, uma afinidade de natureza talvez cósmica, em que uma pressente as necessidades da outra e procura supri-las, instintivamente. As duas atrizes que as interpretam têm rostos fortes, expressivos: Paula Beer é a dona de uma das faces mais cinematográficas a surgir diante de uma câmera nas últimas décadas, com sua boca sisuda sempre vermelha, os olhos profundos e atentos, olheiras que podem sugerir certo sofrimento ou simplesmente desaparecer de acordo com a iluminação, e Barbara Auer tem um rosto que, de perfil, parece muito com o de Ingrid Bergman em seus últimos anos, com certa dureza no semblante, mas ainda preservando uma formidável beleza. Ver essas faces interagindo, simplesmente, não é pouca coisa.

Mas o filme oferece mais do que isso. A personagem de Beer tem um aspecto infantil, do tipo que faz perguntas que as pessoas, em geral, optariam por não fazer por educação, conseguindo um efeito por vezes muito engraçado no modo como certas sequências evoluem. E há cenas muito pequenas, que seriam desprezadas em outros filmes, mas que persistem aqui, pelo simples fato de serem graciosas e de falarem sobre algum aspecto não muito evidente sobre os personagens.

Há um trecho especialmente adorável, quando Laura e o filho de Betty estão sentados ouvindo música e começam a rir, espontaneamente, sem motivo aparente. Não se trata de um riso de flerte, a priori, ou de quem acha graça de alguma coisa pontual; é pura e simples emanação de bem-estar, de afeto mútuo e de alguma cumplicidade – ainda que os dois personagens, até então, não tenham tido lá uma relação das mais amistosas.

Cenas mágicas assim, descompromissadas como são, possuem um valor cinematográfico muito maior do que grandes cenas mirabolantes e cheias de significados previamente calculados. E é por imagens assim, muito mais do que as de seus projetos mais ambiciosos, que Petzold consegue se destacar como um dos grandes realizadores do cinema atual.

Na competição, Cannes viu neste sábado um dos filmes mais aguardados do ano pela cinefilia. Nouvelle Vague, do americano Richard Linklater, é uma revisita a um dos períodos mais vibrantes e decisivos dos caminhos que o cinema mundial tomaria na segunda metade do século 20. Afinal, depois do sopro de inovação trazido por Jean-Luc Godard, François Truffaut, Claude Chabrol e companhia, nunca mais os filmes foram feitos da mesma forma.

O foco é em Godard, mais especificamente nas filmagens de seu primeiro longa, Acossado, de 1960, que se tornou um dos marcos do movimento e talvez seja o mais influente dos longas que dele fizeram parte.

Linklater está lidando com toda uma mitologia – inclusive fundadora do que se entende hoje por cinema moderno. Então não brinca em serviço ao buscar o máximo possível de fidelidade àquele período, e visualmente o filme de fato impressiona: os atores se parecem muito com quem interpretam; os penteados, figurinos e o desenho de produção dos cafés da Paris de fins dos anos 1950 é irretocável; a textura e o preto e branco das imagens da época são meticulosamente reproduzidos no longa. E mesmo o espírito jovial, enérgico e irreverente de quem fez aquele cinema também está no filme, assim como diversas frases que sumarizam, de certo modo, o pensamento sobre o fazer fílmico que os diretores (sobretudo Godard) tinham na época.

Mas o longa não ultrapassa nunca seu aspecto de perfumaria: no fundo, é apenas uma brincadeira de fazer filme em estilo Nouvelle Vague e homenagear os ídolos do movimento. Nunca adentra profundamente no que significava o gesto de fazer cinema como faziam aqueles jovens. Quem nunca assistiu a um filme da Nouvelle Vague pode ter a impressão de que o movimento era pura inconsequência e superficialidade, feita por rapazes que conversavam entre si o tempo todo dizendo aforismos sobre cinema e citando seus grandes ídolos cinematográficos, e só. De fato, em parte a Nouvelle Vague também foi sobre isso, mas se concentrar apenas nesse aspecto é redutor e até desrespeitoso. Ainda que leve, charmoso, o longa é oco demais para ser minimamente levado a sério.

Ainda na competição, a japonesa Chie Hayakawa apresentou Renoir, um dos filmes mais estranhos a surgir na Croisette até o momento. Fala sobre uma garota muito especial, que tem uma inteligência avançada para a sua pouca idade, com interesse por temas por vezes pesados demais até mesmo para adultos (quando ela vai a uma biblioteca da escola, por exemplo, folheia revistas com reportagens de crianças famintas na África).

Ela escreve redações de uma criatividade admirável, e mesmo as brincadeiras que elabora – para brincar sozinha ou com a única amiga que possui – são sempre inventivas e inusitadas. E o filme dedica grande parte de suas cenas a mostrar a menina em meio a essas brincadeiras, inebriado por sua capacidade de ser diferente da média.

De fato, por algum tempo a personagem é fascinante: queremos entender melhor o que se passa com a garota para ela ser daquele jeito. O filme dá algumas pistas: filha única, criada apenas pela mãe, que é em geral ausente… Mas isso não explica muita coisa, embora seja a única base de compreensão psicológica que a cineasta nos fornece.

A diretora parece ter certa aversão por cenas longas: o filme é composto de centenas de cenas muito rápidas, e sempre com a protagonista fazendo coisas diferentes, inesperadas, talvez até geniais. O longa é tão carregado de informações, o tempo todo, que mal chega à metade, e o espectador já se encontra em estado de exaustão. E a criança é por demais hiperativa: chega um ponto em que nos identificamos mais com a mãe dela, em sua falta de paciência.

Hayakawa parece ser igual a sua protagonista no desejo de trazer coisas novas o tempo todo. Mas o excesso de estímulos está a um passo da chatice, e infelizmente a diretora ultrapassa essa fronteira e desperdiça o enorme arcabouço de ideias que juntou. Mais comedida, porém, talvez se torne uma grande diretora.



[Fonte Original]

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