26.5 C
Brasília
sábado, junho 7, 2025

O carimbo como metáfora – Revista Cult

- Advertisement -spot_imgspot_img
- Advertisement -spot_imgspot_img

 

Em 1993, a extinta (ou pelo menos silenciada) marca de roupas Benetton lançou uma campanha publicitária que, como todas as anteriores assinadas pelo fotógrafo italiano Oliviero Toscani, causou polêmica internacional. Na imagem mais marcante da campanha, nádegas nuas – femininas e masculinas, brancas e negras – estampavam carimbos com os dizeres “HIV positivo” e “HIV negativo”. Toscani, falecido em 2024, aos 81 anos, mais uma vez desafiava os limites da publicidade comercial e da moral social ao tratar, com uma visualidade erótica e agressiva, de um tema que ainda era tabu na esfera pública global: o HIV/AIDS.

À época, afirmando para mim mesmo e para o mundo ao meu redor a minha homossexualidade, a campanha de Toscani foi a primeira problematização explícita, na antiga esfera pública global, sobre o status das pessoas em relação ao HIV. Muita gente a leu como um reforço do estigma que a pessoa infectada pelo HIV experimentava à época – muito mais do que experimenta hoje (mas ainda experimenta). Isto porque Toscani jogava com o elemento do desejo sexual (as bundas, independentemente do carimbo que levavam – HIV+ ou HIV– –, despertavam e frigiam a libido do espectador para a vida – para o que Freud vai chamar de pulsão de vida (Lebenstrieb), conceito desenvolvido em sua obra Além do princípio do prazer, de 1920)¹ – quando todo o discurso público de então associava o HIV e a AIDS à morte, à pulsão de morte (Todestrieb), com ênfase desonesta, intelectualmente e politicamente, na responsabilidade dos homens gays e seus modos de vida libertários e diversos dos prescritos pela heteronormatividade hegemônica.

Esses modos, de um lado, eram herdeiros da própria forma como a homofobia e a transfobia histórico-sociais e estruturais empurraram a sexualidade gay para a “promiscuidade”; de outro, herdeiros dos movimentos de contracultura dos anos 1960. Assim, os corpos sexo-dissidentes foram transformados em vetores simbólicos e reais da epidemia, quando, na verdade, a história da AIDS e da propagação do HIV na África Subsaariana era outra – profundamente ligada aos modos de vida heterossexuais e à pobreza estrutural.

A campanha de Toscani, portanto, buscava se apropriar positivamente do “carimbo” metafórico que era o diagnóstico de HIV, por meio de sua redução a um carimbo real sobre nádegas desejáveis de homens e mulheres anônimos que poderiam ser qualquer um de nós. Enfrentava, assim, o conceito equivocado e reducionista de “grupo de risco” – expressão que emergiu nos anos 1980, cunhada por órgãos de saúde pública estadunidenses (como o CDC), e que serviu ao estigma dos sexo-divergentes, das prostitutas e dos usuários de drogas injetáveis².

Não por acaso, essa metáfora visual se deu no contexto da implantação do neoliberalismo cristão reacionário de Ronald Reagan nos Estados Unidos e de Margaret Thatcher no Reino Unido. O neoliberalismo, como projeto ideológico e econômico, buscou desmontar o Estado de bem-estar social, promovendo a privatização dos serviços públicos e a moralização individual da responsabilidade – inclusive em relação à saúde. Seu marco histórico é a década de 1980, mas seus efeitos culturais persistem: culpabilização das vítimas, atomização das lutas coletivas e reforço dos dispositivos de controle sobre os corpos desviantes.

Décadas depois, neste momento de ascensão de populistas de direita e extrema-direita em todo o mundo, o artista contemporâneo e fotógrafo brasileiro Carlos Alexandre Dadoorian retoma a questão do carimbo em seu novo trabalho, tão provocador e necessário agora quanto o de Oliviero Toscani naquele momento. Alexandre apresenta uma série de autorretratos em preto e branco sobre os quais pesam carimbos coloridos com os insultos mais vulgares dirigidos aos homens gays e às travestis.

Por que retomar a questão do carimbo? Ora, porque o carimbo nunca saiu de cena! Ele pode ter perdido cor e força de impressão nas décadas anteriores à ascensão dos novos populismos – graças à organização global do movimento LGBTQIA+ e suas conquistas político-culturais – mas nunca deixou de ser utilizado pelos dispositivos heteronormativos para marcar as pessoas sexo-diversas. Aqui, é necessário compreender o que são dispositivos, segundo Michel Foucault: redes estratégicas de poder-saber que operam sobre os corpos e os discursos para normalizá-los e sujeitá-los³. Giorgio Agamben, por sua vez, amplia essa noção, ao definir dispositivos como “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes”⁴.

Curiosamente, as palavras “carimbo” e “bunda” – que se encontram visual e conceitualmente na campanha de Toscani – têm origem na mesma língua africana: o quimbundo, falado por povos bantos da região da atual Angola. “Carimbo” vem de karimbu, instrumento de percussão que, ao marcar ritmos, também sugere impressão. “Bunda” vem de mbunda, termo usado para designar as nádegas. Ambas as palavras chegaram ao português brasileiro por via da escravização de africanos. A coincidência etimológica é carregada de sentido histórico: o corpo negro e escravizado como superfície inaugural de marca e controle. A bunda como lugar simbólico do desejo e da submissão; o carimbo como ferramenta colonial de sujeição, identificação e exclusão.

O carimbo é, portanto, uma poderosa metáfora de como as diferentes expressões da homofobia – começando pelo insulto verbal – nos marcam a “ferro e fogo” e nos sujeitam (ou seja, produzem-nos como sujeitos – nos dois sentidos desta palavra –, inclusive na formatação de nosso desejo sexual). Em Tempo bom, tempo ruim, eu escrevo: “O insulto é a primeira tecnologia da exclusão. Ele precede a violência física, mas já é violência simbólica e constitutiva. É o nome com que nos batem, é a caricatura com que nos identificam, é o espelho que deforma nossa imagem e internaliza a vergonha”⁵. Didier Eribon, em Reflexões sobre a questão gay, vai ao mesmo ponto quando afirma que a homofobia funda um regime de subjetivação em que o sujeito só se reconhece como tal pelo olhar que o inferioriza: “A vergonha não é apenas sentida; ela é ensinada”⁶.

O carimbo como sujeição negativa voltou com força em tempos de economia digital do ódio. Em Falsolatria, escrevi que as redes sociais, comandadas por algoritmos que premiam o engajamento pela raiva, transformaram os preconceitos históricos – como a homofobia, a misoginia e o racismo – em moeda simbólica e ferramenta política⁷. Multiplicam-se na internet os velhos insultos homolesbotransfóbicos, seja em comentários em postagens de mídias sociais, seja em flagras audiovisuais capturados e viralizados com prazer punitivo. Portanto, o que Carlos Alexandre propõe, em seu novo trabalho, é a manutenção da política cultural de reapropriação do carimbo negativo como algo positivo, uma vez que ele nos constitui como sujeitos, queiramos ou não, gostemos ou não. Ele propõe a saída da sujeição que o insulto engendra para a subjetividade reinventada: a passagem da vergonha introjetada para o orgulho público.

Carlos Alexandre é um artista já na chamada terceira idade. Seus selfies portraits apresentam um corpo ainda desejável sob insultos também etaristas, apontando para um outro tipo de carimbo infelizmente muito usado pelos próprios homens gays numa cultura urbana queer juvenilista e entregue à devoração do mercado.

O carimbo como metáfora foi empregado também numa teoria conspiratória que muito circulou no auge da epidemia de AIDS e que servia para colocar os homens gays uns contra os outros, minar a responsabilidade coletiva em relação ao vírus e reafirmar a caricatura homofóbica de que os gays são vis, promíscuos e vingativos. Refiro-me ao que ficou conhecido como “clube do carimbo”. Essa teoria conspiratória afirmava que existiriam grupos organizados de homens soropositivos que deliberadamente transmitiriam o HIV para outros homens em festas sexuais coletivas, como vingança ou como forma de aliciamento para um grupo secreto.

Trata-se de uma fabulação paranoica e profundamente homofóbica, que, mesmo sem qualquer evidência empírica consistente, teve circulação significativa em boatos, colunas sensacionalistas, revistas policiais e fóruns de internet. Sua origem remonta aos anos 1990 nos Estados Unidos, mas ganhou força em vários países, inclusive no Brasil, sendo reproduzida por programas populares, sobretudo no início dos anos 2000. E reapareceu, de forma surpreendente e reatualizada, em uma matéria do programa Fantástico, da TV Globo, em 2018, no exato momento em que a carga viral indetectável de pessoas em tratamento com antirretrovirais já não permitia a transmissão do HIV (Undetectable = Untransmittable, ou U=U), e a profilaxia pré-exposição (PrEP) se popularizava como política pública de saúde. O que explica isso? A homofobia persistente. A necessidade inconsciente e reacionária de reinscrever o carimbo da culpa sobre os corpos dissidentes.

A indústria pornográfica gay soube se apropriar dessa teoria conspiratória e, ironicamente, estetizá-la e erotizá-la. No momento em que os homens HIV+ em tratamento não transmitiam mais o vírus, a prática do bareback (sexo anal sem preservativo) passou a ser amplamente representada nos filmes pornôs gays. A estética da transgressão, antes relacionada à morte, foi ressignificada pelo saber biomédico e incorporada pela indústria como fetiche do risco e da liberdade. Já se podia abrir mão do preservativo porque o HIV não se transmitia entre pessoas tratadas. Já se podia tratar os astros pornográficos HIV+ com carga viral indetectável como objetos de desejo sexual, e não como transmissores da morte.

Susan Sontag, em A AIDS e suas metáforas, livro que dá continuidade a A doença como metáfora, havia advertido para os perigos da linguagem que cerca as epidemias. O vírus, dizia ela, é sempre um significante em disputa: ele serve tanto para a construção da alteridade abjeta quanto para a mobilização da empatia coletiva. O problema, para ela, não é a doença em si, mas a metáfora que se impõe sobre ela – metáfora que frequentemente opera a exclusão, a vergonha, o medo e o nojo⁸.

Por fim, a retomada da questão do carimbo por Carlos Alexandre vai além da questão sexual ou mesmo LGBTQIA+: alude também à força do carimbo na questão migratória. O acolhimento sempre policiado dos imigrantes e refugiados – sejam eles vítimas de guerras, perseguições políticas ou catástrofes climáticas – ou suas deportações, prisões ou confinamentos, depende de carimbos em passaportes ou “papéis”. E mais: todos eles estão carimbados metaforicamente pela paranoia e pela desinformação da extrema-direita global.

Em Nós, os refugiados, Hannah Arendt escreve: “A única coisa que ainda pode nos proteger é o carimbo em nosso passaporte. Mas, ao mesmo tempo, esse carimbo é também o sinal de que já não somos nada”⁹. Em O que não se pode dizer, afirmei que esse carimbo invisível – mas real – é o estigma contemporâneo por excelência: ele marca os corpos racializados, sexualizados, feminilizados, fugitivos, dissidentes. Ser refugiado é ser carimbado, é viver sob vigilância e condição suspensa de cidadania. Parece ser o devir do mundo. Portanto, apropriar-se do carimbo e transformá-lo em luta é dever ético e político de todos nós.

Jean Wyllys é jornalista, escritor e artista visual. Mestre em Letras é Lingüística pela UFBA e dourando em Direito e Ciência Política pela Universidade de Barcelona. Autor, entre outros livros, de Falsolatria (2024).

Notas bibliográficas:

  1. Sigmund Freud, Além do princípio do prazer, 1920.
  2. Centers for Disease Control and Prevention (CDC), EUA, início dos anos 1980.
  3. Michel Foucault, Microfísica do poder, Rio de Janeiro: Graal, 1979.
  4. Giorgio Agamben, O que é um dispositivo?, Chapecó: Argos, 2009.
  5. Jean Wyllys, Tempo bom, tempo ruim, Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.
  6. Didier Eribon, Reflexões sobre a questão gay, Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008.
  7. Wyllys, Jean. Falsolatria. São Paulo: Editora Nós; Edições Sesc São Paulo, 2024. Coleção Pop Filosofia. 
  8. Susan Sontag, A AIDS e suas metáforas, São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
  9. Hannah Arendt, Nós, os refugiados, in: The Jewish Writings, Nova York: Schocken Books, 2007.

 



[Fonte Original]

- Advertisement -spot_imgspot_img

Destaques

- Advertisement -spot_img

Últimas Notícias

- Advertisement -spot_img