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sábado, junho 7, 2025

Como raiz que ninguém arranca – Revista Cult

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Então foi isso, foi isso o que fizeram, ali, diante de todos, diante das câmeras, das cadeiras de couro, dos microfones que fingem escutar mas nunca defendem, porque ali ninguém escuta ninguém, e eu vi, eu vi com os olhos arregalados de quem ainda esperava decência, vi uma mulher sendo cercada, sendo alvejada por palavras que não queriam discutir, não queriam dialogar, queriam esvaziar, apagar, fazer sumir – e não por acaso, porque ela não veio de onde eles vêm, não carrega os sobrenomes certos, não nasceu entre os móveis de mogno das famílias cheias de títulos e terras e cinismo – ela veio do seringal, da vida que eles fingem respeitar, mas odeiam com todos os ossos do corpo.

E então veio o estalo, a frase que caiu como um tapa que não se dá com a mão mas com a língua afiada: “coloque-se no seu lugar”, disse ele, com aquele riso mole de quem nunca levou um não, com a voz mole de quem nunca teve que provar nada, e o que ele queria dizer, mesmo, era: suma, desapareça, lembre-se de onde veio, aceite o papel de coadjuvante, não se atreva a querer escrever o enredo, porque o roteiro já foi feito por outros, feito para outros, feito contra você.

Eu vi ela ficar, vi ela não tremer, vi ela responder com aquela jeito que é faca, com aquela dignidade que é pedra, com aquele olhar de quem sabe que já enfrentou coisa pior e que, se precisasse, enfrentaria tudo de novo, mas não abaixaria a cabeça, nunca.  E disse que o lugar dela é onde todas as mulheres devem estar, disse isso com a voz firme, com uma força que atravessou os móveis, os ternos, as gravatas, e partiu ao meio o teatro da democracia que alguns gostam de encenar.

Mas o pior, o que me corroeu por dentro, o que ainda me faz ranger os dentes quando lembro, não foi só o ataque, não foram só os olhos que a fuzilaram de cima da bancada, foram os outros olhos, os que desviaram, os que olharam para o chão, os que fingiram não ver, os que se calaram quando deviam ter se erguido, deviam ter berrado, deviam ter sido escudo e foram omissão, foram conforto, foram covardia bem vestida, foram nada, porque o nada também é escolha, e quem escolhe o nada diante da violência, é violento também, ainda que não diga uma palavra.

Ela não foi ali só como ministra, isso eles não entendem, nunca entenderam, ela foi como presença, como fantasma daquilo que eles enterraram mas que insiste em voltar, ela foi como lembrança viva da pobreza, dos que nunca foram convidados a sentar-se à mesa, e que agora não só se sentam, mas falam, e pensam, e decidem – e isso os enfurece mais do que qualquer discurso, porque isso os diminui, os desnuda, mostra que o velho país está ruindo.

Porque ela estava ali como lembrança viva das mulheres que se impõem, que surgem do fundo da terra como raiz que ninguém mais arranca, como água que corre mesmo quando cavam barragens, como vento que não se prende em moldura, ela estava ali como memória de todas as que vieram antes dela e não puderam falar, não puderam gritar, não puderam existir sem permissão, sem concessão, sem pagar um preço alto demais por simplesmente estar, por simplesmente ser, por simplesmente dizer: eu também posso.

Estava ali como vestígio da lavadeira que nunca entrou no salão nobre, da professora que foi chamada de histérica, da trabalhadora que ouviu que devia sorrir mais, da negra que teve que falar três vezes mais alto para ser ouvida como igual, da mãe que amamentou e votou e pariu e marchou e caiu e levantou, estava ali como todas essas, condensadas numa só, e por isso sua presença incomodava tanto, porque não era só ela, era a multidão silenciosa que marchava junto, era o peso das que morreram em silêncio e a fúria das que sobreviveram ao silêncio. E por isso tentaram empurrá-la de volta pro escuro – essa verdade arde, queima, fere o orgulho de quem sempre achou que podia decidir quem fala e quem cala, quem entra e quem espera, quem escreve e quem é apenas nota de rodapé.

Ela veio, sim, como lembrança – eco de vozes que tentaram calar, rastro de passos que abriram caminho no barro. Mas veio também como anúncio, como um sopro de amanhã, como porta escancarada que não admite retorno, dizendo não o que pede, mas o que exige, o que se impõe.

Pedro Paulo Gomes Pereira é professor titular de antropologia da Unifesp.



[Fonte Original]

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