O Brasil finalmente passou pelo tapete vermelho desta 78ª edição de Cannes, com a exibição na tarde deste domingo de O agente secreto, do pernambucano Kleber Mendonça Filho. Encabeçado por Wagner Moura, e com um elenco que inclui ainda Maria Fernanda Cândido, Hermila Guedes e Gabriel Leone, o filme foi bem recebido, ao menos no boca a boca entre os jornalistas.
No comecinho do longa, um letreiro nos informa que estamos em 1977, ano em que o Brasil era “cheio de pirraça” – embora nunca fique exatamente claro o sentido em que o termo “pirraça” é utilizado. Em um trecho introdutório, vemos o protagonista parando em um posto de estrada para abastecer seu fusca amarelo. É Carnaval, e na entrada do posto há um corpo humano estirado no chão, há dias apodrecendo, à espera de uma polícia que nunca chega.
Minutos depois, policiais rodoviários param ali e tentam encontrar alguma irregularidade no carro. Em vão: está tudo nos conformes. No fim, sem ter como enquadrar o revistado, os policiais pedem uma ajudinha para tomar um café. Ele diz que não tem dinheiro, mas lhe dá alguns cigarros, e é liberado. O corpo estirado continua exatamente onde estava – e é provável que ainda tenha continuado ali por um bom tempo, ao menos até o fim do Carnaval.
Esse trecho com um pouquinho de Brasil não tem relação direta com a trama de base do longa, mas é exemplar do modus operandi de Kleber Mendonça Filho: a partir de rodeios, de trechos aparentemente digressivos, compõe um mosaico sobre o que realmente lhe interessa. E que é também o tema fundamental de sua obra: o Brasil como um país de conflitos enraizados. Entre classes, mas que também existe dentro de uma mesmo meio social, que pode ter pessoas em uma mesma família com visões de mundo radicalmente opostas. Disputas em geral impossíveis de resolver, a não ser pelo confronto.
A trama em si acompanha Armando (Wagner Moura), pesquisador universitário que desenvolve um estudo sobre geração de energia a partir do lítio. Um empresário, membro do conselho da Eletrobrás, acha que a pesquisa pode atrapalhar seus negócios e dá um jeito de usar seu poder para desmantelar o grupo de pesquisadores. Após ter uma briga pessoal com Armando, torna-se seu inimigo declarado – a ponto de contratar dois homens para matá-lo.
Auxiliado por um grupo particular que fornece ajuda e logística para proteger pessoas que correm risco de vida, Armando espera passaportes falsos ficarem prontos, para que possa, com seu filho pequeno, fugir do Brasil e continuar a pesquisa em outro país – além, é claro, de escapar da morte. Antes disso, porém, terá que despistar os assassinos, que vão ao Recife atrás dele.
Da última vez que Mendonça Filho esteve em disputa pela Palma de Ouro, com Bacurau (2019), codirigido por Juliano Dornelles, levou o prêmio do júri. Mas o longa tinha algo que O agente secreto não possui: uma comunicação totalmente imediata, direta com o público, independentemente da nacionalidade; a força visceral do longa ultrapassava qualquer barreira cultural.
É difícil precisar até que ponto O agente secreto poderá ser capaz de dialogar com plateias estrangeiras – e mesmo até que ponto o fará com a nacional. Porque é um filme bem menos direto ao ponto, justamente por causa dessas digressões tão fundamentais ao método do cineasta. Ainda que cada uma contribua com peças desse mosaico maior, é inevitável que, por vezes, algumas pareçam estar ali inseridas a fórceps. Como se o filme fosse um quebra-cabeças que veio com peças a mais e que o diretor insiste em inserir como se fizessem parte do desenho final.
A cena com Udo Kier, em que um alfaiate judeu é tomado como um combatente alemão da Segunda Guerra por um delegado, por exemplo, soa totalmente falsa, assim como há algo de artificial em todo o trecho em que uma mulher rica vai depor em um caso em que é acusada de negligência enquanto tomava conta do filho de sua faxineira. As digressões do filme funcionam sempre melhor quando são menos discursivas e mais espontâneas, brotando do comportamento ou das falas dos personagens – como quando uma colega de trabalho manda um bilhete para Armando se oferecendo para ele. Ou quando um jagunço se enfurece ao ouvir que trabalha fazendo “um serviço de bicho”. É em cenas assim que o específico do Brasil de fato se faz notar.
Mas a textura de O agente secreto tem uma brasilidade contagiante, em suas cores, seus personagens cheios de vida e, sobretudo, sua musicalidade (tanto as canções escolhidas quanto o jeito de se expressar das pessoas). E o longa tem cenas memoráveis. O ponto alto se dá em um registro de cinema de gênero, de thriller policial, pouco depois que os assassinos profissionais sudestinos, que cobraram 60 mil cruzeiros pelo crime ao mandante, terceirizam o trabalho sujo ao chegarem ao Recife, pagando 4 mil a um jagunço local.
Em uma sequência esplendidamente realizada, com um uso altamente original de música regional pernambucana, vemos o jagunço ir atrás de Armando para matá-lo. As coisas não saem bem como previsto, mas a sequência termina com uma formidável quebra de expectativas, em que um dos bandidos repentinamente vira herói aos olhos do público (entrar em detalhes aqui incorreria em um spoiler). Talvez seja a melhor sequência de todo o festival até o momento.
Por fim, vale destacar as performances: o elenco quase todo dá uma enorme contribuição ao sucesso do filme. E a melhor de todos é Tânia Maria, uma senhorinha pequena, septuagenária, com a voz rascante de quem fumou a vida toda (não larga o cigarro há 60 anos, segundo o filme), que interpreta a mulher que dá abrigo a Armando quando está em fuga. Marca a tela tanto quanto qualquer celebridade que passa emperiquitada de vestidos de gala pelo tapete vermelho do balneário francês.
Também na competição, a cineasta britânica Lynne Ramsay levou à Croisette uma questão feminina que não costuma ser muito explorada no cinema: a depressão pós-parto. Em Die, my love, ela traz Jennifer Lawrence no papel de Grace, uma mulher que acaba de ter o primeiro filho e que já espera um segundo quando se muda com o marido para uma casa no campo. Mas alguma coisa não vai bem com ela: tem crises de fúria aparentemente sem motivos, sente-se entediada o tempo todo, não consegue se concentrar no trabalho de escritora. E o casamento vai mal, com o marido ausente grande parte do tempo – e a vida sexual da dupla, outrora ardente, agora inexiste.
Ramsay, ao que parece, fez o filme sobretudo para chamar a atenção para esse drama pelo qual tantas mulheres passam logo depois de terem filhos. A revolta de Grace se dá sobretudo diante do marido e da sociedade como um todo, que seria insensível a sua situação e à das mães em geral. O problema é que, da forma como Ramsay nos apresenta a situação, Grace não é em quase nada uma vítima; a única real opressão conjugal que ela sofre é ter que cuidar do filho sozinha, e em termos sociais nunca a vemos ser de fato silenciada ou diminuída – ao menos, não de um modo que pudesse justificar a agressividade de muitos dos seus comportamentos. A maneira como a crise depressiva se manifesta em Grace é intensa e violenta demais, mesmo diante de pessoas que só querem ajudá-la, e isso impede que o espectador consiga ter um olhar empático a ela. A razão de ser do filme se perde.
Quando ela comete idiotices, do tipo fazer caretas e resmungar sozinha, ou quando dá uma espinafrada em uma vendedora tagarela que exagera no “fast talking” ou mesmo quando Grace arranha as paredes do banheiro com as próprias unhas em instantes de destempero, é até possível entendê-la e se apiedar de sua situação (no caso da vendedora, podemos até concordar com ela). Mas as crises de Grace atingem níveis estratosféricos, e seu comportamento se torna simplesmente indefensável em diversas situações; Ramsay acaba indo contra sua intenção original, e o público se sente mais propenso em torcer contra a personagem do que em procurar compreendê-la em algum nível. O filme opera no modo da autossabotagem temática.
Grace é uma protagonista antipática, e o filme também o é – e Ramsay faz isso de propósito, porque quer acentuar o desespero e o caos emocional em que se encontra a personagem. A diretora encontra algumas soluções visuais bastante felizes, mas no geral as crises de Grace acabam tendo um ranço sensacionalista na forma como mostra o estado mental daquela mãe, o que não é exatamente a chave de representação que grande parte das cineastas mulheres tem buscado em seus filmes – muito pelo contrário, aliás. Ramsay tenta intensificar uma situação para ilustrar o quanto ela pode ser dramática, mas foi tão longe nessa sua busca que acabou por demonizar ainda mais uma mulher em sofrimento. Lamentavelmente, o filme sai por completo de seu controle.